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A tese de Tucker – Wood

No documento Marx, moralidade e justiça (páginas 43-46)

3. A exploração capitalista é injusta?

3.2. A tese de Tucker – Wood

Como vimos, existe uma diferença entre o valor das mercadorias cujo consumo é necessário à sobrevivência dos operários e o valor das mercadorias que estes produzem numa jornada de trabalho. Essa diferença tem a sua origem nas mercadorias produzidas num tempo de trabalho não pago. Essa mais-valia, de que o capitalista se apropria, transforma-se, em parte, em capital. Ou seja, é reinvestida de forma a permitir a formação de movas mais-valias. Neste processo, que se repete indefinidamente, reside a essência do capitalismo, que a revolução proletária pretende derrubar.

Põe-se, portanto, a questão: esta crítica da exploração (e, portanto, do capitalismo) implica a denúncia de uma injustiça?

Segundo Robert Tucker, para Marx e Engels, a apropriação da mais-valia pelo capitalista não pode ser descrita como uma injustiça, pois está perfeitamente “de acordo com as únicas normas de justiça aplicáveis – aquelas que são operativas no quadro do modo existente de produção e de troca” (Tucker, 1969, p. 44). Desde que o salário recebido pelo trabalhador esteja de acordo com o valor da sua força de trabalho, isto é, desde que garanta a sua sobrevivência, então não podemos afirmar que o trabalhador foi roubado ou tratado injustamente. Uma vez vendida a força de trabalho pelo preço do salário, o valor das mercadorias que resultam da sua utilização pertence ao capitalista e não ao operário que as produziu (ver Tucker, 1969, p. 44).

Tal como escreve Marx no Capital, “o vendedor da força de trabalho, como o de qualquer outra mercadoria, realiza o seu valor de troca e aliena o seu valor de uso. Não pode receber um sem entregar o outro. O valor da força de trabalho, o próprio trabalho, deixa de pertencer ao seu vendedor, tal como deixa de pertencer ao azeiteiro o valor de uso do azeite que vende. O possuidor do dinheiro pagou o valor de um dia de força de trabalho; por isso, pertence-lhe o seu uso durante esse dia A circunstância de que a conservação diária da força de trabalho só custe meia jornada laboral, ainda que a força

43 de trabalho possa actuar, trabalhar, um dia inteiro, de que, portanto, o valor que o seu uso cria num dia seja o dobro do seu próprio valor de um dia, é uma sorte especial para o comprador, mas não supõe em absoluto nenhum atropelo contra o vendedor” (Marx, 2014, Livro 1, Tomo 1, p. 262).

Allen Wood segue, nas suas linhas gerais, a interpretação de Robert Tucker acerca da inexistência de uma acusação de injustiça na visão marxista da exploração capitalista. No seu entender, a concepção da exploração capitalista como um roubo poder-se-ia deduzir do princípio da “propriedade de si próprio”, defendido por John Locke, segundo o qual os direitos de propriedade de um indivíduo têm origem no seu próprio trabalho. Contudo, segundo Marx, esse princípio só seria válido num modo de produção onde cada produtor é proprietário dos meios de produção que utiliza e troca mercadorias com outros produtores que trabalham nessas mesmas condições.

Nesse sistema ideal, que Marx designa por “propriedade privada individual”, só por fraude ou violência poderíamos conceber que um dos produtores se visse privado de parte do valor produzido e, nesse caso, seria com toda a razão que poderíamos falar de um “roubo”. Mas este ideal pequeno-burguês difere do sistema capitalista, onde se verifica uma separação entre aqueles que de seu só possuem a sua força de trabalho e os que detêm a propriedade dos meios de produção. Neste contexto, a força de trabalho só tem valor para o operário como mercadoria e, para o capitalista, se for usada como meio de produção de mais-valia. Logo, a exploração não é uma opção que possa ser adoptada ou recusada em nome de um qualquer princípio universal de justiça mas uma condição inerente ao próprio funcionamento do capitalismo. Portanto, ela é necessariamente justa porque se acorda naturalmente com o funcionamento normal do sistema económico imperante (ver Wood, 1972, pp. 255-256).

Para Wood, a descrição da exploração capitalista como uma injustiça remete-nos para a ideia de que aquilo que é condenável no capitalismo é a desigualdade na distribuição dos bens socialmente produzidos, deduzindo-se daí que tal facto poderia ser corrigido pela tomada de decisões políticas fundadas obre princípios morais adequados. Ora, para Marx, a essência do capitalismo reside no modo de produção e não no critério distributivo adoptado que é apenas a sua consequência lógica. Logo, a exploração do trabalho e a apropriação da mais-valia pelos detentores dos meios de produção não é um

44 abuso ou uma prática arbitrária, susceptível de ser corrigida pela imposição de regras jurídicas ou morais dotadas de um valor absoluto (ver Wood, 1972, pp. 268- 270). A invocação de medidas correctivas incidindo no campo da distribuição levar-nos-ia necessariamente, como sublinha Tucker, a uma prática política reformista (ou seja, a uma tentativa de conciliação dos interesses antagónicos da burguesia e do proletariado), enquanto aquilo que Marx defende é a destruição revolucionária do capitalismo e a edificação de uma nova sociedade.

No entanto, não é, como salienta Allen Wood, por uma razão essencialmente “táctica” que Marx rejeita este ponto de vista. Na sua opinião, “se as instituições revolucionárias significam novas leis, novas formas de propriedade e de distribuição, isso não é um sinal de que a „justiça‟ foi por fim realizada (…); é, pelo contrário, um sinal de que um novo modo de produção com as suas formas jurídicas características nasceu do anterior. Este novo modo de produção não é „mais justo‟ que o velho, mas apenas justo à sua maneira” (Wood, 1972, pp. 269-270).

Wood recusa, portanto, avaliar os padrões de justiça dominantes nas sociedades capitalistas confrontando-os com aqueles que vigorariam nas sociedades pós- capitalistas, “pois tais normas não podem ser de todos racionalmente aplicáveis ao capitalismo” e seriam, portanto, nesse contexto, ”erradas, confusas e sem fundamento”. E acrescenta: “a tentação de aplicar padrões jurídicos pós-capitalistas (…) à produção capitalista só pode derivar, mais uma vez, da visão de uma sociedade pós-capitalista como um tipo de estrutura jurídica eterna com o qual o presente estado de coisas deve ser comparado e avaliado”, sabendo nós que “a concepção marxista da sociedade e da transformação social rejeita qualquer visão deste tipo” (Wood, 1972, p. 270).

Posto isto, será necessário recordar que Marx não se limita a prever o fim do capitalismo, mas considera que ele merece o fim a que está destinado. Mas, se não considera que o capitalismo se baseia numa injustiça, então qual é a razão da censura? Para Marx, o capitalismo condena a classe operária a uma espécie de servidão. O operário vê-se obrigado a vender a sua força de trabalho em troca de um salário e, em contrapartida, vê-se desapossado do produto do seu trabalho e perde o controlo sobre a sua própria vida. O trabalho deixa de ser uma forma de auto-realização para ser uma mera condição de sobrevivência. Submetido à disciplina da fábrica e transformado

45 numa peça da máquina que opera, vê a sua vida perder-se numa actividade penosa e repetitiva que o impede de se realizar plenamente como ser humano, frustrando o desenvolvimento possível de todas as suas capacidades. Segundo Wood, a condenação marxista do capitalismo não se faz em nome da injustiça, mas da liberdade e da emancipação.

No documento Marx, moralidade e justiça (páginas 43-46)