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5. Michael Chorost: o ciborgue ressentido

5.1. A tecnologia como porta de entrada no mundo

A questão do senso de conexão com o mundo revela-se de especial importância para Chorost devido ao seu histórico de deficiência auditiva. É por causa dele, aliado à privilegiada capacidade reflexiva do autor e seu contato com a leitura teórica, que seu texto adquire uma perspectiva bastante interessante e eloqüente sobre a relação entre homem e tecnologia.

Kevin Robins, a quem tem-se recorrido com freqüência neste trabalho, afirma que a visão é “o sentido humano mais associado ao afastamento e à separação do mundo” (ROBINS, 1996, p. 20). Para este autor, a moderna adição no desenvolvimento das tecnologias da imagem está profundamente relacionada à vontade de tornar todo o mundo transparente e previsível devido a uma dificuldade extraordinária de se lidar com “o toque do desconhecido”, portador da possibilidade de dor e medo. A observação converge com um comentário de Chorost sobre a experiência da surdez.

Ele explica que “o sentido da audição submerge você no mundo como nenhum outro” (CHOROST, 2005, p. 9). Ao compará-lo com a visão, ele remete às palavras de um escritor cego que considera que “os olhos o colocam na periferia do universo – você está sempre na beirada, olhando para dentro – [mas] os ouvidos o colocam no centro, já que você ouve o que está por toda sua volta” (CHOROST, 2005, p. 9). Sendo assim, a surdez parece ser capaz de provocar um violento senso de desconexão entre a pessoa e seu entorno: suas vítimas freqüentemente afirmam sentirem-se “mortas, invisíveis, insubstanciais. Elas sentem que são elas que se tornaram irreais, não o mundo” (CHOROST, 2005, p. 9).

Comove o relato de Chorost a respeito dos primeiros anos de sua vida, quando seus pais souberam que ele sofria de uma grave deficiência auditiva. A descoberta ocorreu quando

Chorost tinha cerca de três anos de idade. Até então, sua falta de atenção, seu desinteresse, seu atraso no aprendizado da linguagem, todos esses sintomas eram estranhados pelos pais. Como explica o autor, a surdez em bebês pode ser freqüentemente confundida com algum tipo de autismo ou outra doença psiquiátrica, visto que o maior sinal aparente é o fato de a criança parecer fechada no seu mundo, incapaz de se comunicar e estabelecer conexões profundas com o que está a seu redor.

Aí inicia a corrida de seus genitores para lhe ensinarem a ler e falar. Ao longo de um ano, seu mundo mudou completamente: “1967 e 1969 se passaram em diferentes universos. Em 1967 eu era um animalzinho mudo e medroso” (CHOROST, 2005, p. 31). Com o esforço de seus pais, sua curiosidade e o início da vida escolar em uma instituição especial para surdos, em 1969, suas habilidades lingüísticas começaram a crescer geometricamente e “o mundo se transformou em um lugar cheio de significados” (CHOROST, 2005, p. 32). Nesse processo, conclui Chorost, ele estava finalmente se “transformando em um ser humano” (CHOROST, 2005, p. 32).

Durante sua adolescência, após a passagem pelo colégio especial, Chorost diz que se sentia isolado, sem conseguir participar de grupos ou arranjar uma namorada. Nesta fase, o computador se transformou em vício, devido, ele acredita, em boa parte à sua dificuldade auditiva: “Eu era um insuportável adolescente nerd, fascinado por computadores, doente de desejo, e completamente apaixonado pela idéia da máquina. O computador me oferecia escape e alívio, o sentimento de controle e poder” (CHOROST, 2005, p. 16).

No início da vida adulta, porém, esse vício se transforma em um certo ressentimento, devido à constatação de que o computador em nada lhe havia ajudado para se aproximar das pessoas: “eu ainda era um homem sentado sozinho em uma sala encarando uma tela de computador. Eu não tinha namorada, nem uma família minha, nem mesmo uma amizade duradoura além daquelas desenvolvidas na escola e na faculdade” (CHOROST, 2005, p. 16).

Assim, em sua dissertação para obtenção do título de PhD, em que elaborou um software para auxiliar a colaboração entre os alunos, a partir de sua experiência como professor de Inglês, ele conclui que os computadores até podem, sim, ajudar as pessoas a trabalharem juntas e a se aproximarem desde que estivessem já inseridos em um contexto favorável às trocas de idéias e experiências. “Mas fora isso, eles eram máquinas cujas principais respostas eram lógica e solidão” (CHOROST, 2005, p. 16).

É por esse processo de desencatamento com as máquinas, portanto, que Chorost fica tão perturbado diante da necessidade de ter uma dessas dentro de sua cabeça, mediando sua relação com o mundo. Para ele, se a surdez é sentida como a morte, a operação de implante

pode ser considerada um renascimento – um renascimento em um novo corpo, cuja percepção de mundo dependeria de um aparelho construído a partir dessa lógica binária da qual ele aprendera a suspeitar. Mais profundamente: essa lógica, instalada no software que transformaria o som em impulsos elétricos, seria algo construído por pessoas, cientistas que constantemente estariam buscando aperfeiçoar o equipamento e os quais, portanto, lhes forneceriam novas versões da “realidade” auditiva de tempos em tempos: “Minha percepção do mundo seria sempre provisória: a última versão, mas nunca a final” (CHOROST, 2005, p. 9).

Ter aprendido a ler, escrever e falar nos seus primeiros anos – um processo que, como ele afirma, encheu o mundo de significados – é o que ele acha que lhe fez humano: “E agora eu estou me transformando em outra coisa, não inumano, não pós-humano, mas diferentemente humano” (CHOROST, 2005, p. 33). Isso porque o significado do mundo, agora, passaria por uma mediação diferente.

Nesse processo, o sentimento de separação do mundo, provocado por uma história de vida marcada pela surdez, parece-lhe ter uma chance de ser superado. Se as tecnologias – especialmente as da imagem – são alienantes, separam os indivíduos “dos ritmos naturais da vida e uns dos outros” (CHOROST, 2005, p. 188), como afirma o autor remetendo à opinião de um crítico que ele havia lido (e concordando com as proposições de Kevin Robins); aparentemente o implante auditivo lhe traz o efeito contrário.

Na discussão sobre a alienação tecnológica, Chorost argumenta que, apesar de ser o computador quem media sua percepção do mundo de uma maneira muito profunda, ele sente- se agora muito mais conectado do que nunca à realidade. Como precisou testar dois diferentes softwares de processamento de som para descobrir a qual se adaptava melhor e em qual obtinha melhores resultados, o autor comenta que:

Obviamente, parte do motivo é que o computador me permite ouvir; não há nada mais isolante do que a surdez. Mas há mais que isso. O que me salvou da alienação não foi só apenas poder ouvir de novo, mas também ser forçado a construir meu mundo em vez de simplesmente tê-lo como dado. (...) Eu dificilmente poderia estar alienado do mundo, porque este é um mundo que eu ajudei a construir (CHOROST, 2005, p. 188).

O mundo que Chorost diz que ajudou a construir, porém, não tem o sentido de um mundo particular, que o separe da coletividade. Pelo contrário, este é um mundo exatamente em que o autor consegue encontrar-se com os outros, aproximar-se dos demais. Pelo menos, é o que ele espera. Diferente do caso de Mann, não é que Chorost deseje subverter o que está posto no mundo, criando uma realidade própria. Ele não quer controlar sua percepção para excluir o que lhe desagrada e fixar-se naquilo com que está familiarizado e pode controlar ou

pelo menos com que pode lidar nos seus próprios termos. Ao contrário, ele quer participar do mesmo mundo que os demais, quer compartilhar. O implante lhe serve como meio para isso.

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