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As décadas subsequentes à II Guerra Mundial foram decisivas para a política mundial. Durante aquele período, diferentes teorias sobre desenvolvimento e modernização analisavam os países em perspectiva comparada. Países pobres eram diferenciados dos países ricos14 por meio de um ranqueamento de desenvolvimento econômico e consequentes estágios de modernização social e cultural. Em parte, essa diferenciação se deve à inserção da análise de perspectiva econômica sobre fenômenos políticos. O esforço empreendido direcionava-se à compreensão dos mecanismos de estabilidade política num contexto incerto como o do pós-guerra. Para tanto, a solução apresentada tendeu a formular respostas que colocassem uma série de etapas a serem cumpridas pelos países menos desenvolvidos. Nesse sentido, pressupunha-se que o desenvolvimento econômico necessariamente levaria à modernização da sociedade e, consequentemente, à estabilidade política (MELLO, 2011); que a história recente comprova ser um engano.

Ocorre que abordagens desse tipo não explicam a contento fenômenos políticos como apatia política ou extremismos, que eclodiram naquele período e que, por sua vez, comprometeram a estabilidade dos sistemas políticos. Pode-se afirmar que, em decorrência disso, estudos com ênfase comportamentalista começaram a ganhar destaque na Ciência Política, principalmente a norte-americana. Assim, ―o surgimento do conceito de cultura política se insere no esforço da Ciência Política norte-americana do pós-guerra de conhecer os fatores ligados à democracia e à estabilidade‖ (CASTRO, 2014, p. 12).

Sem entrar no mérito da discussão sobre os paradigmas da Ciência Política15 nem na discussão sobre os alcances dos instrumentos lançados para a compreensão da realidade de fato, os estudos empíricos adquiriram legitimidade na

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Essa diferenciação é meramente descritiva, sem intenção de juízo de valor por parte da autora.

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análise política, sobretudo pelo aperfeiçoamento do instrumental metodológico por meio de pesquisas tipo survey: ―o invento da pesquisa tipo survey [é comparada com invenções] como do microscópio, na medida em que ambas as invenções permitiram uma melhoria na quantidade e na qualidade na coleta de dados e resolução dos problemas‖ (ALMOND, 1990, apud CASTRO, 2014, p. 15-16).

Para efeitos desta tese de doutoramento, está claro que nenhuma teoria explica suficientemente a complexidade da vida social. Nesse sentido, o presente estudo alia-se a uma linha de pesquisa que concilia as perspectivas econômica e cultural para o entendimento ampliado do processo de modernização das sociedades industriais e, mais recentemente, pós-industriais, apresentado por Ronald Inglehart e Christian Welzel (2009). Por essa perspectiva conciliadora, pressupõe-se uma tendência modernizante nas sociedades de economia pós- industrial que contribui para o estabelecimento e a manutenção de regimes políticos mais democráticos. A partir de dados empíricos, resultado de pesquisas sociais de abrangência global, Inglehart e colaboradores afirmam que, atualmente, há uma mudança em curso na direção de valores relativos à autonomia individual que, por sua vez, incrementam posturas mais atuantes no campo político para garantia dos direitos adquiridos, constituindo o que ele denominou Síndrome de Desenvolvimento Humano.

Os dados da pesquisa World Values Survey (WVS)16 dão o subsídio empírico para Inglehart e colaboradores compreenderem, em perspectiva comparada, a relação entre fatores econômicos e fatores culturais no conjunto de valores partilhados socialmente. Em síntese, Inglehart afirma que está ocorrendo uma transformação nos valores básicos dos indivíduos que, por sua vez, contribui para a mudança de comportamento das sociedades pós-industriais, migrando de um comportamento afeito à segurança existencial para valores de autoexpressão à medida que aumenta o nível econômico. Para o autor, essa mudança de valores

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Como já descrito na Introdução, a World Values Survey (www.worldvaluessurvey.org) é uma rede global de cientistas sociais que estudam a mudança de valores e seu impacto na vida social e política, liderada por uma equipe internacional de acadêmicos, com a WVS Association e a WVSA Secretariat, sediada em Viena, Áustria.

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está diretamente relacionada com o processo de modernização das sociedades, sob o aspecto mais amplo do desenvolvimento humano.

Para exemplificar a hipótese de que há uma espécie de hierarquia de objetivos a serem perseguidos – iniciando pelo mais concreto em direção ao mais abstrato –, Inglehart (2012, p. 159-160) dá o seguinte exemplo:

Um homem perdido no deserto, por exemplo, pode estar obcecado com sua necessidade de água, devotando virtualmente toda a sua atenção a buscá- la. Quando o suprimento de água é facilmente disponível, mas os alimentos são escassos, o indivíduo não se importa mais com essa necessidade [...] e pode devotar-se à coleta de alimento.

Aceitar a preponderância de uma hierarquia de valores é o mesmo que aceitar que a busca por melhores condições de vida é incessante. Por isso, não se trata de colocar os valores básicos e os valores mais complexos em polos opostos, mas sim de compreender que a busca por melhores condições se dá a partir da garantia das condições primordiais para o indivíduo – no exemplo citado acima, a busca por água antecede a busca por alimento, considerando que o indivíduo consegue se manter vivo (por mais tempo) sem comida, mas sem água o seu tempo de vida diminui consideravelmente. Tal premissa está baseada na hierarquia de necessidades de Maslow (1943).

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Figura 2 – Pirâmide da prioridade de necessidades

Fonte: Elaborado pela autora a partir de Maslow (1962).

O argumento central do autor (e colaboradores) converge para a premissa de que valores básicos individuais mais substantivos – nas palavras dos autores, valores de autoexpressão, ou seja, aqueles que extrapolam a condição material da vida, tais como: felicidade, liberdade civil e política etc. – influenciaram uma sequência de desenvolvimento humano, uma vez que contestaram decisivamente questões (até então) tabus da sociedade, apontando para outros pontos de vista, contribuindo, se não para uma melhor convivência, para a discussão menos dogmática sobre assuntos como homossexualidade, questão de gênero e ecologia, para citar alguns.

A condição material em que o indivíduo está inserido é que estabelece o ponto de partida para a sequência do desenvolvimento humano. Em outras palavras, não se trata de segmentar a sociedade entre aqueles que possuem valores mais emancipadores e os que possuem valores mais conservadores. Os fundamentos que orientam a ação humana não devem ser interpretados como os únicos responsáveis pela mudança cultural. Pelo menos não de forma independente. Forças estruturais sistêmicas estabelecem o ponto de partida da mudança cultural. A questão cultural está sempre presente, seja com valores emancipatórios, seja com valores mais conservadores. Portanto, a questão de fundo não é se as pessoas

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possuem valores emancipatórios o bastante, mas por que elas não podem agir de modo emancipatório. Em quais circunstâncias os indivíduos podem se orientar a partir de valores mais autônomos?

O encadeamento de uma discussão substantiva na sociedade, embasada por valores relativos à autonomia individual, reflete aspectos de garantia das condições materiais básicas de sobrevivência (a título de exemplo: moradia, alimentação, segurança). Dessa maneira, podem os indivíduos dedicar-se à conquista de valores relativos ao bem-estar coletivo. Por isso, essa teoria é anunciada pelo próprio autor como uma teoria revisitada da modernização (INGLEHART; WELZEL, 2009), que, por sua vez, está sob o guarda-chuva teórico da teoria do desenvolvimento humano.