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A Tese do Resquício e a Tese da Eliminação

No documento Dilemas morais, erros inevitáveis e trauma (páginas 55-57)

Em que sentido seria razoável, então, defender a tese do erro moral inevitável? De acordo com Gowans (1994, p. 89) há um sentido “diferente” em que a tese do “erro moral inevitável” é possível de ser defendida, e ele está baseado na hipótese de que possa haver um erro de ação mesmo quando o agente tiver agido conforme o que é requerido pela conclusão correta da deliberação moral (ou seja, quando se aceita TO ao invés de TD). Só assim, se poderá estabelecer uma justificação adequada para a tese do erro moral inevitável, não mais baseada em TD. Essa ideia, no entanto, parece estranha, afinal é difícil imaginar como alguém possa incorrer em um erro moral, mesmo agindo de acordo com uma conclusão de deliberação moral correta. O argumento que sustenta essa ideia é complexo. Ele está principalmente baseado na “Tese do Resquício”.

Neste sentido, a doutrina de que o erro moral é às vezes inevitável (é importante deixar isso em destaque, não é sempre que ele acontece), pode ser tomada como sendo uma situação na qual o agente transgredirá um valor moral, não importando o que faça. Versões diferentes dessa doutrina são possíveis, baseadas em ideias diferentes sobre valores morais. Mas basicamente um fato sustenta todas elas: “Assumindo que TD é falsa [...] todas elas supõem que os valores morais possuem alguma independência com relação às conclusões [morais] deliberativas” (GOWANS, 1994, p. 90).

Em suma, pode-se formular a questão do erro moral inevitável da seguinte maneira: o debate a respeito da existência de conflitos insolúveis já foi resolvido. TO é capaz de solucioná-los e TD foi completamente rejeitada. A única questão remanescente no debate dos dilemas morais é a do erro moral inevitável – que pode ser atribuída tanto a conflitos solúveis quanto a conflitos insolúveis/simétricos.

Aqueles que defendem a ideia do erro moral inevitável, afirmam que após a deliberação moral, há um “resquício moral”, que é capaz de explicar a presença do erro inevitável mesmo em decisões que tiverem obedecido à conclusão deliberativa correta. Isso ocorre da seguinte forma: em um dilema moral em que a deliberação correta estabeleceu que,

todas-as-coisas-consideradas, se deve fazer A, as razões que sustentavam a realização da ação conflitante B, persistem como um “resquício moral”. Tal resquício faz com que a não realização de B seja “errada” em algum sentido.

Já aqueles que se opõem à visão do erro moral inevitável, coloca Gowans (1994, p. 91) afirmam que este erro pode sempre ser evitado e mantêm que tais resquícios não existem. Procedem da seguinte maneira: estabelecer que A deve ser feito após a deliberação moral, é o mesmo que estabelecer que B não possua nenhum apelo moral genuíno na situação, mas apenas “aparentou” ter. Nesta visão, a deliberação moral é capaz de eliminar qualquer resquício moral que poderia tornar o erro moral inevitável. A Tese do Resquício é, portanto, decisiva na abordagem da tese do erro moral inevitável. Após estas colocações Gowans (1994, p. 91) realiza uma divisão entre aqueles que defendem a Tese do Resquício e aqueles que a ela se opõem, sendo representados pela “Tese da Eliminação”, ambas as teses expostas a seguir:

Tese do Resquício (TR): TO é verdadeira, mas há dilemas morais nos quais o que quer

que o agente faça, ele ou ela, fará algo moralmente errado no sentido de transgredir algum valor moral.

Tese da Eliminação (TE): TO é verdadeira, e não há dilemas morais nos quais, o que

quer que o agente faça, ele ou ela fará algo que seja, em qualquer sentido, moralmente errado.

Nesse momento, torna-se explícito que a discussão sobre os dilemas morais deixa de ser uma disputa entre TO e TD. Por causa disso, no nível da discussão do erro moral inevitável não se pode mais fazer uma oposição entre os autores como se fez entre “racionalistas” e “experiencialistas”, que disputavam os argumentos entre TO e TD - alguns racionalistas aceitarão alguns aspectos de TR. Donagan (1996), por exemplo, invoca o conceito de deveres prima facie 16 para explicar o resquício, enquanto outros falam de “custos

morais”. As divisões entre os autores não são muito claras, mesmo entre os experiencialistas,

16

De acordo com Donagan (1996, p. 20), uma vez que um dever prima facie de Ross é potencial e não real, este não pode estar em conflito com o dever prima facie mais forte realizado pelo agente. Este dever mais forte (que passou a ser um dever considerando-se-todas-as-coisas ou não qualificado) enfraqueceu o outro dever prima

facie. Depois que isso acontece, deveres prima facie não apresentam mais influência sobre o agente. Contudo,

Donagan acredita que o dever prima facie não escolhido em um conflito insolúvel é capaz de explicar a existência de um resquício (afinal foi um dever que não foi cumprido, e pode preservar certa influência, pois tinha o mesmo peso daquele que foi escolhido), mas disso não é possível derivar qualquer erro inevitável.

de acordo com Gowans (1994, p. 91). Isso posto, seria interessante sistematizar a discussão que se obteve até aqui da seguinte forma:

1) Argumentos em favor TR: há “algo” que permanece de um dilema moral após o processo de deliberação moral, e que explica a presença de erro inevitável mesmo quando a conclusão correta da deliberação foi seguida. Falhar na obediência de um dos deveres é errado, em algum sentido, mesmo que tenha sido o resultado de uma deliberação racional e coerente.

2) Argumentos em favor de TE: erros morais são sempre evitáveis e não há algo como resquício moral, uma vez que estabelecer por meio da deliberação que, A deve ser feito, é o mesmo que estabelecer que B não apresenta um apelo moral genuíno, embora tenha parecido apresentar no momento do dilema. Nessa visão, a deliberação elimina qualquer resquício moral que possa tornar o erro moral inevitável.

3) Posição intermediária: uma versão de TR que afirma que ao fazer o que “todas as coisas consideradas” deve ser feito pode acarretar “custos morais” ou violar deveres “prima

facie”. Essa posição admite o resquício, mas não deriva do mesmo um erro. Brink (1994) é

um exemplo desta última visão.

Diante do exposto pode-se afirmar categoricamente que uma defesa plausível do erro moral inevitável passa pela admissão da Tese do Resquício. Dessa forma, foram expostas as condições básicas de tal defesa. Tendo-se realizado tal tarefa, a partir de agora será possível demonstrar na próxima subseção, de forma sistematizada, os argumentos e hipóteses estruturantes da defesa do erro moral inevitável aqui pretendida.

2.5 Problema remanescente: estratégia argumentativa em defesa da possibilidade do

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