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A tensão tragicômica do (anti)herói no Auto da Compadecida

1 O TEATRO: UM DUPLO ARTÍSTICO – TRAGÉDIA E COMÉDIA

1.5 João Grilo: um herói popular e picaresco

1.5.2 A tensão tragicômica do (anti)herói no Auto da Compadecida

Segundo Deserto (1995), a tragédia e a comédia mantêm entre si uma relação de alguma ambiguidade, em que proximidade e afastamento parecem jogar, em simultâneo, importante papel. Podemos evocar como representação simbólica desta relação, a imagem, que o tempo veio a tornar quase emblema do próprio teatro, das duas máscaras, a trágica e a cômica, denunciantes do sofrimento e do riso.

O leitor atento percebe que a comédia causada pelos quiprocós15e pelas confusões no Auto da Compadecida não representa a cura da tragédia vivenciada por João Grilo, nem a

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Quid pro quo é uma expressão latina que significa "tomar uma coisa por outra". Faz referência, no uso

do português e de todas as línguas latinas, a uma confusão ou engano. Tem origem medieval, tendo sido usada, na sua origem, para se referir a um engano no uso de termos latinos num texto. Também pode significar "isso por aquilo".

mera atenuação futura de seus efeitos. João Grilo, o herói da peça, é um misto de uma tensão que se identifica com o herói cordelesco e, desta forma, não está atrelado somente aos aspectos da proeza e da glorificação, uma vez que está associado à ideia da fraqueza na constituição dos valores humano.

Assim, João Grilo, não está contemplado pela trajetória do herói prodigioso e honrado, pois, se orienta pela bandeira da transgressão. João Grilo é a expressão desesperada do homem que luta contra todas as adversidades, mas não consegue evitar a desgraça, que vive numa sociedade abalizada pela constante oposição de duas forças: o bem e o mau. A convergência e ação dessas forças são responsáveis pela falência do herói, fazendo com que ele mergulhe no território escorregadio dos valores.

Aristóteles, em sua Arte Poética (2005), conceitua a tragédia como a imitação de pessoas superiores em ação; a comédia como a imitação de pessoas inferiores em ação; e o drama como a representação das pessoas em ação. Por pessoas superiores, entendemos os heróis, que estão entre o humano e o divino, possuindo algo de sobrenatural.

Ariano Suassuna, em sua Iniciação à estética (2007c), reflete sobre os conceitos de tragédia, comédia e drama pensados por Aristóteles, ressaltando que outras categorias fazem parte da tragédia, como o Belo e até mesmo o Cômico. Na leitura que faz da Poética, o escritor percebe o herói como alguém dotado de uma alma grande, mas não pura. Tal “alma grande” é percebida mais pelas ações do que pelas palavras, em consonância com o pensamento aristotélico e no caso de João Grilo, essa impureza reside em sua própria personalidade, desenhada pela presença de falhas cômicas tais como a ambição, a trapaça, a alcovitagem, a avareza, a inveja, a vingança e a usura.

2. HUMOR E O RISO: ELEMENTOS INDISPENSÁVEIS À CENA CÔMICA.

“É melhor escrever sobre risos do que sobre lágrimas, pois o riso é o apanágio do homem.”

(François Rabelais).

Para muitos antropólogos, o riso foi um fator coadjuvante à adaptação da espécie, sendo um ato instintivo e portador de equilíbrio frente a situações extremas de abatimento, e que dele depende a sobrevivência da espécie. Vladimir Propp (1992) apresenta seis tipos de riso e alerta para a existência de outros. Embora se debruçando basicamente sobre o que chama de riso de zombaria, por compreender que “é o mais frequente”, sendo o “tipo principal de riso humano”, o teórico atenta para o riso bom, o riso maldoso ou cínico, o riso alegre, o riso ritual e o riso imoderado. Antes de prosseguir, nos cabe ressaltar que não nos ocuparemos das definições de Propp, mas do riso como elemento indispensável à cena cômica e de seus reflexos na Comédia e no Auto.

Rir é o melhor remédio! Por essa afirmativa percebemos o poder do riso na vida da Humanidade. Entretanto, o humor e o riso são fenômenos que ainda não foram elucidados completamente, mas as coisas engraçadas podem nos dizer muito do que é humano, visto que o homem é o único animal que ri.

O cômico está presente em situações reais de nossas vidas,uma vez que todos nós rimos sempre para qualquer situação que nos leva, quase incompreensíveis, para o riso, despertando nosso humor. Há de se considerar que o riso é uma parte fundamental dos efeitos produzidos pelo humor no ser humano, e suas múltiplas formas de expressão vão dizer respeito ao grau de afetação ou não, que tenha causado tal situação real ou artística que apresenta momentos cômicos.

Em História do riso e do escárnio, Minois (2003) esquematiza a história do riso em três momentos: o divino, o diabólico e o humano. Os gregos antigos definiriam o riso a partir de suas noções de divindade:

Rir é participar da recriação do mundo, nas festas dionisíacas, nas saturnais, acompanhadas de ritos de inversão, simulando um retorno periódico ao caos primitivo, necessário à confirmação e à estabilidade das normas sociais, políticas e culturais. Nas relações sociais, o riso é vivido como elemento de coesão e de força diante do inimigo, como o mostram os risos homéricos ou espartanos; ele é também um freio ao despotismo, com as bufonarias rituais dos desfiles triunfais em Roma, ou as sátiras políticas em Aristófanes; é, por fim, um instrumento de conhecimento, que desmascara o erro e a mentira, como no caso da ironia socrática, das zombarias dos cínicos, da derrisão dos vícios em Plauto ou Terêncio. (MINOIS, 2003, p. 630)

Sobre o riso como capacidade para criar o mundo a nossa volta, Aristóteles nos transmite que somente uma democracia poderia tolerar a franqueza das velhas comédias, na democracia o riso se caracteriza por sua força crítica e sua ação democratizadora. Consoante ao pensamento de Minois, o riso busca se livrar do mundo cheio de injustiça e substituí-lo por um mundo melhor. Cria uma nova realidade que desloca a outra que não pode mais ser mantida porque perdeu seu significado. O riso é, então, uma libertação.

Apesar de ter sido relegado na Antiguidade, o riso continua a desempenhar um papel de grande importância na vida social. O verdadeiro riso, ambivalente e universal, não exclui o sério, mas o purifica e o completa. Purifica-o do dogmatismo, da unilateralidade, da esclerose, do fanatismo e do espírito categórico, do medo e da intimidação, do didatismo, do engenho e das ilusões, da fixação sinistra em um único nível e da exaustão.