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A Tradução e os Modos de Ser da Linguagem

No documento Linguagem e dialética em Walter Benjamin (páginas 61-63)

CAPÍTULO III – A Tradução como Manifestação Histórica da Linguagem Pura

2. A Tradução e os Modos de Ser da Linguagem

Foi visto no capítulo anterior, a partir da leitura do manuscrito de 1916, que a tradução pertence a todo desenvolvimento da autodiferenciação da linguagem em todas as suas esferas. Assim, no sentido metafísico, a tradução é a passagem dos diferentes modos de ser da linguagem geral para a linguagem pura do nome. As coisas possuíam sua diferenciação e se redimiam do seu caráter inefável na forma do nome. O nome é a esfera de identidade entre as essências espiritual e lingüística. Como manifestação histórica o nome decai para uma esfera judicativa em que há o privilégio da comunicação de conteúdos verbais. A mera comunicação de signos representativos não possui mais uma relação perfeita com a essência das coisas restando sempre algo de inexprimível na realidade em si. Esta esfera do juízo é superada quando o signo expressa historicamente o elemento não-comunicável nas diversas linguagens decaídas. Este elemento é a própria essência da linguagem que se manifesta no ato de nomear as coisas em sua essência. Sendo este ato a própria condição da existência da comunicação.

No texto de 1921, Benjamin retoma a questão da tradução a partir de seu caráter histórico, porém não deixa de remeter o estrangeirismo das diversas linguagens a uma esfera mais elevada que garante entre elas um certo parentesco. Todo este ensaio tem como objetivo expor a necessidade de se tomar a esfera metafísica do nome como fundamento da esfera discursiva a serviço da comunicação. O confronto das linguagens históricas sempre pressupõe um terceiro elemento que está para além da efemeridade dos conteúdos verbais.

Esse elemento metafísico que perpassa toda a multiplicidade das linguagens históricas surge, para Benjamin, a partir de uma exigência que a linguagem assume para si e que a obriga a admitir um único conteúdo universal possível para toda sua manifestação histórica, que como foi exposto no capítulo anterior, é a própria linguagem nomeadora. Esta essência ou substância que permeia todas as linguagens é justamente o terceiro elemento que, por mais que seja denunciado, nunca é expresso diretamente na comunicação. Mas qual o

papel da tradução nesta relação entre as diversas linguagens e este terceiro elemento que garante uma unidade metafísica na totalidade desta diversidade?

Toda tradução é linguagem, mesmo que em transformação ou movimento. Ela é o momento de diferenciação interna que a linguagem geral possui ao se determinar em seus diferentes modos. É no confronto entre os modos de ser da linguagem que a tradução surge como uma exigência de síntese e de pressuposição de uma terceira linguagem. Estas exigências da tradução transparecem uma essência ou substância que perpassa as várias linguagens e lhes garante uma possibilidade de elevação. Mas do ponto de vista de uma obra literária o que está sendo traduzido? Qual a tarefa do tradutor ao manifestar a superação da alteridade entre as linguagens sem ao mesmo tempo anulá-las? É o tradutor um filósofo da linguagem?

Para responder a estas perguntas, Benjamin expõe dois modelos de tradução: uma mais convencional que busca, na reprodução de sentido, a tarefa do tradutor, e outra que recusa esta reprodução semântica e revela no original a própria essência da linguagem. Seguindo o manuscrito de 1916, pode-se dizer que este primeiro modelo de tradução pertence às concepções burguesas da linguagem e o segundo à própria perspectiva benjaminiana da linguagem.

A tradução voltada para a comunicação de um sentido é própria das teorias que instrumentalizam a linguagem, por se prenderem ao aspecto judicativo da linguagem e não ao nomeador. Neste modo de tradução o importante é o receptor da obra traduzida e o conteúdo do original deve ser completamente consumido pela língua tradutora. Para Benjamin, estas traduções são “comme une transmission inexacte d’un contenu inessentiel [unwesentlichen Inhalts].”64 Ora, o

64 BENJAMIN, Walter. La tâche du traducteur. p. 245. No alemão: p.50. No português: “(...) como

uma transmissão inexata de conteúdo inessencial”. p. 289. A tradução francesa usada nesta pesquisa é a de Maurice Gandillac, revisada por Rainer Rochlitz. Existe uma tradução portuguesa de Susana Kampff Lages, nos anexos de sua tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, cf. Referências, porém a francesa é uma tradução de especialistas respeitados internacionalmente, por isso a escolha dela como referência para pesquisa que resultou nesta dissertação. Contudo, as citações em português estão nas notas

conteúdo é inessencial por que a relação mesma da linguagem consigo é acidental, pois neste modelo a realidade expressa é tomada como externa a linguagem, havendo uma autonegação de si do sujeito falante que admite um teor de ceticismo na sua relação com o mundo. Esta alienação da linguagem em si mesma, que foi exposta no texto sobre a essência da linguagem de 1916, é recusada por Benjamin e o faz exigir um novo modelo de tradução que seja uma auto-referência de si da linguagem. Logo, o importante não é a comunicação de conteúdos verbais, mas a exposição de si da linguagem em sua essência a partir do confronto das diversas línguas determinadas historicamente.

O que está sendo dito é que assim como no manuscrito de 1916 havia o embate de dois modelos de teoria lingüística, no de 1921 também há. A relação entre linguagem e realidade (ou o paradoxo do Logos – razão e linguagem) retorna implicitamente na discussão sobre o tema da tradução de obras literárias. Resta saber como Benjamin fundamenta seu conceito de tradução e resolve as questões referentes ao problema da passagem ou da transformação das línguas entre si.

No documento Linguagem e dialética em Walter Benjamin (páginas 61-63)