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1 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

1.3 O fenômeno transcultural

1.3.3 A transculturação na contemporaneidade

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reconstrução criativa de valores a que se refere Ángel Rama acontece, nas obras mencionadas, por meio da reinvenção cultural do passado: personagens anteriormente silenciadas, marginais, consideradas secundárias, deixam de ser coadjuvantes para ganhar voz e importância no diálogo estabelecido com o presente.

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“entre-dois” – entre-lugar, zona de contato, fronteira, dentre outras variantes recorrentes nos estudos da contemporaneidade –, em que os sujeitos produtores de arte fazem uso da diversidade cultural, o que efetiva a hibridação.

A transculturação é, segundo Bernd, caracterizada pelo choque, transição ou passagem entre culturas, o que proporciona o surgimento de novos produtos culturais, ao contrário de meras “perdas, apagamentos ou apropriações”47. No processo, as influências se fazem nos dois sentidos e são geradoras de outras possibilidades culturais. Um exemplo desse fenômeno, mencionado pela autora, é o Movimento Antropófago, quase vinte anos anterior às idéias de Ortiz, segundo o qual deveria haver uma assimilação de elementos culturais na “devoração” da cultura do Outro. A partir da recepção crítica desses elementos surgem expressões culturais miscigenadas, tão presentes nas múltiplas identidades culturais brasileiras – processo “incompleto e inconcluso” de transferências marcado pela seletividade dos elementos que ocorre, em manifestos dessa natureza, de forma consciente: a liberdade de escolha é pressuposto básico nas produções decorrentes do movimento.

Bernd remonta inevitavelmente a Ángel Rama, responsável pela noção de transculturação narrativa latino-americana, para quem as produções ficcionais nas Américas resultam em uma “terceira margem”, nova, não caudatária da cultura vencedora nem da vencida. Segundo Rama, os autores tornam-se mediadores culturais situados numa zona de fronteira entre dimensões “regionais e universais”, na qual a transculturação constitui um processo de resultado sempre heterogêneo.

Para Bernd os processos transculturais e seus conceitos correlacionados, tais como o de hibridação cultural ou de reatualização48,

47 Op. cit., p. 2.

48 A noção de reatualização, proposta pelo quebequense Jocelyn Létourneau, agrega-se ao pensamento das transferências culturais e, segundo seu proponente, mostra-se mais funcional do que os conceitos que considera “modismos advindos da pós-modernidade”, tais como mestiçagem, crioulidade, hibridação e mesmo transculturação. Tal funcionalidade vem, para ele, do fato de que na reatualização cultural há transformação de um patrimônio sem que isso signifique a exclusão de uma herança – trata-se da conversão de uma identidade sem a negação da personalidade; e a emancipação de um “eu” sem sua alienação. Dessa forma, o retorno a

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correspondem à inegável necessidade de desconstruir a falsa idéia de dependência cultural latino-americana. O conceito de transculturação, relacionado às transferências culturais, permanece e prevalece por ser operacional, tendo forte repercussão na formação identitária das Américas, e ainda por eliminar os binarismos. Trata-se de uma proposta terminológica que considera a formação cultural a partir das mesclas, seja do choque entre culturas ou do resgate de elementos culturais herdados, além de respeitar a diversidade e autonomia das formas culturais americanas com relação às elites européias. Embora não seja a proposta deste estudo aprofundar discussões terminológicas, a transculturação, defendida por Zilá Bernd também no texto Estudos canadenses e transculturalismos, em razão de sua pertinência é retomada aqui:

O prefixo trans, que comporta as noções de ultrapassagem, de passar além, de sair de si mesmo, gera novas formas de conhecimento e de relação com o mundo, sendo, portanto, mais performante, no incontornável contexto de mundialização no qual vivemos, do que inter(cultural), multi(cultural) ou re, como em reatualização, proposto por Jocelyn Létourneau, pois o processo de transculturação parece ser aquele que melhor se ajusta à realidade da condição pós-moderna onde há trocas, perdas e ganhos nas passagens de uma cultura à outra.49

Quanto ao problema do binarismo citado acima, Bernd dirá, ainda, que as operações transculturais implodem as oposições “centro-periferia, colonizador/colonizado” e

criam condições favoráveis à emergência de uma dialética fecunda, dando origem a novos lugares de enunciação no contexto das Américas. O conceito de transculturação, definido, aliás, pela primeira vez pelo cubano Fernando Ortiz, em 1940, tem a grande vantagem – assegurada por sua própria etimologia associada às transposições, pois origina-se de transire que significa passar para o outro lado – de ser um processo de transformação, não um processo de identificação ou de assimilação.50

O brasileiro Octavio Ianni figura entre os teóricos que pensam a transculturação na atualidade. Ele acrescenta à transculturação as dimensões

heranças culturais redefine-as com base em um reconhecimento do Outro sem a necessidade de tornar-se esse Outro. Op. cit., p. 6.

49 BERND, 2005, p. 149-150.

50 Idem.

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identitária e de alteridade. Para ele, a transculturação pode ser observada na história dos povos e coletividades, configurando

um processo sempre permeado de identidades e alteridades, tanto quanto de diversidades e desigualdades, mas compreendendo sempre o contato e o intercâmbio, a tensão e a luta, a acomodação e a mutilação, a reiteração e a transfiguração.51

A transculturação representa, portanto, uma perspectiva mais aberta de compreensão da multiplicidade das formações culturais – e, conseqüentemente, identitárias –, por não haver mais espaço para a bipolaridade de conceitos. O estágio de maturidade em que se encontram as discussões evidencia a necessidade de se pensar sempre as manifestações culturais a partir de sua pluralidade. Na literatura, entendida enquanto meio de expressão (trans)cultural, os estudos culturais encontram terreno fértil para a emergência da multiplicidade das identidades.

As idéias defendidas por Zilá Bernd configuram um importante exemplo de que os estudos das transformações culturais, sobretudo no âmbito das Américas, têm alcançado avançados estágios de reflexão, com idéias propostas por autores partidários das mais diversas tendências, o que não deixa dúvidas a respeito de sua relevância na atualidade, nem da sua pertinência quando da tentativa de compreensão dos processos de construção identitária empreendidos na literatura, a exemplo dos verificados nas narrativas aqui analisadas.

51 IANNI, 2003, p. 95.

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