• Nenhum resultado encontrado

Quando se fala em transição entre etapas da educação básica, não está se referindo especificamente a um processo burocrático, em que são transferidos apenas prontuários de uma instituição a outra, mas está se falando da transição da criança enquanto sujeito, e de todo o processo existencial envolvido, em que ela deixa de ser criança e passa a ser estudante assumindo, assim, uma nova função social. No entanto, é preciso ressaltar que, mesmo se tornando estudante, ela não deixa de ser criança, como ressalta o vídeo da série “Cá entre nós” (CÁ, 2020).

Para estudar a transição entre a educação infantil e o ensino fundamental é válido ressaltar que atualmente, no Brasil, essa transição ocorre quando a criança está com seis anos, conforme a lei nº 11.114/05. Após a alteração da LDB 9394 (1996) em relação ao ingresso da criança no ensino fundamental, a lei nº 11.274 de fevereiro de 2006 promulgou que, o ensino fundamental passaria a ter uma duração de nove anos, prevendo que até o ano de 2010 tal lei fosse implementada.

Como todo processo de transição é acompanhado de emoções, medos e expectativas e, quase sempre ocorrem perdas e separações daquilo que já era vivido e conhecido, no processo de transição entre as etapas da educação básica a criança também passa por esses sentimentos e sensações e, por isso, esse processo passa a ser estudado.

Isso porque, toda transição implica em uma mudança, seja na rotina, novas aprendizagens ou novas regras, e sempre resulta em um novo contexto, até então desconhecido. Por isso, a transição entre a educação infantil e o ensino fundamental precisa ser estudada, pois, o adiantamento do ingresso da criança no ensino fundamental gera diversas dúvidas e questões que, mesmo depois de 10 anos do limite para a implantação, ainda não foram respondidas (SIM-SIM, 2010).

Questões como: o ingresso da criança de 6 anos no ensino fundamental é a melhor opção para o desenvolvimento da criança? O primeiro ano do ensino fundamental irá manter o mesmo currículo da última etapa da educação infantil? A criança que acaba de ingressar no ensino fundamental estará pronta para o processo de alfabetização? Ou esse processo será iniciado ainda na educação infantil? Como promover uma transição que não cause uma ruptura no processo de ensino e

aprendizagem? Os sentimentos e sensações da criança serão valorizados e compreendidos ao longo desse processo, visando a adaptação da mesma ao novo nível de ensino?

No estudo de Moss (2008) que trata sobre o processo de transição e também de associação entre as etapas da educação básica em questão, o autor apresenta quatro possíveis relações entre a educação infantil e o ensino fundamental, que levam em consideração o contexto em que estão inseridas essas instituições. A primeira relação citada por ele é baseada no conceito de escolarização, ou seja, consiste no preparo da criança para a escola sendo a função da educação infantil colocar a criança nos moldes e com certos padrões impostos pela cultura escolar. A segunda relação é baseada na divergência entre propostas e ações pedagógicas, que gera um distanciamento entre as duas etapas da educação básica, pois as professoras da educação infantil tentam se afastar de uma didática tradicional de educação.

Partindo para a terceira relação citada pelo autor, essa está baseada na preparação para receber as crianças na nova fase de ensino e questiona o modelo de organização das instituições de ensino fundamental, que estão recebendo estas crianças. Moss (2008) sugere que, quando possível, as escolas modifiquem a organização física dos espaços, alterando a organização dos materiais, da logística, da estrutura e, também, faça mudanças no currículo e na prática pedagógica.

Por fim, a quarta relação estabelecida pelo autor está relacionada com o compartilhamento da cultura escolar, pois propõe que na educação infantil e no ensino fundamental existam práticas comuns e integradas entre ambas, de forma que sejam parceiras igualitárias no processo de aprendizagem da criança (MOSS, 2008).

Para Kramer (2006) o questionamento sobre o melhor lugar para a criança de seis anos estar, se na educação infantil ou no ensino fundamental deve levar em consideração que esses níveis de ensino devem ser indissociáveis, pois, ambos possuem como objetivo a apropriação do conhecimento por todos. Por isso, a autora afirma que os adultos, de ambos as etapas da educação básica devem levar em consideração, nos momentos de acompanhamento e planejamento “[...] a singularidade das ações infantis e o direito à brincadeira [e] a produção cultural[...]” (KRAMER, 2006, p. 810). Além disso, a autora destaca a importância do diálogo entre as instituições, buscando sempre alternativas curriculares claras.

Em relação ao brincar, este ocupa espaços diferentes em cada etapa da educação básica sendo que na educação infantil, a brincadeira é a base orientadora à

organização do planejamento, da rotina, dos espaços e do tempo e, no ensino fundamental, o brincar costuma ficar em segundo plano, sendo uma ferramenta para tornar o processo menos cansativo (NEVES; GOUVÊA; CASTANHEIRA, 2011).

Porém, mesmo o brincar tendo papel central na educação infantil é comum que haja uma reprodução de algumas características do ensino fundamental, principalmente relacionadas à disciplina, as atitudes das crianças e ao controle do corpo (CARDOSO et al.,2013). Estas características estão relacionadas à uma maturidade que é exigida para o início do processo de alfabetização, que acontece nos primeiros anos do ensino fundamental (DIAS; CAMPOS, 2015).

Ao entender que é responsabilidade dos anos iniciais do ensino fundamental exercer a função de alfabetização e letramento, acaba tornando-se encargo da educação infantil o desenvolvimento da criança para a futura aprendizagem da leitura. Logo, as atividades de coordenação motora, entre outros aspectos, acabam sendo realizadas com o intuito de deixar a criança “pronta” para aprender a ler e a escrever (RASTELLI, 2020, p. 30-31)

Segundo Silvana Augusto, no vídeo do Instituto Chapada, o brincar pode potencializar o processo de aquisição da leitura e da escrita em três situações a serem investidas pelos professores. A primeira delas é o brincar em si, pois isso já envolve um importante trabalho com a linguagem. A segunda situação são as rodas de conversa após as brincadeiras, que geram um espaço de produção de linguagem em que a criança precisa lembrar e verbalizar aquilo que ela brincou. E por fim, a terceira situação é a pesquisa, que tem um papel fundamental para enriquecer a brincadeira de faz de conta, podendo também explorar diferentes contextos e culturas (CÁ, 2020).

Em relação a legislação, não há um documento ou lei específica que trate sobre esse período de transição, mas são encontrados alguns trechos que tratam do assunto de forma superficial, não se aprofundando nas orientações.

Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (BRASIL, 2013), por exemplo, a questão da transição é citada para apresentar as diferenças de quando ela ocorre dentro da mesma instituição, ou seja, quando a educação infantil e o ensino fundamental são no mesmo local, sendo que nesse caso os professores precisam articular e dar continuidade ao processo de desenvolvimento e aprendizagem das crianças.

Ou, quando a transição ocorre entre diferentes instituições, o que geralmente causa um estranhamento, deve-se ter uma articulação cuidadosa. Para isso, é importante garantir que a nova escola tenha acesso a instrumentos de registros das crianças, que eram utilizados na antiga escola, para que seja possível conhecer os processos de desenvolvimento e aprendizagem já vivenciados pela criança (BRASIL, 2013).

Em relação a isso, Silvana Augusto no vídeo do Instituto Chapada, ressalta que uma boa ação a ser adotada pelo professor da educação infantil, é elaborar uma síntese que contenha todas as aprendizagens que a criança teve nessa etapa da educação básica, para que assim, o professor do ensino fundamental, possa ajustar seu planejamento respeitando aquilo que a criança já sabe e aquilo que ainda é necessário aprender (CÁ, 2020).

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (BRASIL, 2013), mesmo que de forma breve, apresenta algumas sugestões de práticas que podem auxiliar a articulação entre as duas etapas da educação básica, para que a transição entre elas ocorra sem tensões e rupturas. Essas sugestões vão ao encontro do que está presente nas Diretrizes para Educação Básica.

Prever formas de articulação entre os docentes da Educação Infantil e do Ensino Fundamental (encontros, visitas, reuniões) e providenciar instrumentos de registro – portfólios de turmas, relatórios de avaliação do trabalho pedagógico, documentação da frequência e das realizações alcançadas pelas crianças – que permitam aos docentes do Ensino Fundamental conhecer os processos de aprendizagem vivenciados na Educação Infantil, em especial na pré-escola e as condições em que eles se deram, independentemente dessa transição ser feita no interior de uma mesma instituição ou entre instituições, para assegurar às crianças a continuidade de seus processos peculiares de desenvolvimento e a concretização de seu direito à educação (BRASIL, 2010, p. 98).

Já nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental ressalta-se que a falta de articulação entre as etapas é algo que precisa ser solucionado e, para isso, sugere que os anos iniciais do ensino fundamental incorporem algumas práticas que fazem parte da educação infantil. Da mesma forma, as Orientações para a Inclusão da Criança de Seis Anos de Idade (BRASIL, 2007) sugere que as propostas de ambas as etapas da educação básica devem garantir “aprendizagens necessárias ao prosseguimento, com sucesso nos estudos” (p.7)

Partindo para a Base Nacional Comum Curricular (2017), essa traz apenas uma página sobre esse processo e aponta para um equilíbrio entre as mudanças que ocorrem, para que seja possível integrar e prosseguir com os processos de ensino e aprendizagem de cada criança, respeitando a relação que cada uma delas estabelece com o conhecimento e também as singularidades de cada etapa da educação básica.

Além disso, para que as crianças superem com sucesso os desafios da transição, é indispensável um equilíbrio entre as mudanças introduzidas, a continuidade das aprendizagens e o acolhimento afetivo, de modo que a nova etapa se construa com base no que os educandos sabem e são capazes de fazer, evitando a fragmentação e a descontinuidade do trabalho pedagógico (BRASIL, 2017, p. 53).

Portanto, a transição para o ensino fundamental não deve significar um rompimento com a etapa anterior do processo educativo, mas deve representar uma continuidade das experiências e uma ampliação das possibilidades de aprender. Por isso, é preciso reconhecer a especificidade de cada faixa etária para, então, identificar as necessidades dessas crianças e legitimá-las enquanto cidadãos e pessoas de direito (BRASIL, 2004).

Os sistemas de ensino e as escolas deverão compatibilizar a nova situação de oferta e duração do ensino fundamental a uma proposta pedagógica apropriada à faixa etária dos 6 anos, especialmente em termos de recursos humanos, organização do tempo e do espaço escolar, considerando igualmente os materiais didáticos, mobiliário e outros equipamentos. (BRASIL, 2005b).

A partir disso, foi preciso que as escolas e secretarias da educação remodelassem esse período de transição de forma que não fosse visto como algo negativo às crianças, mas que mostrasse novas possibilidades para aprender.

Segundo Checconi (2016) a articulação entre a educação infantil e o ensino fundamental se tornou uma grande preocupação para os pesquisadores e também para a legislação brasileira, pois, foi preciso suprir a necessidade de integrar as etapas de uma forma que o rendimento escolar não fosse prejudicado, além de tornar a rotina do ensino fundamental mais prazerosa e desafiadora às crianças de seis anos. Para isso, é preciso recuperar o caráter lúdico da aprendizagem da educação infantil.

Rabinovich (2012) aponta que o contato entre as professoras da educação infantil e do ensino fundamental seria um meio eficaz para melhorar as propostas

pedagógicas para as crianças ingressantes, além de realizar uma reestruturação dos espaços e materiais que serão utilizados por elas. Em relação a isso, Peres (2011) ressalta que o:

[...] ingresso da criança aos seis anos no Ensino Fundamental não poder se restringir apenas às alterações estruturais, sem o acompanhamento de mudanças relacionadas à renovação das propostas pedagógicas a serem desenvolvidas nos anos iniciais nesse nível de ensino. Esta compreensão passa a ser emergencial, principalmente pelo histórico de distorções entre programas e ações governamentais e suas descontinuidades nas práticas escolares. (PEREZ, 2011, p. 36)

Diante do exposto, evidencia-se que o brincar deveria ser ponto chave na educação infantil e os processos de alfabetização objetivos do ensino fundamental. Porém, o ideal seria que em ambas as etapas da educação básica houvesse o exercício de práticas de letramento, ocorrendo de forma lúdica e estando em equilíbrio com o brincar, pois nesse período de desenvolvimento da criança, ambas são princípios essenciais da cultura infantil.

Partindo disso, na seguinte seção será apresentado como ocorre o processo de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, para entender a constituição dos seus processos psíquicos. Além disso, esses questionamentos foram guias também para o problema de pesquisa proposto, visando investigar a transição da criança da educação infantil para o ensino fundamental.