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A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO

4. UMA ANÁLISE DO CASO ELOÁ PIMENTEL À LUZ DOS TRÊS PILARES

4.2. A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO

A partir dos estudos acerca da dominação patriarcal e da construção histórica do conceito de gênero, nota-se que essas elaborações teóricas ecoam de forma explícita na dinâmica dos acontecimentos envolvendo o longo cárcere.

Conforme se extrai das absurdas “entrevistas” ao vivo402, Lindemberg Alves se comporta, a todo tempo, com total segurança, como se suas ações fossem plenamente justificáveis – vez que a negativa da vítima diante de sua insistência em reatar o relacionamento não havia lhe deixado alternativa, senão uma atitude extremada e violenta.403

Nessa linha, de acordo com a argumentação melhor desenvolvida no segundo capítulo do presente trabalho, salienta Beauvoir que a violência é ínsita à socialização masculina.404 Comportamentos ameaçadores, em especial frente às mulheres, não são somente normalizados, mas estimulados.405

O conceito de masculinidade hegemônica406, elaborado por Robert W. Connell e trazido por Romeu Gomes também ganha bastante destaque ao examinarmos o caso. A imposição da vontade masculina perante à mulher, ainda que mediante o uso da violência, é normalizada ao ponto de um dos entrevistados de um programa de televisão, o advogado criminalista Ademar

402 Conforme trechos de programas de televisão colacionados no documentário QUEM matou Eloá?, op. cit. 403 Excerto da decisão do caso, encontrado em um portal de notícias: “(...) Dispensado o relatório, nos termos do

artigo 492, do Código de Processo Penal. Submetido a julgamento nesta data, o Colendo Conselho de Sentença reconheceu que o réu LINDEMBERG ALVES FERNANDES praticou o crime de homicídio qualificado pelo motivo torpe e recurso que dificultou a defesa da vítima (vítima Eloá Cristina Pimentel da Silva), o crime de homicídio tentado qualificado pelo motivo torpe e recurso que dificultou a defesa da vítima (vítima Nayara Rodrigues da Silva), o crime de homicídio qualificado tentado (vítima Atos Antonio Valeriano), cinco crimes de cárcere privado e quatro crimes de disparo de arma de fogo. (...)”. In: LEIA a íntegra da sentença que condenou Lindemberg Alves. UOL Notícias, São Paulo, 2012. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/02/16/leia-a-integra-da-sentenca-que-condenou- lindemberg-alves.htm>. Acesso em: 04 fev. 2018.

404 BEAUVOIR, op. cit., 1967, p. 21. 405 Ibidem, p. 21.

406 Mencionado anteriormente no presente trabalho (através da óptica do autor Romeu Gomes), Robert W. Connell,

estudioso da Universidade de Sydney, entende que “A masculinidade hegemônica é hegemônica não somente em relação às outras masculinidades, mas em relação à ordem de gênero como um todo. É uma expressão do privilégio que os homens possuem, coletivamente, sobre as mulheres. (...). Existe uma política de gênero ativa na vida cotidiana. Às vezes, por meio de uma espetacular expressão pública, a exemplo de grandes manifestações ou demonstrações”. Tradução livre: “Hegemonic masculinity is hegemonic not just in relation to other masculinities, but in relation to the gender order as a whole. It is an expression of the privilege men collectively have over women. (…) There is an active politics of gender in everyday life. Sometimes it finds spectacular public expression, in large-scale rallies or demonstrations.” CONNELL, Robert W. Understanding men: gender sociology and the

new international research on masculinities, Clark Lecture, Department of Sociology, University of Kansas, 19

September, 2000, p. 04-05. Disponível em: <www.europrofem.org/contri/2_04_en/research-onmasculinities.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2018.

Gomes, afirmar que o desfecho do trágico quadro seria, certamente, o casamento entre sequestrador e vítima.407

Esse comentário remete, quase que imediatamente, a uma previsão do Código Penal no sentido de que o casamento da vítima de crimes contra a dignidade sexual (então denominados “crimes contra os costumes”408) com o agressor ensejaria a extinção de sua punibilidade. O

vetusto preceito legal, hoje extinto, é uma mostra por excelência da anulação da vontade da mulher frente à referida hegemonia masculina.409

Longe de constituir um anacronismo, a questão do prestígio social do casamento para as mulheres410 é aqui evidenciada. A mulher é dignificada, vista com outros olhos por aqueles que a rodeiam, validada puramente pela volição do homem que a escolhe. Como restou demonstrado pelas entrevistas e reportagens acerca do caso, pouco importa se essa “escolha” envolve abuso e violência (aliás, esses traços são objeto de romantização).

Todo esse quadro permite realizar uma conexão também com o conceito de Bourdieu de violência simbólica, verificada na absurda conexão engendrada entre um sentimento amoroso e um cárcere privado. Novamente, depreende-se que a violência física foi enfrentada enquanto uma via corriqueira para exprimir a vontade do ex-companheiro em reatar, remetendo à ideia de dominação naturalizada.411

Relata a imprensa: trata-se de um rapaz trabalhador e sem antecedentes, atormentado por um amor mal resolvido e pelo desprezo da ex-companheira.

Nesse sentido, Cynthia Semíramis, a partir dos estudos da antropóloga Rita Laura Segato, entende que:

(...) a sociedade patriarcal age para que a agressão contra mulheres seja minimizada em nome do profissional famoso e respeitável, do bom trabalhador, do pai de família ou do amigo incapaz de agredir um mosquito, sendo que nenhum deles hesita em agredir física ou psicologicamente uma mulher que ele considere que está desobedecendo ao modelo de feminilidade vigente e que, a seus olhos, torna-se merecedora de violência.412

407 Fragmento do Programa “A Tarde é Sua”, exibido pela emissora Rede TV, colacionado no documentário

QUEM matou Eloá?, op. cit.

408 Alteração operada pela Lei nº 12.015 de 2009.

409 “Art. 107 - Extingue-se a punibilidade: (...) VII - pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os

costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código.” O comando legal foi revogado pela lei nº 11.106 de 2005.

410 SEMÍRAMIS, Cynthia. Feminicídio: a morte de mulheres em razão do gênero. Disponível em:

<https://cynthiasemiramis.org/2011/08/19/feminicidio-a-morte-de-mulheres-em-razao-de-genero/>. Acesso em: 10 fev. 2018.

411 BOURDIEU, op. cit., p. 47. 412 SEMÍRAMIS, op. cit.

Aqui, é perfeitamente verificável a questão dos papéis de gênero. Consoante os estudos de diversas estudiosas de orientação feminista,413 a reação masculina em face das mulheres que não acatam a submissão ou que ocupam locais aos quais não pertencem “naturalmente” é, por óbvio, violenta.

Nota-se, na recusa da adolescente, a recusa a se adequar ao papel submisso que a sociedade reserva às mulheres (que devem perpetuar relacionamentos abusivos e saber lidar com companheiros violentos).

Seu papel enquanto mulher era o de passivamente se submeter à vontade do companheiro ou, ao menos, dirimir os desentendimentos entre eles, numa tentativa de contornar sua agressividade. A sua autodeterminação sexual e afetiva deveria ser completamente anulada – por isso sequer é aventada em momento algum por aqueles que analisam o sequestro em tempo real.

Destaca Gargiulo o simbolismo das agressões: um tiro na virilha e um no rosto.414 Não

por acaso, em casos de feminicídio - à semelhança do que ocorreu no paradigmático caso de Ciudad Juárez – as agressões são frequentemente dirigidas a regiões do corpo da mulher ligados à vaidade e à sexualidade.415

O desfecho do sequestro foi, nada mais, que o “ponto final num continuum de terror”416

– conforme as elaborações de Caputi e Russell.

Entrevistada no documentário “Quem Matou Eloá?’, a militante feminista Analba Teixeira, assevera que o primeiro episódio de violência por parte do namorado contra Eloá não havia sido reportado à polícia, talvez em razão da mentalidade de que “não se mete a colher em briga de marido e mulher”.

413 A exemplo de Saffioti (1999, 2001, 2002), Caputi (1992), Radford (1992) e Russell (1992), Fragoso (2002) e

Pasinato (2011).

414 QUEM matou Eloá?, op. cit.

415 De acordo com Aparecida Gonçalves, secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da

Secretaria de Políticas para as Mulheres entre 2003 e 2015 e ativista do movimento de mulheres especialista em gênero e violência contra as mulheres: “(...) Temos percebido fenômenos como o assassinato e abandono do corpo da mulher, muitas vezes com marcas de violência sexual e lesões em regiões do corpo que denotam feminilidade ou com conotação sexual – como rosto, seio, ventre e genitais, por exemplo – e indícios de que os crimes são praticados com crueldade e uso de tortura. Há ainda outras situações que podem ocultar razões de gênero e que comumente caem na vala comum, por exemplo, dos crimes relacionados à violência urbana.” In: AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO. Dossiê Feminicídio. Como e por que morrem as mulheres? Disponível em: <http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossies/feminicidio/capitulos/como-e-por-que-morrem-as-

mulheres/#como-morrem-as-mulheres>. Acesso em: 22 jan. 2018.

Esse modo de pensar, no entanto, vem sendo combatido de forma cada vez mais veemente pelo movimento feminista, com a crescente publicização do problema.417 Conforme destacado por Ana Aguado e explorado mais minuciosamente no segundo capítulo, a violência doméstica é uma questão política.418

Nessa linha argumentativa, parece pouco razoável a inferência dos detratores da inserção da qualificadora do feminicídio no ordenamento pátrio acerca de uma suposta simetria entre crimes cometidos por mulheres contra seus parceiros419 (muito mais escassos, como reconhecido pela autora Luiza Nagib Eluf)420 e os casos nos quais a mulher é a vítima.

Transcreve-se, a seguir, um breve escorço do tratamento jurídico dispensado a tais crimes, no histórico do ordenamento jurídico pátrio:

No tempo do Brasil-colônia, a lei portuguesa admitia que um homem matasse a mulher e seu amante se surpreendidos em adultério. O mesmo não valia para a mulher traída. O primeiro Código Penal do Brasil, promulgado em 1830, eliminou essa regra. O Código posterior, de 1890, deixava de considerar crime o homicídio praticado sob um estado de total perturbação dos sentidos e da inteligência. Entendia que determinados estados emocionais, como aqueles gerados pela descoberta do adultério da mulher, seriam tão intensos que o marido poderia experimentar uma insanidade momentânea. Nesse caso, não teria responsabilidade sobre seus atos e não sofreria condenação criminal. O Código Penal promulgado em 1940, ainda em vigor, eliminou a excludente de ilicitude referente à “perturbação dos sentidos e da inteligência” que deixava impunes os assassinos chamados de passionais, substituindo a dirimente por uma nova categoria de delito, o “homicídio privilegiado”. O passional não ficaria mais impune, apesar de receber uma pena menor que a atribuída ao homicídio simples. Na população, porém, permanecia a idéia de que o homem traído tinha o direito de matar a mulher.421

Considerado essa trajetória jurídica, é inegável que se afigura necessária a criação de uma qualificadora que abarque, especificamente, os casos de feminicídio.

Muito embora a sociedade tenha superado certos preconceitos e argumentações manifestamente sexistas da defesa - tais como a famigerada “legítima defesa da honra” ou o homicídio privilegiado422 – já não prosperem de forma tão acintosa, defender a existência

417 AGUADO, op. cit., p. 25, 26. 418 Ibidem, p. 25, 26.

419 Nesse sentido se posicionam os autores que argumentam que a retrocitada qualificadora viola o princípio da

igualdade, a exemplo de Vinícius Rodrigues Arouck, Euro Bento Maciel Filho, Leonardo Isaac Yarochewsky, Luís Francisco Carvalho Filho e Eduardo Luiz Santos Cabette, conforme excertos de artigos coletados e analisados por Ana Lúcia Sabadell, op. cit., 2016.

420 Esclarece a autora que as “O pequeno número de crimes passionais praticados por mulheres talvez possa ser

explicado por imposições culturais. Mulheres sentem-se menos poderosas socialmente e menos proprietárias de seus parceiros. Geralmente, não os sustentam economicamente. Desde pequenas, são educadas para ‘compreender’ as traições masculinas como sendo uma necessidade natural do homem.” In: ELUF, Luiza Nagib. A paixão no

banco dos réus: casos passionais célebres: de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves. 3ª ed. – São Paulo, Saraiva,

201 p., 2007, p. 118.

421 Ibidem, p. 164.

422 “A alegação de homicídio privilegiado, isto é, cometido por relevante valor moral ou social, ou sob o domínio

neutralidade axiológica no tratamento de crimes como esse ou elaborar qualquer tipo de simetria em casos nos quais o homem é a vítima implica a negação de uma enorme carga ideológica – o que é ir de encontro aos fatos, tendo em vista a análise aqui tecida acerca do retratos traçados pela mídia desses episódios.

Conforma argumenta Ana Lucia Sabadell, é possível harmonizar a referida qualificadora com uma visão garantista do Direito – vez que a proteção à vida das mulheres é um bem jurídico nuclear e de extrema relevância.423 A referida autora faz também menção à importância da criação da qualificadora, no sentido de acender debates acerca da violência doméstica e dos assassinatos em razão do gênero.424

Carmen Hein de Campos opina no mesmo sentido, asseverando que a qualificadora exprime uma preocupação estatal diferenciada para com tais crimes.425 Em face de tal manancial teórico e do tratamento culpabilizador e estigmatizante que tão frequentemente atinge as vítimas mulheres – conforme restou evidenciado no caso – conclui-se que a singularização jurídica desses casos é de importância primal.