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A VIDA MÍSTICA E A REPRESENTAÇÃO

No documento Meraviglia o teatro de Jose de Anchieta (páginas 53-56)

A ALMA PEREGRINA

A VIDA MÍSTICA E A REPRESENTAÇÃO

Esta experiência conduzida pelos exercícios aos discípulos de Loyola, em que o praticante encontra-se com as divindades, dialoga, sofre com elas poderia lembrar as experiências místicas vividas por ele próprio, por Santa Tereza D'Avila, por São João da Cruz, entre outros. Experiência mística que seria sentida como uma explosão dos sentidos interiores, espirituais e às vezes, como contingência, corporais, um gozo tal qual Santa

Tereza D 'Avila contou em versos ao sentir o imenso Amor de Deus que a invadiu, como conta Bataille:

Vi nele uma grande lança, de ouro, e na ponta da lança havia como que meu coração, penetrando-me até as entranhas. Quando a retirava, como que de mim todas elas se retiravam, ficando eu muito abrasada do imenso Amor de Deus. A dor que me causava era tão grande que toda eu em gemidos ficava, mas a doçura dessa dor era tamanha, que por nada deste mundo queria deixar de a conhecer. Esta dor não era corporal, mas espiritual, embora o corpo nela tomasse parte e grande parte. O que eu então conhecia era um afago de amor entre a alma e Deus, tão doce, que rogo a Deus, na sua bondade, que Ele o dê a conhecer a todo aquele que possa julgar que eu minto “(Bataille, 1988, p. 198)”.

Estaria Loyola pretendendo dar aos discípulos e praticantes, a partir do seu método, o código para alcançarem esta experiência mística, que segundo Bataille (1988), seria, quando completa, isto é espontânea, sensual, espiritual e corporal: erótica, pecado? Evidentemente que não. Não se tratam de experiências místicas, pois o que pretende Loyola para com seus discípulos e para os praticantes seriam representações não visões, isto é, encenar na imaginação as seqüências narrativas dos pecados, dos mistérios, que os conduziria a criar e viver uma fantasia da Paixão de Cristo, por exemplo, mas não ser arrebatado pela presença da Divindade, como parece, o foram ele próprio, Santa Tereza, São João da Cruz, entre tantos outros místicos. O exercitante cria a fantasia e os fantasmas, vivendo com eles, sofrendo, chorando, queimando-se no inferno que ele próprio criou em sua mente, como uma encenação, ajudado pelos exercícios, pela seqüência narrativa dos mistérios e pela voz suave de seu guia espiritual. Os Exercícios Espirituais levariam o exercitante a construir a cena, colocar as personagens e ouvir o que elas falam, sentir-lhes o gosto, o paladar, tocar-lhes a pele, mas com os sentidos interiores. Dramatização interior que realiza os desejos espirituais a partir de imagens construídas metódica e racionalmente, cujas sensações corporais, materiais - lágrimas, ardores, arrepios, deveriam ser, quando muito, contingência, acidente. Nesse sentido, a experiência vivida pelos praticantes não seria mística, mas dramatização da história da salvação do povo de Deus, em que o exercitante constrói o drama em seu interior, constrói o cenário e o vive intensamente como se estivesse em cena realmente.

Por ser representação interior e não experiência mística é a razão de os Exercícios terem sido aprovados pelo Papa Paulo III, em 1548. Caso contrário, se fossem para "invocar" as divindades, a fim de que elas "iluminassem" o exercitante diretamente (isto é,

sem a participação dos representantes de Deus na terra - a Igreja Católica, da própria Companhia de Jesus), então, seriam tal qual a doutrina pregada pelos alumbrados, considerados heréticos, perseguidos e queimados pela Inquisição. O que parece atraia o fiel medieval para os Exercícios de Loyola, seria a possibilidade de viver a História da Salvação do povo de Deus, como se estivesse participando de um auto de Natal, da Paixão ou da Ressurreição, representando-a em um quarto escuro e sentir tanto em sua mente quanto em seu corpo toda a emoção dessa história e, ainda, poder purgar-se, sofrer e renascer (física e mentalmente) um verdadeiro cristão (tal qual os cristãos primitivos), mas de forma racional, extremamente lógica e guiada pelo método de Loyola, podendo então discernir no espírito a voz da divindade e a do demônio, guiando-se por Deus e livrando-se do inferno (e sem pagar indulgências).

Representação interior que inicialmente parece assemelhar-se aos autos religiosos Medievais da Paixão de Cristo, da Natividade, dos martírios dos santos em que os espectadores eram convidados a participar das cenas com devoção e emoção seguindo firmes o cortejo do sacrifício de Jesus. Na Paixão de Cristo de Gregório de Nazianze, primeira obra do Teatro Medieval, por exemplo, a representação é provocada minuciosamente para o espírito do espectador, que pode captá-lo pelo ouvido, através das lacrimosas palavras da Mãe de Cristo... como uma leitura silenciosa ou como se estivesse ouvindo a narrativa histórica na voz dócil e insignificante de seu diretor espiritual.

Mãe de Deus: Infeliz que sou, hélas! Que fazer? Meu coração me abandona. Como, como viver ainda quando é preciso entender tal discurso? (685) Infeliz, como suportar um tal espetáculo? Vamos, mulheres, filhas da Galiléia, dizer adeus ao meu filho acompanhá-lo para fora dessa terra. Ó venham meus amigos, venham, abandonemos nossos medos.

O Coro: Fujas antes da multidão para evitar de ser ultrajada.

A Mãe de Deus: (690) e porque temer agora a multidão? Vamos, vamos, banir todo o temor. Qual interesse nos tem agora em viver aqui? Vamos ver a paixão de meu Filho. Infeliz que eu sou! (695) Mulheres, eu não reconheço mais o rosto resplandecente do meu filho. Ele perdeu seu brilho e sua beleza extraordinária. Mulheres, quando eu vejo a tristeza de meu filho, eu quero morrer, eu não tenho mais a força de viver. Retirem-se, Retirem-se eu não posso mais suportar a vida. (700) Ó Você que é a salvação para todos os homens, Filho ardentemente desejado, por que sofres assim? Quais são os crimes que Tu expias? Porque suas mãos são puras. Elas são puras de sangue (705) Puros são também seus lábios, teu corpo, tua boca; tua alma é toda pura e teu coração é inocente. Como eu posso te ver crucificado com os ladrões?...

Cristo: Ó a mais virtuosa das mulheres, veja aqui o discípulo mais puro e casto é para você um outro filho; e para você meu discípulo, a Virgem é tua mãe. (730). Por que, mulher, por que chorar? Por que baixar os olhos, derramar as lágrimas e se entristecer quando tu és bem aventurada? Por que receber contrariada minha palavra? Tudo aquilo que acontece é conforme as profecias, (735) aquelas que eu disse como aquelas que foram ditas pelos profetas. Este é o momento em que os inimigos do gênero humano deve expiar sua pena. Por que choras ainda a sorte de teu Filho (Nazianze, 1969, p 183)?

Também se assemelharia aos autos medievais quando saíram das igrejas, com seus quadros fixos de cenas religiosas a desfilar pelas ruas das cidades européias sendo seguidos em procissão pelos espectadores que comovidos sentiriam as dores da Via Sacra, ou nos martírios dos santos, como no caso do Mistério de São Lourenço, em que a batalha de Décio e seu exército de cavaleiros acontece na praça central de Menz (1509), sob os olhares atentos dos espectadores, que nesse caso representam o Mundo (Rey-Flaud, 1973, p. 65).

No documento Meraviglia o teatro de Jose de Anchieta (páginas 53-56)