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RESISTÊNCIA COMO ATITUDE DE INTERVENÇÃO SOCIAL NA VIDA COTIDIANA

2.2. A VIDA COTIDIANA COMO ESPAÇO DE RESISTÊNCIA

Antes de teorizações, cabe perguntar: o que é a vida cotidiana? Ela é a vida andada no mesmo compasso, na mesma cadência. É o levantar ao toque do despertador, é o caminhar ainda sonolento em direção ao banheiro para a higiene matinal, seguir para o trabalho, é o bom dia aos vizinhos, ver o noticiário, é o café da tarde, e muito mais.

Quem dirige a vida cotidiana, segundo seu ritmo próprio, não é a consciência, mas sim o ato mecânico, automático. A cotidianidade, que é o

movimento cotidiano, está e sempre estará atrelada à vida humana. E seguem presentes, o cotidiano e a cotidianidade, em todas as esferas da vida de cada sujeito. No lazer, na atividade profissional, na vida familiar, nos estudos, na ação religiosa, o cotidiano sempre estará presente. Na vida cotidiana o homem se apresenta inteiro, assim sendo se coloca e participa desta com toda sua individualidade, ressaltando todos os aspectos de sua personalidade individual. Heller assinala assim que:

Nela, colocam-se “em funcionamento” todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideias, ideologias. O fato de que todas as suas capacidades se coloquem em funcionamento determina também, naturalmente, que nenhuma delas possa realizar-se, nem de longe, em toda sua intensidade. O homem da cotidianidade é atuante e fruidor, ativo e receptivo, mas não tem nem tempo nem possibilidade de se absorver inteiramente em nenhum desses aspectos; por isso, não pode aguçá-los em toda sua intensidade. (HELLER, 2008, p. 31)

Ainda assim, a vida cotidiana é a vida do indivíduo, e este indivíduo é ao mesmo tempo um ser genérico e ser particular e esta particularidade se expressa através da particularidade, da individualidade (HELLER, 2008). Essa particularidade social é caracterizada pela assimilação da realidade social e nesta, objetivamente, estão incluídas as necessidades humanas tomadas conscientemente pelo “Eu” (HELLER, 2008). Sobre isso, Heller (2008, p. 35) acrescenta:

As necessidades humanas tornam-se conscientes, no indivíduo, sempre sob a forma de necessidades do Eu. O “Eu” tem fome, sente dores (físicas ou psíquicas); no “Eu” nascem os afetos e as paixões. A dinâmica básica da particularidade individual humana é a satisfação dessas necessidades do “Eu”.

A busca em conhecer a vida cotidiana ganha em Marx uma preocupação filosófica (CARVALHO, 2007). É assim, de maneira ampliada e com base na teoria do filósofo alemão, que Carvalho (2007) percebe as várias faces e cores da vida cotidiana, destacando que esta alcança e abrange desde a vida dos gestos, relações e atividades rotineiras até um espaço de resistência e possibilidade transformadora. Acerca dessa possibilidade de transformação, já

que a vida cotidiana assume características em determinados momentos, de resistência, sendo assim, “é um palco possível de insurreição, já que nele atravessam informações, buscas, trocas, que fermentam sua transformação” (CARVALHO, 2007, p. 14).

A partir da análise de Carvalho (2007) acerca dos estudos de Lefebvre, o qual apreende a vida cotidiana sob três perspectivas convergentes, a que mais concorda com a abordagem aqui apresentada é a terceira que:

[...] diz respeito às possibilidades da vida cotidiana enquanto motora de transformações globais. A vida cotidiana tem se insinuado como um dos centros das atuais possibilidades de transformação da sociedade. A raiz desta intuição está no fato de que não são as relações de produção, mas sim as relações sociais de dominação e poder que têm sua primazia na modernidade. Sendo assim, um dos focos estratégicos da práxis revolucionária terá que ser o cotidiano vivido pelas classes e grupos sociais oprimidos (CARVALHO, 2007, p. 21-22)

Por ser singular e genérico, o homem reproduz-se na vida cotidiana, como sujeito singular; ao passo que cria mecanismos para a reprodução social, agindo assim como sujeito genérico. Sendo assim, o sujeito se reproduz no fazer cotidiano, de maneira direta, e contribui, indiretamente, com a reprodução da totalidade social.

Como participante do coletivo, o indivíduo experimenta a possibilidade de tornar sua ação de homem genérico mais consciente, o que lhe garante a possível transformação do cotidiano singular e coletivo:

A grande questão passa a ser a passagem do homem inteiro (muda relação de sua particularidade e genericidade) para o inteiramente homem (unidade consciente do particular e do genérico). Esta passagem ocorre, como diz Agnes Heller, quando se rompe com a cotidianidade; quando um projeto, uma obra ou um ideal convoca a inteireza de nossas forças e então suprime a heterogeneidade. Há nesse momento uma objetivação. A homogeneização é a mediação necessária para suspender a cotidianidade.[...] A intensidade de uma grande paixão, um grande amor, o trabalho livre e prazeroso, uma intensa motivação do homem pelo humano genérico resultam na suspensão do cotidiano. (CARVALHO, 2007, p. 27)

O trabalho está entre as quatro formas de suspensão do cotidiano. Esta suspensão é de caráter temporário, contudo os ganhos advindos desta são de

imensa dimensão, pois possibilitam transformar os cotidianos singular e coletivo.

Seguindo nesta mesma linha de argumentação crítica, fundamentada na teoria social de Marx, Netto (2007), segundo a visão lukacsiana, afirma que não há vida em sociedade sem cotidianidade. O trabalho também é apontado por Netto, seguindo o pensamento de Lukács, como uma forma de superação da cotidianidade, sendo assim possível que o homem assuma o caráter de ser humano-genérico e, ao voltar à vida cotidiana, o sujeito passa a comportar-se de forma mais eficaz. Sobre este circuito produzido pela cotidianidade, sua suspensão e o retorno àquela, Netto (2007, p. 70) afirma que:

Está contida aqui, nitidamente, uma dialética de tensões: o retorno à cotidianidade após uma suspensão (seja criativa, seja fruidora) supõe a alternativa de um indivíduo mais refinado, educado (justamente porque se alçou à consciência humano-genérica); a vida cotidiana permanece ineliminável e inultrapassável, mas o sujeito que a ela regressa está modificado. (NETTO, 2007, p.70)

A percepção é a de que, quando se dá o retorno ao cotidiano, a mudança proporcionada gera a modificação necessária para que se materialize alguma forma de resistência e esta seja instrumento de transformação social.