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5 EQUIPES E SETORES NO CRAM: O TRABALHO DE CADA E O TRABALHO

6.1 A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NO COTIDIANO DO CRAM

6.1.1 A Violência Doméstica e suas Tipificações

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manter um “livro de registros” onde relatavam os atendimentos, demandas do plantão e encaminhamentos para os dias seguintes. As educadoras sociais realizavam suas anotações e mantinham o livro sobre a mesa desse setor. Outro tipo de registro era a “síntese dos casos mensais”. Em cada mês, era realizado um levantamento dos novos casos e preenchida uma ficha que continha os principais dados das mulheres usuárias, como o nome, idade, a principal queixa e os tipos de violência sofridos por elas. Para cada usuária, uma ficha diferente. Era uma ficha digitalizada e impressa na metade de uma folha A4. Rafaela, uma vez declarou que é uma forma prática delas recorrerem aos casos atuais e de obterem certa estatística das tipificações das violências domésticas.

O fato delas registrarem dessa forma os casos e as tipificações, me despertou o interesse em ler essas fichas e de perguntar as interlocutoras um pouco mais sobre as tipificações. Durante as entrevistas foram incluídas algumas perguntas relacionadas ao que elas atribuem como relevante sobre as violências apresentadas ao CRAM Márcia Dangremond. O objetivo de analisar as opiniões e relatos sobre a tipificação da violência foi o de observar quais valores estão envolvidos nessas tipificações e o quê nesses relatos contribui para a definição e enfrentamento à violência pelas interlocutoras.

A violência doméstica é tipificada principalmente no artigo 7, I a V da Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha. Ela é tipificada em cinco tipos: a violência psicológica, física, sexual, patrimonial e violência moral. A violência psicológica se configura como as humilhações, xingamentos, ameaças, constrangimentos, ridicularizações, e qualquer outro comportamento que tenha como intuito diminuir o valor e legitimação da mulher. Já a violência física implica qualquer atitude que comprometa a saúde e integridade corporal da mulher, como torturas e lesões. A violência sexual se resume aos atos de constrangimento, quando a mulher é mantida ou forçada a participar de relações sexuais não desejadas; que restrinjam o exercício dos seus direitos sexuais e reprodutivos, como a exploração sexual e o estupro. A violência patrimonial consiste nas condutas em que se retenha, subtraía ou destrua, parcial ou totalmente, qualquer objeto ou bem pertencente à mulher. Por último, se apresenta também a violência moral, que são atos que se configuram como injúria, calúnia ou difamação.

Na definição de violência da educadora Nara, ela expressou seu conceito de forma bastante aproximada da definição de violência psicológica. A perspectiva dela apresentou uma dimensão da violência como um “fenômeno além da violência física”. Ou seja, ela, de certa forma, nega que a violência física seja o estopim ou auge da violência. Na fala de Rafaela essa

questão também está presente, mas de uma forma um pouco mais implícita.

Nara – Eu acho, Gabi, que violência, agressão é tudo. Acho que uma família é um elo, quando você mora em algum local, é família. Você acorda, convive com essas pessoas, tudo ali é compartilhado. E quando eu olho pra você e você diz: “ você é gorda”, pra mim já é violência. Quando eu não respeito teus limites, pra mim é uma violência. Seja na maneira de falar, de vestir, no comportamento, se eu não respeito isso aí pra mim já é violência. Quando eu te olho com maus olhos, isso já é violência. Quando denigrem minha imagem, não respeitam minhas opiniões, as considerações vão embora, entendeu? Quando começo a ser um ditador, acho que violência é isso. Eu acho que o patrimonial pra mim ainda é a mais simples do que a moral e psicológica. Meus pais diziam: “seu direito termina quando começa o do seu vizinho”. Acho que se seguisse isso não teria violência não. Mas acho que 75% da sociedade ainda pensa “pode fazer tudo comigo, mas se me bater, as coisas pegam fogo”, mas não é por aí. Acho que não precisa bater pra violar nada.

(Nara, educadora social)

Rafaela – Olhe, hoje eu tenho esse conhecimento sobre violência, mas antes eu pensava que grito não era violência, né. Por que violência é vista por deixar marcas e palavras deixam marcas, e as vezes deixam sequelas mais fortes do que na pele. E eu vejo que antes eu tinha essa visão igual a essas meninas, que era só briga de casal. Porque as vezes, falando em casal, você vive com a pessoa a tantos anos, deposita confiança e vê que a pessoa usa sua fragilidade pra te atingir. Deixa marcas no corpo e na alma também, que são mais fortes.

As profissionais do CRAM demonstraram defender bastante a ideia de que a violência física é mais um dos tipos de violência. Elas costumavam divulgar para as usuárias, que é fundamental todas as mulheres permanecerem atentas aos diferentes sinais de um relacionamento que indique que a violência esteja presente. Uma das perspectivas delas é semelhante a afirmação de Rafaela “ ... violência é vista por deixar marcas e palavras deixam marcas, e as vezes deixam sequelas mais fortes do que na pele”. Com isso, uma das violências que elas apontaram ser uma das mais comuns ou a que está presente em todas as situações, é a violência psicológica.

Diana – Olhe, quando a gente vai caracterizar a violência, a gente identifica todos os tipos. Tem mulheres que chegam com violência física, psicológica, de patrimônio, principalmente a moral. Então assim, é raro que tenha uma mulher que sofra um tipo só de violência, uma só tipificação, é raro. Geralmente é quatro, é cinco, a gente identifica de imediato. A gente vê que essas mulheres nem se identifica como vítima de violência quando não sofre a violência física, mas psicologicamente ela já está sendo muito tempo violentada. A questão da violência moral mesmo, é o que a gente vê que é o mais absurdo. A psicológica, a moral, são as que muita gente tem o olhar como se fosse natural, mas não é. Não é normal, acho que nenhum ser humano tem que passar por isso. Mas assim, por ser uma violência tão berrante nas nossas vidas, em todos os setores, em todas classes sociais, as pessoas não identificam mais como violência, né. Mas é. Assim, uma violência silenciosa e as vezes a gente só passa a identificar com um laudo da psicóloga, né. Mas a gente identifica,mais de um tipo. (Diana, coordenadora do setor educacional)

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Além de Diana ter enfatizado que as violências mais comuns costumam ser a psicológica e moral, ela também declarou que as usuárias do serviço costumam vivenciar a maioria ou todos os tipos de violência, ao mesmo tempo. Essa opinião foi compartilhada pela maioria das profissionais. Algumas apontaram a violência psicológica e física como as mais recorrentes, mas também acrescentaram que essas podem ser as mais “marcantes” nas histórias das violências e as que sua permanência motivam mais as mulheres a denunciarem e tentarem sair dessas situações.

Rafaela - Geralmente quando elas chegam aqui, chegam com todas elas completas, né. Por que começa com as agressões, humilhações e depois vai aumentando e a mulher vai passando a mão. Depois vem os empurrões, e depois chega as vias de fato né, a violência física. Por que começa com a violência psicológica. Aqui já teve mulheres com todas as violências, completa mesmo, de você preencher todas. Uma que é abrangente, mas não é tão gritante, é a sexual. Assim, de estupro mesmo é que a menos tem. Se for ver as pastas, registros mesmo, tem a patrimonial, que é quando quer atingir os objetos, né, não conseguindo, ele atinge a mulher. A gente trabalha com a psicológica, a moral, a sexual, a física e patrimonial. A gente tem um papel que discrimina os tipos de violência.

Cláudia – A maioria delas ou até todas são as mais recorrentes. Geralmente quando a mulher chega aqui ela passou por todas, mas a que eu percebo ser a maior parte é a violência psicológica. As meninas que estavam aqui, elas não vieram por que o cara bateu nela, e sim porque eles ameaçaram, porque controlaram suas vidas, porque tinha que ser do jeito deles. Eu percebo que tem muitas violências, mas a maior é a psicológica.

Pesquisadora – E qual é a diferença entre a violência psicológica e a moral?

Cláudia – É tudo a mesma coisa, não tem separação não. Quando tá atingindo um, tá atingindo o outro também. E quando tá atingindo o corpo, também tá atingindo a alma. Então assim, é uma coisa muito interligada.

As profissionais demonstraram buscar as particularidades em cada violência relatada e como podem tipificá-las. Por outro lado, ao decidirem quais medidas e intervenções tomar, preferem abordar a violência como um fenômeno único. Isso, pelo fato de considerarem que a mulher quando é vítima de violência, não é apenas um aspecto da sua saúde, autonomia e autoestima que é atingido, e sim a sua vida por completo. As profissionais relataram que os tipos de violência precisam ser registrados e analisados, mas o que precisa de atenção é a saúde física, mental e o bem-estar da mulher. Ou seja, o que é priorizado é a mulher que sofreu os impactos dessa violência, e não as violências que foram praticadas contra ela.