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CAPÍTULO II. CANÇÃO, MERCADO E POLÍTICA

II.2. N ARA POPULAR : PROFISSIONALISMO E AMADORISMO

II.2.1. A via do mercado

Em edição publicada em maio de 1966, a Revista Civilização Brasileira trazia a público a transcrição de um instigante debate sobre os rumos da canção popular no Brasil: “Que caminho seguir na música popular brasileira?” – esse o título do evento promovido pela revista, que reuniu jornalistas, artistas e críticos em torno da discussão de possíveis relações produtivas entre música, política e mercado. De saída, convém salientar que essa revista consistiu em importante veículo (e produto) cultural da esquerda do período: publicada em formato de livro, chegou a ter tiragem acima de vinte mil exemplares.385 Desde os anos de atuação dos Centros Populares de Cultura, a Editora Civilização Brasileira teve papel importante na publicação e divulgação de produções teóricas ligadas à esquerda: se antes do golpe a série Cadernos do Povo Brasileiro foi amplamente difundida entre o meio estudantil – contando para isso com uma estreita parceria com o CPC e com a UNE –, após 1964, a referida revista teve êxito similar no meio intelectual.386 Voltando ao debate organizado pela revista, dele participaram Flávio Macedo Soares, Caetano Veloso, Nelson Lins e Barros, José Carlos Capinam, Gustavo Dahal, Ferreira Gullar e Nara Leão, além da mediação efetuada pelo músico Airton Lima Barbosa.

O título em forma de pergunta não poderia ser mais sugestivo: “Que caminho seguir”? Ora, a partir do que se discutiu até aqui, pode-se supor que o diagnóstico cultural feito pelos participantes do debate levava em conta alguns elementos chave, a saber: (i) com o advento

384 Ademais, como aponta o autor “desde então, tornou-se comum ouvir as opiniões de artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso com o estatuto de intelectuais. Caetano Veloso parece se sentir mais à vontade do que Chico Buarque nesse papel, tendo escrito suas memórias sobre os anos 1960-1970, Verdade

Tropical, título que dá a medida de sua pretensão”. RIDENTI, Marcelo. Brasilidade Revolucionária: um

século de cultura e política. São Paulo: Editora Unesp, 2010, p. 94.

385 Para Marcelo Ridenti, esse alto número de tiragens era mais um indicativo do surgimento de “um segmento de mercado ávido por produtos culturais de contestação à ditadura: livros, canções, peças de teatro, revistas, jornais, filmes etc. De modo que a brasilidade revolucionária, antimercantil e questionadora da reificação, encontrava contraditoriamente grande aceitação no mercado”. Cf. RIDENTI, op. cit., 2010, p. 98.

386 Cf. SILVEIRA, Ênio. Prefácio. In: BARCELLOS, Jalusa. CPC da UNE: uma história de paixão e

da ditadura militar e um progressivo cerceamento de liberdades, em que pese o fechamento dos Centros Populares de Cultura (os CPCs) e da sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), os artistas ligados à esquerda experimentavam um rompimento comunicativo em seu projeto de “conscientização” e “politização” do “povo”, o acesso “direto” ao público dava então lugar a (ii) uma difusa atuação pela “via do mercado”, a exemplo do êxito de Opinião, de Liberdade, Liberdade e de programas televisivos como O fino da bossa, mas esse acesso indireto ou mediado (iii) começava a enfrentar uma concorrência mais acirrada de outros produtos culturais, principalmente com a ascensão da Jovem Guarda e uma ampla circulação de produtos a ela associados. E mesmo com o êxito de tais empreitadas, nada parecia garantir uma efetividade política mais ampla nesse novo cenário pós-golpe; isto é, seria possível a manutenção dos objetivos políticos da arte engajada por meio da atuação no interior do mercado e, o que parecia pior, em meio um contexto ditatorial? Donde, certa preocupação por parte de musicistas em alguma medida envolvidos com os projetos de setores da esquerda cultural. A palavra “impasse”, central para o debate, parecia sintetizar esse diagnóstico mais ou menos comum.

Àquela altura, o movimento musical mais bem sacado do pós-guerra, a bossa-nova, era dado por fogo de palha já devidamente consumido. Bossa-nova que nunca viu, aliás, qualquer problema na sua relação com a indústria fonográfica – a não ser no dado biográfico-social de que ser “músico profissional” não era de bom-tom na classe média do eixo Rio-São Paulo dos anos 1950. Já os movimentos musicais do início dos 1960, ao contrário, tinham uma pauta abertamente adversária da indústria, só enxergavam vida musical autêntica fora do mercado, em alternativa a ele. Só no elemento da política encontravam arte autêntica. O interessante e artisticamente relevante é que a busca de autenticidade, a busca das raízes da MPB, vinha junto com o material musical mais avançado de que se dispunha. Difícil dizer no que poderia ter dado esse projeto de substituir o mercado pela política como enquadramento da autenticidade artística. Mas o fato é que as tropas do general Kruel desmontaram o experimento. E, dois anos depois do golpe, já tinha ficado claro que não se tratava de quartelada de ocasião, que os milicos não estavam de passagem. De modo que os termos do problema se alteraram radicalmente. Ou o experimento se entocava em células de guerrilha musical, ou os guerrilheiros aceitavam disputar o terreno do mercado.387

Como se viu, a bossa nova, berço musical de boa parte dos artistas do período, parecia não mais possuir uma “razão de ser” para os cancionistas que aderiam a uma perspectiva engajada. Diante da nova conjuntura, a “leveza” e a “coloquialidade” bossa-novista, ou a “ingenuidade artesanal” do estilo aparentavam pouca relação com as questões então postas.388 E em alguma medida o próprio contraponto em relação à estética bossa-novista foi uma marca dessa nova clivagem musical, ou, melhor dizendo, essa nova clivagem apresentou-se tanto devedora das

387 ZAN, José Roberto; NOBRE, Marcos. A vida após a morte da canção. Serrote. São Paulo, núm. 6, nov. 2010. Disponível em: <https://www.revistaserrote.com.br/2011/07/a-vida-apos-a-morte-da-cancao/> Acesso em: 28 jun. 2017.

“conquistas estéticas”389 bossa-novistas quanto antagônica a ela em termos de temáticas e postura artística. Importante é sublinhar que, como apontam os autores, os bossa-novistas pouco se contrapuseram à participação no mercado, ao contrário do engajamento de primeira hora – lembremos da atuação do CPC – que almejava uma comunicação direta com o público por uma via alternativa ao mercado. Em 1966, portanto, quando da referida publicação, pareciam restar duas opções: ou os artistas politizados assumiam uma postura de guerrilha musical ou disputariam propriamente o mercado. Daí um dos vieses do referido “impasse”.

A primeira intervenção transcrita na publicação foi a do jornalista e crítico Flávio Macedo Soares, que serviu como contextualização ou diagnóstico do então momento presente e que opôs a articulação “artístico política” do pré-golpe ao “impasse” de 1966:

Realmente, dentro da conjuntura que havia antes e de certas linhas que já se tinham denunciado na bossa-nova, cresceu toda uma nova geração de músicos, como Caetano Veloso (aqui presente), Gilberto Gil, Chico Buarque, Edu Lobo etc. Essa geração, se bem que ampliando uma área que já fora explorada antes pela bossa-nova mais antiga, não conservou nesse período (dois anos) de crise certas características que reputo essenciais. Uma delas era a visão da cultura não como manifestação isolada, mas como parte de um todo uno, no qual a música popular, a poesia, a literatura, o cinema e o teatro estavam entrosados. Podia-se dizer que havia, através de certas instituições como o ISEB, o CPC, uma tentativa séria – embora pequena ainda, no sentido de fazer uma universidade brasileira (universidade no sentido real da palavra) na qual houvesse um entrosamento tanto no plano ideológico como no prático, com apoio de parte a parte. Essa tentativa se perdeu. Atualmente, os músicos da boa música popular brasileira estão por uma série de razões agindo e pesquisando individualmente.390

Como apontam Zan e Nobre, “Não se tratava então de diagnóstico isolado. Flávio Macedo Soares como que resumiu uma análise em grande medida coletiva e compartilhada. E, de acordo com essa análise, comparada ao projeto pré-1964, a situação de 1966 parecia ser de puro e simples impasse”.391 A partir dessa contextualização tomaram lugar as intervenções em contraponto de Caetano Veloso e Nelson Lins e Barros, enquanto o primeiro sugeriu a “retomada da linha evolutiva”, o segundo rechaçou aquilo que lhe pareceu um retorno ao bossa-novismo em nome da “estridência”392, esta sim capaz de traduzir e dialogar com uma estrutura de sentimento partilhada por amplos setores da esquerda. Esse antagonismo foi então deixado de lado, e mesmo

389 NAPOLITANO, op. cit., 2007.

390 SOARES, Flávio Macedo. Música – Que caminho seguir na música popular brasileira? (Debate coordenado por Airton Lima Barbosa). Revista Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, nº 7, maio 1966, p. 376.

391 ZAN; NOBRE, op. cit.

392 Talvez Caetano Veloso não tenha se referido propriamente a um retorno a João Gilberto, retorno imediatamente rechaçado por Lins e Barros, afinal, como dizem Zan e Nobre, “Claro estava que o padrão da bossa-nova – comparado, por exemplo, ao gigantesco bloco histórico que o precedeu, o da era do rádio – tinha uma ingenuidade artesanal que, em vista dos acontecimentos, só poderia ser retomada tal e qual como cinismo”. ZAN; NOBRE, op. cit.

superado, pelas intervenções de José Carlos Capinam e de Nara Leão. No lugar de discutir diretrizes de poéticas ou percepções estéticas que pareciam corresponder ao padrão cancional mais adequado a se seguir, a cantora e o poeta realmente propuseram “uma saída para o impasse”, colocando “a discussão em um novo patamar”.393 De maneira razoavelmente distinta – a cantora, intervindo de modo muito mais sintético, menos teórico e com um relato mais pessoal, por assim dizer –, ambos salientaram a importância do mercado como a via de solução para o “impasse”. Ou seja, punham em evidência o mercado como campo de atuação e palco das disputas culturais e políticas por vir. Enquanto Capinam se referia a um “pré-capitalismo” dos artistas de esquerda, a intérprete ressaltava um certo “comodismo” e uma “resistência de classe”, ou “preconceito”, de parte de seus colegas.

Declarou Capinam:

desde que se discute os caminhos para nossa música popular, não vejo possibilidade de fazer um programa, criar valores e uma saída para ela sem considerar um dado fundamental: o mercado. Para muita gente não descubro nada. A razão maior dessa afirmativa é, entretanto, o comportamento pré-capitalista da esquerda brasileira, que resiste à industrialização e vê o mercado como o grande sacrifício de sua arte

[…]

Preservar a música dos riscos do mercado é uma posição negativa de acanhamento que terá como efeito o contínuo afastamento desta música das áreas onde deveria estar agora, e influindo, trocando recursos, informando, alimentando a nossa juventude com aquilo que ela necessita e em potencial a nossa música possui nas raízes: calor, participação e movimento.394

Na mesma linha, Nara Leão reiterou as proposições do poeta:

O que há realmente é muito pouca produção de discos de bossa-nova [engajada]. Um disco depois de ser lançado se esgota mais ou menos em seis meses. Se depois o cantor não lança um novo disco, o seu público comprará outros discos naturalmente. Os meus, por exemplo, continuam vendendo a mesma coisa que vendiam antes do iê-iê-iê. Entretanto, nunca venderam mais do que os de Altemar Dutra ou Orlando Dias. [...] Dizem também que as fábricas não querem gravar música brasileira. Isto não é verdade. Também não é verdade que só querem divulgar iê-iê-iê. Toda vez que vamos a um programa de rádio nossas músicas são tocadas. Enquanto Roberto Carlos vai a todos os programas, todos os dias, o pessoal da música brasileira, talvez por comodismo, não vai. Existe até certo preconceito – quando eu vou ao programa do Chacrinha os bossanovistas me picham, eles acham que é “decadência” ir a este programa.395

393 Ibidem.

394 CAPINAM, José Carlos. Música – Que caminho seguir na música popular brasileira? (Debate coordenado por Airton Lima Barbosa). Revista Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, nº 7, maio 1966, p. 379-380. 395 LEÃO, Nara. Música – Que caminho seguir na música popular brasileira? (Debate coordenado por Airton

Diante do “impasse”, Nara e Capinam apontavam como solução uma ocupação efetiva do mercado, uma atuação incisiva através dos meios de comunicação a ser realizada pelos artistas que representavam a moderna canção popular. Na intervenção de Nara evidencia-se, inclusive, um certo destaque ao profissionalismo de Roberto Carlos, tomado como parâmetro “mercadológico” a ser seguido. De todo modo, parece que em boa medida já se desenhava ali uma espécie de “plano de ação” para os artistas da música popular, plano que não podia prescindir de uma ocupação incisiva do mercado. Em certo sentido, as duas intervenções podem ser lidas como constituintes de certa ideia programática.396

As diretrizes defendidas por Capinam e Nara pareciam ir ao encontro de um processo mais amplo que, conforme aponta Marcelo Ridenti, se desenrolava a partir da efetivação

(...) de um rápido processo de modernização da sociedade brasileira que criava e consolidava um público – especialmente na juventude intelectualizada – suficientemente amplo para tornar-se produtor e consumidor de um florescimento político e cultural que teria também desdobramentos de mercado: criou-se a possibilidade efetiva de profissionalização e até mesmo de consagração de inúmeros artistas e intelectuais considerados rebeldes ou revolucionários na década de 1960.397

Desse modo, se desde o êxito de Opinião se evidenciava uma possibilidade de “resistência entre os derrotados de 1964”, ao mesmo tempo, apontava-se “também para a incorporação dos artistas de esquerda ao showbusiness”.398 Ao que tudo indica, essa “incorporação” se deu, em boa medida, de caso pensado: a subversão do mercado, por dentro, aos interesses políticos dos artistas identificados com a perspectiva do engajamento. Comparando esse movimento em direção à indústria cultural com as posturas adotadas no pré-1964, parece vir à tona uma certa contradição, de acordo com Ridenti, dos artistas de esquerda,

(...) como logo ficaria evidente com sua participação expressiva, por exemplo, no crescimento vertiginoso das gravadoras e das emissoras de televisão, que tinham de recorrer à mão de obra mais capacitada no âmbito da cultura e das artes, majoritariamente de esquerda. Consolidava-se uma indústria cultural no Brasil, que atenderia também a um segmento de mercado ávido por produtos culturais de contestação à ditadura: canções, filmes, peças de teatro, livros, revistas, jornais etc. De modo que a produção artística antimercantil e questionadora da ordem encontraria contraditoriamente grande aceitação no mercado.399

396 Esse aspecto de plano de ação pareceu mesmo evidente, mais ainda se levarmos em consideração os caminhos que canção popular participante seguiu a partir deste ano; como bem apontam Zan e Nobre: “Visto com olhos dos festivais da música popular dos dois anos seguintes, por exemplo, isso soa mesmo como um programa. Como o programa que foi efetivamente levado adiante, de diversas maneiras, por diferentes razões, por quem participava, direta ou indiretamente, dessa conversa”. ZAN; NOBRE, op. cit.

397 RIDENTI, 2010, op. cit., p. 96. 398 Ibidem, p. 141.

De fato, olhando retrospectivamente para os acontecimentos que marcaram a política e a cultura da segunda metade dos anos de 1960, não deixa de haver certa contradição na inserção mercadológica de artistas marcados por uma espécie de “romantismo revolucionário”. Ademais, a própria estratégia de exploração do mercado com intenções artísticas e políticas transformadoras pode nos parecer agora como um tanto ilusória. Assim mesmo, talvez houvesse ali a percepção de certas possibilidades que o distanciamento histórico não ajuda a enxergar. Se hoje a indústria cultural se mostra praticamente insubjugável, dada sua consolidação e estruturação bem definidas, naquele momento haveria uma espécie de abertura. Tratava-se de um momento de reestruturação do mercado musical. Como já dito, aos artistas participantes, então, parecia apresentar-se duas vias possíveis no pós-1964: ou a atuação por meio de “células de guerrilha musical”, ou a disputa através do “terreno do mercado”.

Mas mesmo quem não queria se entocar nas células de resistência só topava a disputa aberta na indústria cultural se enxergasse ali margem para outro tipo de guerrilha. Ou seja, se encontrasse na indústria cultural espaço para a disputa política, naquele sentido amplo e largo do termo que é próprio de um movimento artístico que se preze.

A hora histórica não poderia ter sido mais propícia. A música era de longe a forma artística dominante no país. E muitos dos principais programas da televisão nascente eram programas musicais. Com a televisão e a progressiva integração entre os diferentes meios, a indústria cultural brasileira estava em um momento de transição para um modelo que só viria a se estabilizar ao longo da década de 1970. As brechas para a intervenção tinham potencial para se tornar grandes avenidas.400

Voltando à atuação de Nara Leão, se partirmos da constatação de que Nara teria sido uma das proponentes (ou ao menos uma grande entusiasta) desse “programa de ação”, esperar-se- ia como consequência uma sua presença contundente nos meio de comunicação da época – o que, em alguma medida, de fato ocorreu. Entretanto, olhando mais atentamente para a trajetória da intérprete, essa atuação se deu de maneira um tanto contraditória, uma vez que não foram poucas as vezes nas quais a cantora recusou o mainstream, refugou diante do showbusiness: abandonando projetos artísticos e afastando-se por períodos consideráveis dos palcos e estúdios. Não parece exagero apontar que a figura pública de Nara ficou marcada – para além de uma disposição pouco usual para se envolver em debates e polêmicas políticas e artísticas – por um excesso de timidez, por uma constante recusa à exposição midiática mais excessiva e, em certa medida, por uma dificuldade em assumir de fato a condição de intérprete profissional de canções. Ademais, vale ressaltar que poucas semanas antes, Nara declarava a quem quisesse ouvir seu sentimento de

exaustão, bem como, sua indecisão em relação à sua profissão, sequer definindo-se realmente como uma cantora. Mais que isso, apontando para o fato de que a canção engajada teria “entrado

pelo cano” por culpa do próprio excesso de comercialização – “começou a comercializar-se demais e aí é fogo”, em suas próprias palavras401 –, processo que, segundo ela, parecia levar a uma descaracterização, a uma “falsificação” da moderna música popular.