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Em seu art. 1º, caput e parágrafo único, a Constituição Federal de 1988 funda o Estado Democrático de Direito na República Federativa do Brasil e atribui ao povo, do qual o poder emana, a titularidade do poder constituinte.

Dar ao povo tal titularidade significa defender a primazia do princípio democrático nos estados. O poder constituinte sempre existiu, mas a teria sobre este é criação

86 Ibid., 2011, p. 87.

relativamente recente, do século XVIII, embora desde a Grécia (MACEDO, 2003, p. 149)87

existissem indícios do que futuramente representaria a dimensão teórica desse Poder.

Arnaldo Vasconcelos88 trataria da constitucionalização do poder legítimo em

norma jurídica e, em seu entendimento, presunção de produção da norma seria sua legitimidade. Assim, nos regimes antidemocráticos, a norma sempre seria ilegítima, por mais que cumprisse outros requisitos. A democracia é, então, exaltada como regime político que propicia, nas palavras do autor, condições reais de liberdades, o que governo autocrático algum, despiciendo pudesse ser eficaz e justo, poderia proporcionar. Possibilidade de rompimentos à ordem normativa posta, através do poder revolucionário, seria, para o autor, uma das únicas exceções à regra anteriormente apresentada 89.

Caberia, pois, ao legislador, na observância da legitimidade, caminhar, pari passu, com essa para a produção normativa. É o que Bonavides entendeu como sendo uma relação de maior coincidência, por assim dizer, entre legalidade e legitimidade.90. E, ainda que se

reconheça que a legitimidade seria fulcro da legalidade e mais material, enquanto a legalidade seria mais formal, houve doutrinariamente correntes que questionaram a própria natureza do poder constituinte.

Assim, por algum tempo, assumiram grande relevância os questionamentos quanto à natureza do poder constituinte. Para alguns, os positivistas, como o jurista Hans Kelsen91, tratava-se de poder de fato, que se legitimava em si mesmo, desapegado, portanto,

de valores da existência humana, a exemplo de ética, princípios, moral; dessa forma, a legitimidade do poder partiria de seu próprio processo de elaboração. Afastava-se, assim, a noção de soberania popular da de soberania nacional, enquanto realidades legitimadoras do poder constituinte.

Contudo, para os jusnaturalistas, entre os quais Emmanuel Joseph de Sieyès, o poder constituinte seria um poder de direito (natural), conceito este já ensaiado por São Tomás de Aquino92, e não positivo, porque haveria valores superiores à própria existência

humana, dos quais tal poder não poderá se afastar. Muitos veem essa conclusão como o aporte ao princípio constitucional da vedação ao retrocesso.

87 MACEDO, Dimas. Política e Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris Ed., 2003.

88 VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica (4ª ed.). Rio de Janeiro: Malheiros Editores, 1996. 89 Ibid., 1996, p. 246-247.

90 BONAVIDES, op. cit., 2001, p. 113. 91 MACEDO, op. cit., 2003, p. 179-180. 92 Ibid., 2003, p. 153.

Já às vésperas da Revolução Francesa, inclusive, com a distribuição do manifesto insurgente “O que é o Terceiro Estado?” 93, Sieyès já questionava a estrutura de poder na

França, tendo sido o referido documento fundamental para a transferência da base do poder político, que começa a se fundar em uma Constituição, legitimada pelo povo, passando de uma minoria para uma maioria.

Não obstante, sabe-se que muitos dos processos revolucionários liderados no âmago da democracia burguesa parlamentar corresponderam muito mais aos interesses burgueses do que a qualquer um outro, de natureza popular94. A parcialidade, as tendências e

os favorecimentos no âmbito de processos multifásicos como a Revolução Francesa, marcados por avanços e retrocessos no sentido de oitiva popular sobre os rumos revolucionários, seria vista, historicamente, como danosa ao pleno e legítimo governo democrático, representando verdadeiro empecilho à sua realização.

O poder constituinte deverá ir além, não devendo bastar ao processo de elaboração ou modificação de uma Constituição. Nessa perspectiva, nas palavras de Friedrich Müller95:

[...] é importante que [...] não represente mais apenas, como texto de norma constitucional, um acontecimento temporalmente definido ou o processo de preparação da constituição, de sua deliberação e de realização da votação sobre seu anteprojeto, mas que ele atue como norma para um critério de aferição, perdurante no tempo, fundamentadora da legitimidade da Constituição segunda a sua pretensão: legitimação por meio da permanência da práxis constitucional no “cerne” material. Ocorre que nessa forma temporalmente durável, o poder constituinte não pode ser exercido realmente, mas apenas simbólica ou mediatamente “pelo povo” (pela não- revolução, pela não-resistência, pela participação nas eleições e votações). Para “o povo”, a alegada realização do poder constituinte nessa modalidade não é, em primeira linha, eficaz por meio de textos de normas ou por meio da observância de textos de normas, mas deve ser – mediante uma regressão – afirmada em ampla medida por textos ideológicos. (MÜLLER, 2004, p. 53, grifo do autor).

Despiciendo dizer que se entende aplicável esse pensamento de Müller, muito embora sua obra esteja relacionada mais atidamente à Lei Fundamental de Bonn, hoje vigente como norma suprema na Alemanha, ao poder constituinte do povo de forma geral.

Voltando-se ao caso brasileiro, da leitura do art. 1º, parágrafo único, da CF/88, tem-se que o povo é o titular do poder constituinte, seja o originário, que impulsiona a criação de uma Constituição; seja o derivado, em sua dimensão reformadora ou dimensão decorrente.

93 Ibid., 2003, p. 171.

94 Ibid., 2003, p. 181.

95 MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo. Tradução de Peter Naumann. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. Tradução de: Fragment (uber) Verfassunggebende Gewalt des Volkes.

Contudo, não se pode confundir a titularidade, o emanar desse poder, que é nato ao povo, com seu respectivo exercício.

Admite-se constitucionalmente que o exercício da soberania popular ocorra por meio de representantes desse povo, ou seja, seus parlamentares (vereadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores) bem como prefeitos, governadores e presidentes; ou pelo próprio povo, de forma mais direta, pelos instrumentos constitucionais, especialmente os elencados no art. 14, incisos I, II e III96, da CF/88.

Não se há de perder de vista, portanto, o princípio da constitucionalidade97 como

garantidor da proteção a tal arcabouço e, ao mesmo tempo, como viabilizador da melhor condução, por parte do Poder Público, da sociedade, para que aquele aja ou deixe de agir sempre de forma legítima, por meio de técnicas como a rigidez constitucional, que apresenta as maiores dificuldade para alteração formal da Constituição; pelo princípio da supremacia constitucional, com a Constituição servindo de fundamento para todo o ordenamento jurídico, por estar no cume de determinado sistema jurídico; bem como pelo princípio da conformidade dos atos do Poder Público às normas e princípios constitucionais.

É relevante destacar, ainda, a necessidade de que a atuação dos membros dos três poderes da República, em especial do Legislativo, e do Executivo também, corresponda aos interesses do povo, que os elege e do qual são representantes; a falta dessa correspondência e os costumes retrógrados ainda arraigados na representação política pátria é um desafio prático à realização dos direitos elencados na Constituição Federal atual e, ao mesmo tempo, corrobora com a defesa de uma responsabilização mais efetiva sobre os atos desses representantes, ação que poderia estar inserida no bojo de uma reforma política ampla, há tanto defendida no âmago do País.