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A transposição fílmica d’O castelo orquestrada por Michael Haneke

Escrito em 1922, antes mesmo do surgimento do cinema falado, o romance O castelo de Kafka teve sua primeira adaptação fílmica quarenta anos depois, Das Schloß (1962), telefilme realizado por Sylvain Dhomme na Alemanha Ocidental, seguida por mais três significativas adaptações: Das Schloß (Alemanha, 1968), de Rudolf Noelte; Zamok (Rússia, 1994), de Aleksei Balabanov, e Das Schloß43 (Áustria, 1996), de Michael Haneke, filme que nos interessa analisar neste capítulo44.

O filme O castelo é emblemático, pois marcou o retorno de Haneke à televisão, após ter começado em 1989 a realizar filmes para o cinema, inserindo-se no cinema literário do diretor, que buscou na literatura material verbal para a realização de seis de seus filmes. Apesar de marcar esse retorno, foi o último trabalho do diretor realizado para a televisão, produzido por sua própria sugestão. Ainda que adaptações de textos literários fossem facilitadores para as produções austríacas, quando Haneke propôs a transposição do romance do escritor tcheco, a escolha foi questionada pelo canal devido à complexidade da narrativa, que, apesar do pouco entusiasmo, acabou cedendo.

O filme tem duração de 125 minutos, contando com a interpretação de atores como Ulrich Mühe (K.) e Susanne Lothar (Frieda). A direção de fotografia foi realizada por Jiri Stibr, a direção de arte por Christoph Kanter, o figurino por Lisy Christl, a montagem por Andreas Prochaska, sendo uma produção de Wega-Film, BR, ORF e Arte, e o roteiro foi escrito tendo como texto-fonte o romance homônimo de Kafka e dirigido por Haneke, diretor que será responsável pela orquestração de todas as vozes que contribuem coletivamente para a tradução midiática do romance.

A opção por determinada obra a ser transposta midiaticamente já consiste em uma escolha que pode apresentar diferentes motivações:

Às vezes o cineasta procura, ao adaptar um livro já canonizado pelo público, apenas um bom argumento, sem se preocupar com o sentido mais amplo do texto. Outras, o cineasta deseja divulgar, por meio de uma mídia que atinge um público maior, uma grande obra literária e, nesse caso, costuma ser fiel à estrutura original da narrativa (GUARANHA, 2007, p. 26)

43 Lançado no Brasil com o título O castelo. Em 1998, a produção fílmica foi agraciada por dois prêmios:

u P l ’ E u TV w na categoria de melhor filme para a televisão, e Baden-Baden TV Film

Festival na categoria de melhor direção.

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Enquanto expoente da literatura alemã para o romance moderno antipsicológico e fragmentado, a escolha d’O castelo não é acaso. Ao ser questionado acerca da motivação que o levou a escolher essa obra para compor sua filmografia, Haneke menciona seu aspecto universal:

O que me atraiu em Kafka foi a sua maneira de retratar uma realidade que não é a realidade e da qual eu teria que encontrar um equivalente cinematográfico. / (...) K. é você e eu. (...) A história do castelo não é a de um personagem, mas é a história de todos nós45 (HANEKE, 2012, p. 120-121).

Ainda que a Nova Crítica e os pós-estruturalistas recusem “a intenção autoral como árbitro único e garantia do significado e valor de uma obra de arte” (HUTCHEON, 2013, p. 150), em um contexto em que Roland Barthes e Michel Foucault advogam pela possível morte do autor, as intenções e os motivos que levam o artista a adaptar uma obra nos importa, uma vez que “a intenção determina questões como por que um artista escolhe adaptar uma obra e como fazê-lo” (HUTCHEON, 2013, p. 151).

Vários são os elementos que os aproximam: Haneke encontrará em Kafka uma fonte de sua visão de mundo opressiva e fragmentária. Acrescente-se a isso que em ambos não é possível identificar amor ou esperança, com narrativas que mesclam angústia e temor indefinidos. A maneira de Kafka descrever uma realidade que a ela não se assemelha atraiu particularmente o diretor e implicou o encontro de equivalentes imagéticos na tradução da obra. Por meio de uma narrativa fílmica que prioriza o distanciamento protocolar, a frieza objetiva e a narração da estranheza, escritor e diretor parecem compartilhar uma peculiar estética da crueldade.

O processo adaptativo para a televisão e para o cinema, conforme observamos no Capítulo I, exige processos distintos, e ter como destinatário o público televisivo condicionou a transposição midiática a submeter-se ao romance. Para Haneke (2012), a TV não é uma instância cultural, mas um mediador, e transposições literárias devem manter as marcas originais do texto. Enquanto a tradução do texto literário feita para a televisão objetivou apresentar ao espectador a obra de Kafka e convidá-lo à leitura do romance, a tradução de um texto literário realizada para o cinema não teve esse intuito e possibilitou ao diretor realizar significativas alterações no texto-fonte. É o que ocorre na transposição do romance de Elfriede Jelinek, A pianista:

45 “C qu ’ z K fk , ’é è é u é l é qu ’ l é l é l

f ll uv u équ v l é g qu / ( ) K , ’ v u ( ) O , l’ u C â u ’ ll ’u personnage, mais de nous tous”.

Em todos os meus telefilmes adaptados de uma obra literária, eu tentei manter, tanto quanto possível, o texto original. Há uma grande diferença quando se adapta um livro para a televisão ou para o cinema. Para mim, o cinema é uma forma de arte, e a obra literária adaptada deve a ela se submeter. Na televisão, ao contrário, a obra de arte é o próprio livro; o objetivo é despertar nos espectador a vontade de lê-lo46 (HANEKE, 2012, p. 54).

O diretor não só dirigiu como também escreveu os roteiros de suas traduções realizadas para a TV, à exceção de Wer war Edgar Allan?, escrito pelo próprio autor, Peter Rosei, conjuntamente com Haneke, sob o pseudônimo Hans Broczyner. Para Deborah (2011), os três filmes roteirizados pelo diretor – Drei Wege zum See (1976), Die Rebellion (1993)47 e O castelo (1996) – podem ser vistos como corpus distintos, não só em relação aos trabalhos para televisão, como em toda a sua obra, especialmente quando ele mesmo considera que adaptações literárias para a TV têm propósitos diferentes das cinematográficas, ao que acrescenta que a questão da fidelidade ao texto-fonte parece ter distraído a crítica não só do significado mas do propósito das transposições orquestradas pelo diretor.

Haneke (2012) admite que a imagem em movimento tem desvantagens em relação à palavra escrita, uma vez que esta oferece possibilidades maiores que a mera apresentação imagética, definindo sua estética mais próxima da palavra que da imagem. Por essa razão, seus trabalhos para a TV foram ao mesmo tempo criticados e enaltecidos pele seu estilo literário, principalmente por meio de uma edição lenta e voice-overs sem expressividade tirados diretamente dos textos originais.

Em adaptações de romances clássicos para a televisão, entretanto, costuma- se manter uma ressonância textual da conexão literária tanto na ação quanto no movimento da câmera, lembrando a ideia de que ler é um exercício muito mais “vagaroso, comedido e reflexivo” do que ver televisão (HUTCHEON, 2013, p. 104).

Apesar de feito para a televisão, O castelo foi produzido após a incursão do diretor no cinema, o que permite que a tradução afaste alguns elementos típicos dos telefilmes. Ainda que haja elementos que aproximem o filme deste gênero, é evidente que se aproxima da estrutura de um filme de cinema. Essa aproximação pode ser observada, por exemplo, na

46 “D u éléf l é ’u uv g l é , j’ yé v l lu bl u x

’ g Il y u g ffé qu u l v u la télévision ou pour le cinéma. Pour moi, l é u f qu , l’ uv l é é y ê u À l élév , u , l’œuv ’ , ’ l l v ; l bu , ’ ux élé u v l l ”.

47 Drei Wege zum See e Die Rebellion não foram lançados no Brasil e, por essa razão, não possuem tradução

“razão de aspecto” utilizada no filme, que consiste na relação matemática entre as dimensões de uma imagem dimensional, obtida pela divisão entre a largura e a altura da tela.

Telefilmes são usualmente produzidos em uma razão de aspecto de 1,33:1, enquanto o cinema possui dimensões maiores, a exemplo do CinemaScope48, tecnologia de filmagem e projeção que utiliza lentes anamórficas para gravação de filme em widescreen, permitindo a criação de uma imagem de 2,35:1. Os telefilmes dirigidos por Haneke são realizados com a razão de aspecto de 1,37:1, com exceção d’O castelo, que é 1,85:1, mesma razão de aspecto utilizada em seus filmes de cinema49, insinuando uma aproximação entre as duas formas de produção: o telefilme e o cinema.

Mesmo diante da quase ausência de uma trama bem delineada e de um enredo discernível, o desafio de transpor midiaticamente o texto kafkiano foi enfrentado, resultando em um filme que se funde na própria obra romanesca. No entanto, a preocupação com a fidelidade ao texto não implica mecanização representativa, uma vez que leva em conta as especificidades da obra fílmica e a estética engendrada pelo diretor.