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4 O “FLAGRANTE DELITO” DA FABULAÇÃO DE MUNDOS: “QUANDO A

4.3 A VIDA NAS COISAS: “FAZIA-LHE BEM ESQUECER”

O Xangô de Baker Street é invenção de agenciamentos a partir de outros que já foram inventados. A narrativa é escrita que vai contra uma vida miserável, fascista e traça linhas de fuga, criando novas possibilidades de vida que deslocam as representações e possibilitam a invenção de um povo por vir.

O povo por vir é criado na falta. É uma coletividade inexistente, criada na integração social que não se concretiza, mas que é vibrante, pois lá reside, num enunciado coletivo de expressão, que não é representação de uma dada realidade. É um povo inacabado em constante devir que suscita em si e por si sua invenção. A invenção de um povo por vir leva, sobretudo, em conta o agenciamento coletivo de expressão enquanto expressão minoritária do devir que desinstala os corpos de sua ordenação natural, para construir percepções disjuntivas que possibilitam o visível e o dizível. O menor é, nessa linha de raciocínio, possibilitado pelo estético e político que fissuram o majoritário em seu tracejar de linhas de fuga (DELEUZE; GUATTARI, 2003).

No romance do humorista, existe uma perda das representações, um tornar- se capaz de viver sem lembrança, sem compreensão ou fantasia e sem fazer avaliação. Há somente fluxos, que ora esquentam, ora esfriam, ora se conectam ou

se partem em linhas de fuga: “[...] Um homem e uma mulher são fluxos. Todos os devires que há no fazer amor, todos os sexos, os n sexos em um único ou em dois, e que nada têm a ver com a castração [...]” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 62). Ao longo da narrativa há esquecimento, falta de prolongamento, fuga do que se encaminha para o sedentário. Holmes se esquece, para entregar-se à paixão ardente, viver nas coisas:

Sherlock Holmes estava inebriado, radiante como um adolescente. Descobrira uma emoção diferente, pois caminhavam o tempo todo de mãos dadas, experiência nunca vivida por ele. Pela primeira vez, em sua vida adulta, sentia, por um período tão longo, o toque de uma mulher. A palma suave e cálida da moça passava-lhe uma sensação quase febril. Não era mais Sherlock Holmes, era apenas um prolongamento de Anna Candelária, como se aquelas mãos entrelaçadas fossem mais do que o fortuito encontro de duas extremidades. Queria permanecer assim para sempre, amalgamado a ela. Fazia-lhe bem esquecer, por estes breves instantes, do violino, das cordas, dos crimes e das orelhas cortadas. (SOARES, 1995, p. 288-289).

A saída de territórios sedimentados aponta para essa vida nas coisas, para o que não se prende a palavras de ordem. É no plano de composição que a vida inorgânica das coisas se conserva. São blocos de sensação que se preservam e que separam coordenadas do senso comum para se atualizar em vetores abertos de transformações e criar projeções de imagens que ganham vida. No passeio público, entre árvores de tipos diversos e gramados cheios de flores, Holmes e Anna caminham ao luar repleto de estrelas. Ele descobre uma emoção propulsora e se sente envergonhado, sem palavras, quando a mulata sussurra uma canção que ouvira da janela de seu quarto, que dava para o parque onde se encontravam, pensando nele:

─ “Um dia podes cansar-te Do meu amor inocente, Mas peço que não acolhas No coração outra gente. Que faço dessas saudades, Se esse momento chegar? Por isso todas as lágrimas

Em outras palavras, o romance conduz à constituição dos personagens em vias de tornar-se o que são. Eles vão se inventando, à medida que a urdidura da trama se projeta pelo processo de fabulação. Para Deleuze (1997, p. 14), “[...] Compete à função fabuladora inventar um povo. Não se escreve com as próprias lembranças, a menos que delas se faça a origem ou destinações coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas traições e renegações”. A fabulação tem em Deleuze (1992, p. 214-215) uma base política, na apresentação bergsoniana da ideia de fabulação:

Os maiores artistas (de modo algum artistas populistas) apelam para um povo, e constatam que “o povo falta”: Mallarmé, Rimbaud, Klee, Berg. No cinema, os Straub. O artista não pode senão apelar para um povo, ele tem necessidade dele no mais profundo de seu empreendimento, não cabe a ele criá-lo e nem poderia. A arte é o que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha. Mas o povo não pode se ocupar de arte. Como poderia criar para si e criar a si próprio em meio a abomináveis sofrimentos? Quando um povo cria, é por seus meios, mas de maneira a reencontrar algo de arte (Garel diz que o Museu do Louvre contém, ele também, uma soma de sofrimento abominável), ou de maneira que a arte reencontre o que lhe faltava. A utopia não é um bom conceito: há antes uma “fabulação” comum ao povo e à arte. Seria preciso retomar a noção bergsoniana de fabulação para dar-lhe um sentido político.

A leitura deleuziana (2008) do conceito de fabulação em Bergson se afasta da ideia de fabulação como intenção humana de conferir atributos humanos a fenômenos naturais que os conduzem à invenção de religiões, com seus deuses e regras em determinadas sociedades. Por outro lado, Deleuze (2008) se aproxima daquilo que é utilizado por Bergson para romper tal círculo: “a emoção criadora”. Assim sendo, Deleuze, inspirado em Bergson, percebe que a fabulação se abre ao por vir, criando espaços, visibilidades inusitadas, que se contraem em momentos de dimensões variáveis, que retêm seus componentes.

Assim como Pierre Perault, segundo Deleuze (2007b, p. 183), no romance de Jô Soares, os personagens se encontram em “flagrante delito de criar lendas”, em situações que expõem problemas sociais, tornando a fronteira entre o privado e o político inexistentes. Eles enfrentam o que possivelmente não poderiam viver, em tais condições, num empecilho de realizar as escolhas que tomam para suas vidas. Tudo se encontra em processo de criação. O mito arcaico está em estado puro, em:

“[...] estados das pulsões numa sociedade perfeitamente atual [...]” (DELEUZE, 2007b, p. 261). Os conhecimentos românticos de Holmes se transfiguram, não mais se limitam: “[...] a uma visita ao túmulo de Keats, em Roma, e a uma montagem de Romeu e Julieta no Christ Church College, em Oxford, onde ele fizera o papel de mercúrio. Julieta era interpretada por um aluno gordo e sardento” (SOARES, 1995, p. 290). Apesar de não estar dopado pela cannabis, ele encontra uma maneira de falar de amor, fazendo uso de seus conhecimentos de botânica e afirmando que, para o arquiteto William Kent, “‘a natureza era um jardim’” e complementando: “Não é lindo, minha amada?” (SOARES, 1995, p. 291). Após todos esses galanteios amorosos, ela o beija e, ao responder às suas carícias, um ardor insuspeito toma conta de seu corpo. Ele não sabia que continha potencialmente um desejo sexual que poderia fluir dentro de si.

O desejo sexual é também o móbil que conduz Miguel Solera de Lara a tornar-se Oluparun. Miguel é um pacato livreiro que deseja estabelecer uma livraria numa das periferias de Londres: “[...] Talvez, uma pequena livraria no East End [...]” (SOARES, 1995, p. 77). O que o prende às terras brasileiras é sua mãe: “[...] pobre doente imaginária, sempre a queixar-se de aflições quiméricas, num casarão colonial em Botafogo [...]” (SOARES, 1995, p. 42). Sem compreender o que o leva a cometer crimes escabrosos, ele segue seu ritual cruel.

O serial killer começa desferindo, com precisão cirúrgica, um golpe na garganta de uma jovem prostituta sem nenhum motivo aparente. Sua motivação é simplesmente a raiva, o ódio e a perversão; tudo o que torna os crimes necessários para a sua metamorfose. Assim como Jack, o Estripador, Oluparun acredita numa justificativa plausível para seus crimes. As mulheres são tidas como prostitutas e, consequentemente, são nocivas e corrompem o tecido social: “[...] Todas elas putas. Pensa novamente na moça do chafariz. Então era uma camareira no palácio? Uma lástima, mas estava na rua àquela hora. Se estava na rua era uma puta. Puta, puta. Pois são todas putas na alma? [...]” (SOARES, 1995, p. 133-134). Para Douglas (apud WHITELOCK, 2014), o assassino serial londrino achava que os homicídios praticados se justiçavam socialmente: tratava-se de uma maneira prática de livrar-se das prostitutas, que se avolumavam em um dos mais miseráveis bairros da cidade. Contudo, à medida que os assassinatos vão ocorrendo, ele percebe que é simplesmente perverso como o Conde de Lautréamont, apesar de autodenominar-se

o “anjo vingador” que põe fim à luxúria na corte dos trópicos, ao abater a Grande Prostituta:

Ele é um dos sete anjos que guardam as setes taças do Apocalipse. Ele é a mortalha da Grande Prostituta. A Grande Prostituta veio para contaminar os reis da terra e, assim, perverteu o néscio imperador dos trópicos. Basta. Os habitantes da terra não mais se embriagarão com o vinho da sua concupiscência. Ele sabe que Oluparun deve ceifar a mulher cheia de nomes de blasfêmia, a mulher sempre adornada de ouro e pedras preciosas e pérolas e trazendo nas mãos impuras a taça das execrações e imundícies da sua devassidão. É chegada a hora de abater a Grande Prostituta desta agreste Babilônia. A mulher que despertou nele a besta da luxúria. (SOARES, 1995, p. 321).

Oluparun se encontra no mundo dos signos, contrapondo-se à racionalidade, num lugar onde a linguagem parece impossível, pois não possuindo sujeito que se manifeste nela, nem também objeto a designar ou predicados a significar, o que resta é a doação do sentido. De acordo com Deleuze (2003, p. 147), a obra obtém sua plenitude, quando “[...] os conteúdos significantes e significações ideais desmoronam dando lugar a uma multiplicidade de fragmentos e de caos, e as formas subjetivas, dando lugar a um impessoal caótico e múltiplo [...].” O serial killer está em meio de personagens que ganham vida, a partir de signos que não representam conteúdos apriorísticos, mas expressões que não possuem nem formas, nem semelhanças.

Tal como Deleuze (1997, p. 133), que encontra em Lawrence uma identidade árabe coletiva que se projeta numa imagem que vai além de um árabe resistente, em O Xangô de Baker Street, também se tem a projeção de imagens: imagens necessariamente intensivas de si mesmas e dos outros que é propriamente “uma fábrica de gigantes”. Holmes, Anna Candelária, Miguel/Oluparun, entre outros personagens assumem, identidades coletivas que não se separam do que eles realizam nas cenas apresentadas na obra. Os personagens soareanos se projetam nas coisas que lhes possibilitam vidas, mesmo que sejam momentâneas.