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A vida psicossexual do artista e cientista e sua recordação infantil

CAPÍTULO 4: NARCISISMO E HOMOSSEXUALIDADE

4.2 A homossexualidade de Leonardo da Vinci

4.2.1 A vida psicossexual do artista e cientista e sua recordação infantil

Para introduzir o leitor nesse escrito de Freud, tenhamos em conta que na primeira das seis seções do estudo sobre Leonardo, o psicanalista parte da constatação de que ele se destacava pelas habilidades de artista (Künstler) e de investigador da natureza (Naturforscher); mais do que isso, chama a atenção para "o giro de seus interesses desde sua arte (Kunst) para a ciência (Wissenschaft), que foi se acentuando com os anos"243, afirmação fundamentada no fato dele ter pintado cada vez menos, além de ter demonstrado o hábito de deixar incompleta a maioria de suas obras, mostrando-se insatisfeito em relação a elas e pouco preocupado com o seu destino. Se, a princípio, Leonardo fora atraído pela ciência em consequência de seu interesse artístico, a fim de reproduzir fielmente a natureza em seus quadros, posteriormente sua qualidade de investigador veio a prejudicar sua condição de pintor, afastando-o da atividade pictórica.

A fim de compreender tais aspectos biográficos de Leonardo, Freud suscita o leitor à investigação da vida sexual do artista, argumentando que, se um ensaio biográfico se propõe a penetrar na vida anímica de seu herói, não pode abster-se de abarcar "a peculiaridade sexual do indagado"244. Embora se conheça pouco a respeito desse aspecto em sua história, de antemão é sublinhada a atrofia da sexualidade de Leonardo, da ordem de uma frigidez. Não se tem notícia de seu envolvimento com nenhuma mulher e, apesar dos rumores, também não é possível confirmar o comércio sexual entre ele e seus discípulos, jovens e belos homens. Para o psicanalista, este silenciamento de tudo que diz respeito ao sexual na vida de Leonardo se harmoniza com sua mencionada "dupla natureza"245 de artista e investigador - a condição para amar ou odiar algo consiste em conhecê-lo, segundo as próprias declarações de da Vinci no

Tratado da pintura, citado por Freud. Quer dizer que, diferentemente do que se encontra correntemente entre os indivíduos - o amor e o ódio como sentimentos impulsivos, que antecedem o conhecimento acerca do objeto -, em Leonardo o afeto é submetido ao trabalho

243 FREUD, S. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci. AE, vol. 11, p. 61. 244 FREUD, S. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci. AE, vol. 11, p. 64. 245 FREUD, S. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci. AE, vol. 11, p. 68.

do pensar: "Seus afetos eram dominados, submetidos à pulsão de investigar (Forschertrieb); não amava ou odiava, senão que se perguntava por que deveria amar ou odiar, e o que significava isso"246.

Essa constelação psíquica explica porque a pulsão de investigar se tornou hipertrófica em Leonardo, embora ele tenha iniciado sua incursão pela ciência a serviço da arte. Tais características são interpretadas por Freud como indícios da submissão da pulsão sexual à pulsão de investigar no protagonista das análises empreendidas - a mudança de seus afetos, sua paixão, em apetite de saber (Wißbegierde). As observações da psicanálise inclinam-se a atribuir à tal hegemonia da pulsão de investigar, assim como à particular intensidade de qualquer outra pulsão, uma origem infantil e reforçada pelas forças pulsionais (Triebkräfte) sexuais, de modo que, posteriormente, venha a substituir um fragmento da atividade sexual. Na história infantil, a pulsão hiperpotente provavelmente estava a serviço de interesses da sexualidade, e no caso específico do predomínio da pulsão de saber, Freud convoca o período de investigação sexual infantil247 como testemunho desse enlace.

Baseado no pressuposto de que o período de investigação sexual infantil é atingido por uma onda de repressão sexual (Sexualverdrängung), Freud propõe três possibilidades quanto ao destino posterior da pulsão de investigar, decorrentes de sua ligação prévia com os interesses sexuais. Os dois primeiros tipos podem ser descritos, resumidamente, como uma inibição do apetite de saber, assim como a sexualidade fora inibida por ter sido alvo da repressão, chamado de inibição neurótica; ou a compulsão neurótica do pensamento - o retorno, desde o inconsciente, da investigação sexual sufocada pela repressão, que resulta na sexualização do pensar e na transformação do próprio investigar em atividade sexual, na medida em que as operações do pensamento envolvem prazer e angústia, que são características próprias dos processos sexuais.

O terceiro, considerado como o tipo "mais raro e perfeito"248, é o que mais nos interessa por ser o caso de Leonardo. Nele, por uma disposição peculiar, apesar da ocorrência da repressão sexual, a pulsão sexual não é lançada no inconsciente: "a libido escapa ao destino

246 FREUD, S. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci. AE, vol. 11, p. 69.

247 Como nos diz Freud, trata-se de um período atravessado por muitas crianças por volta do terceiro ano de vida, que se concentra em investigar de onde vêm as crianças. Normalmente, esse apetite de saber irrompe na criança quando nasce um irmão, o que é vivido como uma ameaça para seus interesses egoístas (FREUD, S. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci. AE, vol. 11, p. 73). Freud considera que a investigação sexual infantil colabora para o entendimento de que o apetite de saber, enquanto pulsão particularmente intensa na vida anímica, surge desde a infância, é reforçado por forças pulsionais sexuais e, posteriormente, vem a substituir um fragmento da vida sexual, à semelhança do que se pode observar em Leonardo.

da repressão sublimando-se desde o começo mesmo em um apetite de saber e somando-se como reforço à vigorosa pulsão de investigar"249. Ainda que pela sublimação também se alcance certa compulsão do pensamento e, em certo grau, este substitua a atividade sexual, trata-se de processos psíquicos de bases diferentes - a irrupção desde o inconsciente da investigação sexual reprimida, ao lado dos dois primeiros tipos, pertencente ao mecanismo neurótico; e a sublimação250, ao lado do terceiro tipo, no qual "dele [do investigar] está ausente a atadura aos originários complexos da investigação sexual infantil, e a pulsão pode operar livremente sua atividade a serviço do interesse intelectual."251

Contextualizar essa discussão de Freud sobre a sublimação é relevante na medida em que ele assume um tipo de homossexualidade em Leonardo, já na parte inicial de seu estudo, relacionada com sua hiperintensa pulsão de investigar, que por sua vez estava encadeada com interesses sexuais na infância:

Se nos atrevemos a relacionar a hiperpotente pulsão de investigar de Leonardo com a atrofia de sua vida sexual que se limita à homossexualidade chamada ideal [sublimada], nos inclinaremos a tomá-lo como o paradigma de nosso terceiro tipo. Então, o núcleo e o segredo de seu ser seria que, depois de uma atividade infantil do apetite de saber a serviço de interesses sexuais, conseguiu sublimar a maior parte de sua libido como esforço de investigar

(Forscherdrang).252

249 FREUD, S. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci. AE, vol. 11, p. 75.

250 Não nos debruçaremos sobre o tema da sublimação no escrito sobre Leonardo, no entanto, é oportuno indicar que, segundo Laplanche, "esse estudo é, sem dúvida, o mais completo sobre o assunto, embora tenha ainda numerosas lacunas" (LAPLANCHE, J. Problemáticas, III: a sublimação. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 57). Se voltarmos ao primeiro capítulo, lembraremos que Freud menciona a sublimação em

Introdução ao narcisismo, na ocasião em que discorre sobre o ideal do eu, sob o ponto de vista da distinção entre aquele processo e a idealização. Em 1914, Freud define a sublimação como um processo relativo à pulsão sexual e aos rumos da libido de objeto - a pulsão sexual se desvia da meta sexual -, ao passo que a idealização diz respeito à libido do eu ou à libido de objeto, já que consiste em engrandecer psiquicamente o eu ou o objeto. A sublimação é considerada uma via de escape que permite a satisfação das exigências do ideal do eu sem que isso seja feito através da repressão (FREUD, S. Introdução ao narcisismo. AE, vol. 14, p. 91-92). É interessante notar que há convergências do processo sublimatório conforme ele é descrito no artigo sobre o narcisismo e da sublimação conforme ela é descrita quatro anos antes, no texto sobre Leonardo da Vinci, na medida em que aqui já podemos reconhecer a ideia de que a pulsão é desviada de sua meta sexual e o faz por outra via que não a da repressão - quando a pulsão de investigar, outrora ligada a interesses sexuais, tem a sublimação como destino (o caso de Leonardo), desvincula-se da investigação sexual infantil; por conseguinte, desvia-se do alvo sexual e coloca-se a serviço da investigação intelectual, sem sucumbir à repressão.

251 FREUD, S. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci. AE, vol. 11, p. 75 (colchetes nossos). 252 FREUD, S. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci. AE, vol. 11, p. 75. Gostaríamos de retomar

aquela constatação de Elizabeth Roudinesco com a qual encerramos a primeira parte deste capítulo, concentrada na nota de rodapé dos Três ensaios de teoria sexual, e demos início à incursão sobre Uma

recordação infantil de Leonardo da Vinci: "Ou seja, se o homem no sentido freudiano é marcado pela tragédia do desejo, o homossexual não passa, do ponto de vista da tragicidade humana em geral, de um sujeito ainda mais trágico do que o neurótico comum, uma vez que sua escolha sexual instala-o à margem da sociedade burguesa. Seu único recurso então é tornar-se um criador, a fim de assumir o próprio drama. Encontramos essa posição no ensaio que Freud dedica a Leonardo da Vinci" (ROUDINESCO, E. Em defesa

Freud encerra a primeira seção do texto com ressalvas quanto a comprovar essa primeira tese sobre Leonardo, na medida em que faltam informações biográficas sobre ele, sobretudo referentes a seu desenvolvimento anímico na primeira infância. Às impressões infantis, o psicanalista concede importância decisiva na constituição psíquica dos indivíduos, conforme demonstra este trecho da segunda parte do texto: "De fato, nos primeiros três ou quatro anos de vida se fixam impressões e irrompem modos de reação frente ao mundo exterior dos quais nenhum vivenciar posterior pode mais arrebatar sua significatividade"253. Fica justificada a incursão, à qual Freud instigará o leitor na sequência de seu escrito, por entre as experiências infantis do artista e cientista, sobre quem apenas se tem as informações de ter sido um filho extraconjugal que viveu por um tempo indeterminado somente com a mãe, chamada Caterina. O único registro documentado relativo à infância de Leonardo data de seus cinco anos; menciona-o como filho ilegítimo de Ser Piero Da Vinci quem, já casado com outra mulher, com a qual não teve filhos, acolhera Leonardo em sua casa.

O ponto de partida da segunda seção - e também conteúdo central da obra - é a alusão de Leonardo à sua infância, provavelmente a única, presente em um de seus escritos científicos que versa sobre o voo do abutre, em que ele descreve a recordação (Erinnerung) de ter sido visitado em seu berço por um abutre (Geier) que abriu-lhe a boca com sua cauda

(Schwanz) e golpeou com ela contra seus lábios, justificando, assim, que parecia estar destinado há tempos a se ocupar dessa ave de rapina254. Freud também chama a recordação de infância (Kindheitserinnerung) de Leonardo de fantasia (Phantasie), por conta dela se referir a um período demasiadamente precoce: "Aquela cena com o abutre não há de ser uma recordação de Leonardo, senão uma fantasia que ele formou mais tarde e transferiu a sua infância."255 Para Freud, não é possível distinguir precisamente as recordações infantis das fantasias; as primeiras, na medida em que são recuperadas, sofrem alterações e são colocadas da psicanálise: ensaios e entrevistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 47-48). É pertinente recuperar este comentário na medida em que ele se torna mais claro depois da leitura desse trecho de Freud ao qual anexamos essa nota de rodapé. Freud considera que o núcleo e o segredo de Leonardo estão na sublimação da pulsão sexual da qual ele é capaz, que explica sua expoente capacidade intelectual e criativa, ao mesmo tempo em que justifica sua vida sexual atrofiada, ou melhor, sua homossexualidade, que Freud nomeia de ideal. O drama da homossexualidade é socialmente ajustado na medida em que as pulsões libidinosas de Leonardo são sublimadas - desviadas de seu fim sexual - e têm como destino a atividade intelectual e, podemos acrescentar, artística.

253 FREUD, S. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci. AE, vol. 11, p. 85.

254 É precisamente nesse ponto que se encontra o erro de tradução, já que na tradução alemã utilizada por Freud o termo italiano que designa a ave - nibio - fora traduzido por Geier, que significa abutre, e não por milan, que é o vocábulo correto. Ele é especialmente prejudicial e levantou questionamentos porque o psicanalista deriva uma série de interpretações colocando o "abutre" como fundamento.

a serviço de tendências posteriores à infância, o que, no entanto, não retira sua validade. Através da analogia com o desenvolvimento da atividade historiográfica entre os povos antigos256, que também é composta tardiamente, implica em desfigurações e nem por isso deixa de representar (repräsentieren) a realidade do passado (Realität der Vergangenheit), Freud ressalta a capacidade das recordações infantis ou fantasias dos indivíduos de revelar traços essenciais de sua vida anímica.

Assim, é delineada a proposta do autor de "preencher as lacunas da biografia de Leonardo mediante a análise de sua fantasia infantil"257, ancorado nas técnicas psicanalíticas, que consistem em recursos eficazes para iluminar aquilo que se encontra escondido ou que nos parece obscuro. Trata-se, para Freud, de enxergar a fantasia infantil do protagonista do estudo com "os olhos do psicanalista"258, traduzi-la (übersetzen) de sua linguagem privada

(eigentümliche Sprache) para palavras que possam ser compartilhadas por todos, à semelhança do que se pode empreender com os aparentemente enigmáticos sonhos, delírios ou outros tipos de criações psíquicas, com a expectativa de que seja possível apreender deles um significado (Bedeutung)259. No caso de Leonardo, Freud afirma de antemão que a tradução

(Übersetzung) da fantasia conduz ao erótico; a relação convocada pelo autor é aquela que associa a cauda do abutre ao órgão sexual masculino260 e, consequentemente, a fantasia do abutre que golpeia contra os lábios da criança com sua cauda ao sexo oral praticado no genital masculino.

O psicanalista chama a atenção para o caráter passivo desse tipo de atividade sexual, praticada pelas mulheres e pelos homossexuais passivos261. Avança mais um pouco ao conceber a atitude de introduzir o genital masculino na boca para mamá-lo (saugen) como uma refundição (Umarbeitung) da experiência de tomar o seio materno na boca para mamar

256 Cf. FREUD, S. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci. AE, vol. 11, p. 78-79. 257 FREUD, S. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci. AE, vol. 11, p. 80. 258 FREUD, S. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci. AE, vol. 11, p. 80.

259 É notável o movimento efetuado por Freud na sequência do texto, desde tal conhecimento restrito sobre o desenvolvimento anímico de Leonardo na primeira infância, até as múltiplas e complexas interpretações sobre sua figura, à semelhança da imagem de um feixe de luz divergente que parte de um ponto isolado e se propaga em diversas direções. Chegar-se-á até a discussão sobre a homossexualidade e o narcisismo através dessa fantasia infantil de Leonardo.

260 A associação imediata se dá pelo significado da palavra "cauda" - Coda, no italiano; Schwanz no alemão;

Cola no espanhol. Freud explica que "é um dos mais familiares símbolos e designações substitutivas do membro viril, não menos em italiano que em outras línguas" (FREUD, S. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci. AE, vol. 11, p. 80).

261 Entenda-se: "aqueles que desempenham o papel feminino no ato sexual" (FREUD, S. Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci. AE, vol. 11, p. 80).

(saugen), nosso "primeiro gozo vital"262. Conclui parcialmente, então, que por trás da fantasia de Leonardo se encontra a memória da vivência infantil da amamentação: "Na verdade, atrás dessa fantasia não se esconde outra coisa que uma reminiscência do mamar - ou do ser amamentado - no peito materno"263.

Se da imagem do abutre que abriu-lhe a boca com sua cauda e golpeou com ela contra seus lábios Freud chega ao sexo oral praticado no genital masculino, e deste, por sua vez, à experiência de ser amamentado pela mãe, qual seria a causa da refundição da amamentação em uma fantasia homossexual passiva? Esta é uma das questões que emerge como precipitado diante dessa análise da recordação infantil de Leonardo. A resposta de Freud a esta pergunta interessa-nos em especial, por circunscrever-se ao tema da homossexualidade. Para tanto, saltaremos para a terceira parte do estudo sobre Leonardo, na qual o psicanalista se propõe a avançar no trabalho de interpretação (Deutungsarbeit) da fantasia infantil do protagonista da obra. Trata-se da seção mais importante do texto de acordo com nossos propósitos, visto que a discussão acerca de seus conteúdos desemboca na referência ao narcisismo e em sua relação com a homossexualidade.

4.2.2 A gênese psíquica da homossexualidade ideal de Leonardo segundo a investigação