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4 OS FUNDAMENTOS TEÓRICO-POLÍTICAS NA PRODUÇÃO FEMINISTA

4.2 A tese do capitalismo indiferente às relações de gênero

No livro Democracia contra o capitalismo: a renovação do materialismo

histórico, especificamente no artigo “Capitalismo e emancipação humana: raça, gênero e

democracia”, Ellen M. Wood sinaliza a existência de impulsos emancipatórios fortes e promissores no campo que denomina de bens extraeconômicos, termo utilizado pela autora para se referir à “[...] emancipação de gênero, igualdade racial, paz, saúde ecológica, cidadania democrática” (WOOD, 2011, p. 227).

De acordo com Wood, é fato que, no interior das organizações socialistas, já não é mais tranquila a aceitação, sem discussão, de que a emancipação humana ocorrerá no campo econômico, ou seja, por meio da luta de classes. Para certos segmentos sociais, houve um deslocamento da luta de classes para o terreno das lutas dos bens extraeconômicos, ou uma ênfase maior nas lutas extraeconômicas. Essa posição leva Wood a afirmar que esses “[...] compromissos não resolvem as questões cruciais relativas a agentes e modalidades de luta, e certamente não resolvem a questão da política de classe” , fundamento estrutural da sociedade capitalista, senão vejamos:

Já não admite sem discussão na esquerda que a batalha decisiva pela emancipação humana vai ocorrer no campo ‘econômico’, o terreno da luta de classes [...]. Todo socialista deveria estar comprometido com esses objetivos –

na verdade, o projeto socialista de emancipação de classe sempre foi, ou deveria ter sido, um meio para o objetivo maior de emancipação humana .

Ao indagar quais tipos de opressão exercidos no capitalismo e que formas de emancipação ele tolera, Wood (2011) considera que cada bem extraeconômico possui uma relação específica com esse sistema. O capitalismo não é capaz de garantir bens

extraeconômicos como a paz e o equilíbrio ecológico, em razão da sua “lógica

expansionista, competitiva e exploradora”, em que tudo é submetido “[...] às exigências da autoexpansão do capital e do chamado crescimento, é inevitavelmente hostil ao equilíbrio ecológico” (WOOD, 2011, p. 228). No entanto, essas duas questões apresentam o problema da universalidade ao não se constituírem como forças sociais, devido à ausência de uma identidade social específica, ou podem vir a ter identidade social desde que se intercruzem, por exemplo, com as relações de classe (WOOD, 2011).

No caso de raça ou gênero, a situação é quase oposta à paz e ao equilíbrio ecológico. Apesar de o antirracismo e o antisexismo possuírem identidades sociais específicas, não é tão nítido “[...] que a igualdade racial e de gêneros sejam antagônicas ao capitalismo, nem que o capitalismo seja incapaz de tolerá-la, assim como é incapaz de garantir a paz mundial ou de respeitar o ambiente” (WOOD, 2011, p. 229). Segundo Wood, o capital não tem a tendência estrutural para ambas as desigualdades, e “[...] a exploração capitalista pode, em princípio, ser conduzida sem preocupações com cor, raça, credo, gênero, ou com a dependência de desigualdade ou diferença extraeconômica”, mas racismo e sexismo podem esconder “[...] as realidades estruturais do sistema capitalista e dividem a classe trabalhadora” .

O capitalismo é capaz de tolerar certos avanços nas conquistas das mulheres por ser indiferente às identidades sociais, ao considerar que a exploração capitalista não se ampara em “[...] identidades, desigualdades ou diferenças extraeconômicas políticas e jurídicas” , a exemplo da relação contratual de trabalho que se dá entre indivíduos livres e iguais. O próprio desenvolvimento do capitalismo contribuiu para que surgissem “[...] pressões ideológicas contra tais desigualdades e diferenças em grau sem precedentes nas sociedades pré-capitalistas” .

No caso de gênero, não é tão evidente que “[...] o capitalismo produziu formas mais extremas de opressão de gênero que as que existiam nas sociedades pré-capitalistas” ( p. 231) quando comparado ao racismo — que, sob o referido sistema, elaborou uma

ideologia intrínseca e natural de inferioridade para justificar a opressão colonial durante e após a abolição da escravidão.

Apesar da tendência a eliminar diferenças e diluir identidades, contraditoriamente, pode apresentar flexibilidade para usar ou descartar as opressões sociais em benefício próprio, combinando, paradoxalmente, a “[...] indiferença estrutural em relação a essa desigualdade extraeconômica, ou até mesmo pressão contra ela, e uma espécie de oportunismo sistemático que permite ao capitalismo aproveitar-se dela” ( p. 231).

Assim, a opressão de gênero nos países de capitalismo avançado pode ser usada tanto econômica quanto ideologicamente, ao constituir subclasses, podendo ou não se combinar com outras identidades sociais, além de oferecer uma espécie de cobertura ideológica que tira do foco central a luta de classes. Além disso, é uma forma de reduzir os custos do capital com a reprodução da força de trabalho ou uma crença disso, ao manter, na esfera privada da família, custos de gestação e criação de filhos. Mas tais custos não são qualitativamente diferentes dos demais para o capital, que, em geral, é hostil a todo tipo de custo.

No entanto, para Wood, mesmo tirando proveito da forma como as relações de gênero se organizam, essa opressão específica não é estruturante do capitalismo, e as lutas voltadas para o enfrentamento das desigualdades entre homens e mulheres não o põe em risco. Ademais, se permanecem isoladas da luta anticapitalista, terão poucas probabilidades de vitória. Vejamos:

[...] ele não é mais incapaz de tolerar a igualdade de gênero do que de aceitar a seguridade social [...]. Embora o capitalismo possa usar e faça uso ideológico e econômico da opressão de gênero, essa opressão não tem status privilegiado na estrutura do capitalismo. Ele poderia sobreviver à erradicação de todas as opressões específicas das mulheres, na condição de mulheres – embora não pudesse, por definição, sobreviver à erradicação da exploração de classe. Isso não quer dizer que o capitalismo tenha passado a considerar a liberação das mulheres necessária ou inevitável. Mas significa que não há necessidade estrutural específica de opressão de gênero no capitalismo, nem mesmo uma forte disposição sistêmica para ela [...]. As lutas concebidas em termos exclusivamente extraeconômicos – puramente contra o racismo, ou contra a opressão de gênero, por exemplo – não representam em si um perigo fatal para o capitalismo, que elas podem ser vitoriosas sem desmontar o sistema capitalista, mas que, ao mesmo tempo, terão pouca probabilidade de sair vitoriosas caso de mantenham isoladas da luta anticapitalista. (WOOD, 2011, p. 232)

A tese do capitalismo indiferente às relações de gênero, ou a possibilidade de superação do patriarcado em países capitalistas avançados, é uma das mais aceitas pelos teóricos marxistas que consideram a opressão de gênero desnecessária ao capitalismo,

numa espécie de relação contingente e oportunista, ao considerar o capitalismo indiferente às identidades sociais das pessoas que explora, tornando-o “capaz de prescindir das desigualdades e opressões extraeconômicas” (WOOD, 2011, p. 241). Embora o capitalismo possa tanto se utilizar da opressão de gênero em benefício próprio quanto descartá-la, não significa que “seja capaz de garantir a emancipação de gênero ou raça”, bem como “a conquista dessa emancipação também não garante a erradicação do capitalismo” . De acordo com Wood, a indiferença pelas identidades extraeconômicas, ao mesmo tempo,

[...] torna[-o] particularmente eficaz e flexível o seu uso como cobertura ideológica pelo capitalismo. Enquanto nas sociedades pré-capitalistas as identidades extraeconômicas acentuavam as relações de exploração, no capitalismo elas geralmente servem para obscurecer o principal modo de opressão que lhe é específico. E, apesar de o capitalismo tornar possível uma distribuição sem precedentes de bens extraeconômicos, ele o faz

desvalorizando-os. (WOOD, 2011, p. 241)