• Nenhum resultado encontrado

A tradução do sentido e a infidelidade do tradutor

3.1 ASPECTOS TEÓRICOS DA TRADUÇÃO

3.1.1 A tradução do sentido e a infidelidade do tradutor

Em A tradução e a letra ou o albergue do longínquo, Antoine Berman (2007) relata que durante um seminário ocorrido no Collège

International de Philosophie, em Paris, no ano de 1984, sua menção à

expressão “tradução literal” provocou mal-entendidos na platéia, especi- almente entre os tradutores tidos como profissionais, mal-entendidos esses que o autor não conseguiu resolver por completo. Para sua audiên- cia, a expressão utilizada significava tradução “palavra por palavra”, prática considerada como quase que inaceitável por um tradutor experi- ente. O problema criou-se pela confusão que existe entre a palavra e a letra de um texto. Enquanto defendia a tradução literal como sendo a tradução da letra de um texto, sua plateia a entendia como defesa da tradução palavra por palavra. Para esses profissionais, traduzir é buscar equivalentes, é buscar a transmissão do sentido, transmissão essa que deve tornar o texto traduzido mais claro, limpá-lo das obscuridades, da estranheza inerente à língua estrangeira. É rejeitar o Outro em favor do Próprio21. É submeter à cultura própria tudo o que se encontra fora dela,

21 As expressões Outro e Próprio foram utilizadas por Berman em A prova do estrangeiro (2002) e podem, por analogia, ser ligadas aos binômios estrangeirização/domesticação, tradu- ção da letra/tradução do sentido.

numa prática classificada pelo autor como tradução etnocêntrica. Cabe- nos agora o seguinte questionamento: de onde vem a prática da tradução como tradução do sentido, como ela se opera e quais bases a sustentam? Segundo Berman (2007), a tradução do sentido nasceu em Roma e é visível nas traduções anexionistas, com os textos, as formas e os termos gregos sendo latinizados. Porém, apesar de terem sido os roma- nos os primeiros a evidenciar essa prática, sua essência está calcada no pensamento grego, mais precisamente em Platão. Berman (2007) deno- mina de corte platônico a separação feita por Platão entre o sensível e o inteligível, entre o corpo e a alma e, por extensão – no que diz respeito à tradução –, entre o sentido e a letra de um texto. O corte platônico tem suas bases na ideia da existência de um logos, ou sentido universal, do qual todas as línguas estariam impregnadas. Com esse pensamento, todas as línguas seriam dotadas de um sentido invariante e, em existindo esse sentido, a forma pela qual ele é transmitido não teria relevância. Eis onde sentido e letra são dissociados.

O autor aponta três características da tradução do sentido: em termos culturais, ela é etnocêntrica, ou seja, reduz tudo à cultura para a qual se traduz; em termos literários, ela é hipertextual, na medida em que as mudanças implementadas por essa redução ao que é doméstico implicam alterações que ultrapassam o limite imposto pelo texto origi- nal; e em termos filosóficos, a tradução é platônica, pois dissocia em um texto o sentido de sua letra. Para ele, essas três características encobrem outras três, porém ligadas ao respeito à letra: a ética, a poética e a tradu- ção filosófica, dos quais ele analisa apenas os dois primeiros, já que o terceiro demandaria um estudo bastante particular e extenso (BERMAN, 2007).

Sobre o etnocentrismo, Berman (2007, p. 29) nos apresenta a visão de tradução de Colardeau, poeta francês do século XVIII, segundo o qual “Se há algum mérito em traduzir, só pode ser de aperfeiçoar, se possível, seu original, de embelezá-lo, de apropriar-se dele, de lhe dar um ar nacional e de naturalizar, de certa forma, esta planta estrangeira”. Essa concepção de tradução gerou na França dos séculos XVII e XVIII as famosas “belas infiéis” – obras em que o tradutor realizava alterações no texto traduzido de acordo com seu gosto e vontade, independente do texto original da obra estrangeira.

Ainda sobre a tradução etnocêntrica, Berman aponta os dois prin- cípios nos quais ela se baseia: “[...] deve-se traduzir a obra estrangeira de maneira que não se ‘sinta’ a tradução, deve-se traduzi-la de maneira a dar a impressão de que é isso que o autor teria escrito na língua para a qual se traduz” (BERMAN, 2007, p. 33).

Com base nesses dois princípios, podemos deduzir que, numa tradução, as marcas da língua de origem acabarão sendo apagadas; que a tradução buscará respeitar os padrões normativos da língua para a qual se traduz; que ela tentará não chocar com “estranhamentos”, sejam eles lexicais ou sintáticos. Para tanto, o tradutor fará uso de processos literá- rios. Eis o ponto onde, segundo o autor, a tradução etnocêntrica torna-se hipertextual.

Para Berman (2007, p. 29), hipertextual remete a “qualquer texto gerado por imitação, paródia, pastiche, adaptação, plágio, ou qualquer outra espécie de transformação formal, a partir de um outro texto já existente” (grifo do autor). Todas essas relações de hipertextualidade agem de forma livre e mesmo lúdica sobre um texto original. O resulta- do disso são adaptações, pastiches, textos novos que têm sua origem em um texto anterior, mas não são necessariamente sua tradução. É prová- vel que dessa prática em que se adapta, se imita, ou se pasticha um texto sob a alegação de que se está traduzindo-o, tenha advindo o conhecido adágio italiano tradutore traditore22.

Nos séculos XIX e XX, a prática da tradução como tradução do sentido, em uso na França e nos Estudos Unidos, começou a ser questi- onada, mas esse questionamento não necessariamente alterarou o câno- ne vigente. A confirmação disso quem nos dá é Lawrence Venuti (1995). Em sua obra A invisibilidade do tradutor, Venuti (1995, p. 1) afirma que um texto traduzido, seja ele poesia ou prosa, ficção ou não ficção,

[...] é julgado aceitável pela maioria das editoras, revisores e leitores quando apresenta leitura fluen- te, quando a ausência de qualquer peculiaridade linguística ou estilística o faz parecer transparen- te, dando a impressão de que reflete a intenção ou personalidade do autor, ou o significado essencial do texto estrangeiro – a impressão, em outras pa- lavras, de que a tradução não é de fato uma tradu- ção, mas o “original”.

Como se observa pela argumentação de Venuti (1995), o etnocen- trismo continua presente na cultura contemporânea da tradução. A exi- gência dos editores por traduções fluentes, claras, por traduções escritas dentro dos limites da língua-padrão na cultura para a qual se traduz,

22

somada à mínima relevância dada ao tradutor nesse processo, fortalece o cânone da tradução do sentido.

Outro fator, segundo Venuti (1995), responsável pela manutenção do cânone da fluência em tradução, advém da crítica especializada. Crí- ticos apontam como as melhores traduções aquelas que são claras, escri- tas de acordo com a língua padrão, livres de jargões e expressões idio- máticas estrangeiras. “Uma tradução fluente é imediatamente reconhecí- vel e inteligível, ‘familiarizada’, domesticada, não desconcertan- te[mente] estrangeira, capaz de dar ao leitor livre ‘acesso a grandes pen- samentos’, ao que está ‘presente no original’.” (VENUTI, 1995, p. 5; grifos do autor).

Apesar da dimensão e do status canônico alcançado pela prática da tradução como tradução do sentido – em grande parte avalizada por teorias que a justificam23 –, outras reflexões buscam resgatar a essência perdida e articular de forma consciente essa prática, como abordaremos a seguir.

Documentos relacionados