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A TELEOLOGIA DO INSTITUTO DO «PREÇO ANORMALMENTE BAIXO»

No documento Contratação Pública (páginas 71-73)

ALTERAÇÕES AO REGIME DO “PREÇO ANORMALMENTE BAIXO”

C) O PREENCHIMENTO DO CONCEITO DE PREÇO ANORMALMENTE BAIXO 1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

6. A TELEOLOGIA DO INSTITUTO DO «PREÇO ANORMALMENTE BAIXO»

Como figura específica da disciplina da contratação pública, de criação europeia, o preço anormalmente baixo partilha naturalmente da mesma ratio que inspira e justifica teleologicamente toda a legislação europeia em matéria de contratos públicos.

O preâmbulo do Tratado da Comunidade Europeia (doravante, “TCE”) sempre fez expressa referência à necessidade de acções concertadas entre os Estados-membros com vista a garantir uma «concorrência justa»; e essa referência consta hoje do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), que actualmente integra as normas sobre concorrência. Por isso, as políticas comuns a promover pela União incluem o desenvolvimento de «um sistema que assegure que a concorrência no mercado interno não é distorcida», como se lia no artigo 3.º do TCE e como resulta hoje do Protocolo n.º 27 relativo ao Mercado Interno e à Concorrência, que se encontra anexo e faz parte integrante dos Tratados (cfr. artigo 51.º do Tratado da União Europeia).

Portanto, as coordenadas que emergem do ordenamento comunitário europeu apontam no sentido de conciliar a promoção da livre iniciativa económica como motor de um mercado altamente concorrencial com a regulação desse mesmo mercado, em termos que impeçam a distorção da concorrência gerada. E, em consequência, a disciplina jurídica da contratação pública, de inspiração europeia, não poderá deixar de ser lida em termos que a compatibilizem com essas duas directrizes da concorrência que emergem dos tratados fundadores da União. Em linha de concordância com o que se deixa dito, a jurisprudência do TJUE tem afirmado que «o principal objectivo das regras comunitárias sobre contratação pública [é] a liberdade de movimento de serviços e a abertura dos mercados públicos à concorrência não distorcida em todos os Estados-membros» [cfr. Acórdãos do TJUE de 11 de Janeiro de 2005 (processo C- 26/03 – Stadt Halle), n.º 44; de 11 de Maio de 2006 (processo C-340/04 ─ Carbotermo), n.º 58; de 18 de Dezembro de 2007 (processo C-220/06 ─ Liberalisation of Postal Services), n.º 40; de 14 de Fevereiro de 2008 (processo C-450/06 ─ Varec), n.os 34-35; de 19 de Junho de 2008 (processo C-454/06 ─ Pressetext), n.º 31; de 19 de Maio de 2009 (processo C-538/07 ─ Assitur), n.os 22-23 e 30; e de 9 de Junho de 2009 (processo C-480/06 ─ Comissão vs. Alemanha), n.º

Contratação Pública

4.Alterações ao regime do “preço anormalmente baixo”

47](38). Bem como que «as Directivas de Contratação Pública têm por objectivo eliminar práticas anticoncorrenciais, nos processos de adjudicação de contratos públicos» [cfr. Acórdão do TJUE de 21 de Fevereiro de 2008 (processo C- 412/04 – Comissão vs. República Italiana), n.º 2].

No mesmo sentido, sublinham ROBERT ANDERSON e WILLIAM KOVACIC(39), que nem a referência à «concorrência efectiva» que constava do Considerando 46.º da Directiva 2004/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março, apresenta qualquer relação com a adopção de mecanismos ampliativos do acesso dos interessados ao procedimento pré- contratual nem, por outro lado, a ampliação do acesso dos potenciais concorrentes aos procedimentos pré-contratuais parece ser suficiente para alcançar o objectivo do mercado único que subjaz à concepção da disciplina europeia da contratação pública. Antes, tal objectivo só é alcançado se a concorrência for efectiva – isto é, se as regras do jogo concorrencial forem efectivamente cumpridas pelos concorrentes.

Parece, assim, formar-se um consenso no sentido de que o objectivo do regime jurídico da contratação pública não reside exclusivamente na abertura dos contratos públicos à máxima concorrência de mercado, ou seja, ao maior número possível de operadores económicos (a concorrenza per il mercato), mas também na garantia de uma concorrência efectiva e não distorcida (a concorrenza nel mercato)(40).

E, assim sendo, este móbil da promoção de uma sã concorrência justifica, também, a emergência deste regime que habilita as entidades adjudicantes a lançarem dúvidas ou suspeições sobre a formação e a estrutura de custos dos preços propostos em procedimentos pré-contratuais, como sublinhou o Advogado-Geral RUIZ-JARABO COLOMER nas Conclusões emitidas no âmbito do processo SECAP(41). Dito de outro modo: se tem sido relativamente incontroverso que o instituto do preço anormalmente baixo é feixe de interesses contrapostos, visando conciliar, por um lado, o interesse público financeiro imediato da adjudicação da proposta de mais baixo preço e o direito à livre iniciativa económico- empresarial com, por outro lado, o interesse público da tutela do risco de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato(42), cabe agora concluir que a referida figura jurídica é igualmente inspirada – e teleologicamente justificada – pela necessidade de tutela da (38) No mesmo sentido, cfr. conclusões do Advogado-geral Poiares Maduro apresentadas em 17 de Dezembro de

2008, no processo C-250/07 – Comissão vs. República Helénica.

39 Cfr., ROBERT D.ANDERSON / WILLIAM E.KOVACIC, «Competition Policy and International Trade Liberalisation: Essential

Complements to Ensure Good Performance in Public Procurement Markets», in Public Procurement Law Review, n.º 2 (2009), pp. 79 e 86.

(40) As expressões são de FRANCESCO GARRI, «La Giurisprudenza Amministrativa in Tema di Mercato degli Appalti», in

Rivista Trimmestrale Degli Appalti, n.º 1, 2010, p. 64; no mesmo sentido, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA / RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Concursos e Outros Procedimentos de Adjudicação Administrativa. Das Fontes às Garantias, Almedina, Coimbra, 2011, p. 185; RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, «Os Princípios Gerais da Contratação Pública», in Pedro Gonçalves (org.), Estudos de Contratação Pública, I, p. 67, referindo que «é de facto no respeito pela concorrência e simultaneamente na sua promoção que assenta hoje o valor nuclear dos procedimentos adjudicatários: é a ela (a concorrência) que estes se dirigem e é no aproveitamento das respetivas potencialidades que se baseia o seu lançamento. E se é na concorrência que se funda o mercado da contratação pública, isso há-de significar que a tutela de uma concorrência sã entre os competidores interessados deve estar na primeira linha das preocupações do sistema jurídico».

(41) Cfr. Conclusões do Advogado-Geral no processo SECAP (C-147/06 e C-148/06), n.º 34.

(42) Cfr., neste sentido, ROSANNA DE NICTOLIS, «Le offerte anomale e i criteri di rilevazione della congruitá dei prezzi»,

cit., p. 2201. No mesmo sentido, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA / RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Concursos e Outros

Procedimentos de Adjudicação Administrativa. Das Fontes às Garantias, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 429-430.

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4.Alterações ao regime do “preço anormalmente baixo”

concorrência na referida dúplice vertente e, portanto, também a tutela de um mercado concorrencial são e efectivo(43).

É evidente que esta conclusão conduz-nos a uma questão dilemática, já que, por esta via, ocorre uma instrumentalização do regime da contratação pública à prossecução de políticas (regulatórias) nos domínios laboral e social e, portanto, uma postergação do princípio da legalidade das competências administrativas, como tem sido focado pela jurisprudência nacional. Mas é incontroverso que o ordenamento jurídico-europeu tem sido relativamente insensível a essas preocupações próprias da organização administrativa, fazendo uso do instrumento jurídico da contratação pública para a prossecução das mais diversas políticas secundárias(44), em termos que, aliás e como de seguida se especifica, tornam-se ainda mais evidentes com as novas directivas europeias de 2014.

No documento Contratação Pública (páginas 71-73)