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5 E QUANDO A VIOLÊNCIA SILENCIA AS NARRATIVAS?

5.3 A violência da tortura

- Cuide desse rapaz – disse. – Trate de convencê-lo a dar os nomes daqueles que estão trazendo para o povoado a propaganda clandestina. Se não o conseguir por bem – acentuou -, trate de arrancar-lhe a confissão de qualquer maneira 385.

Depois de receber a parte do soldado de guarda, mandou abrir a cela onde Pepe Armador parecia dormir profundamente estirado no chão de ladrilhos. Fê-lo voltar-se com o pé e por um instante observou, com uma secreta comiseração, o rosto desfigurado pelos golpes.

Desde quando não come? – perguntou. Desde a noite de anteontem.

Ordenou que o erguessem. Agarrando-o pelas axilas, três soldados arrastaram o corpo pela cela e o sentaram no estrado de concreto incrustado na parede a um metro e meio de altura. No lugar onde estivera o corpo, havia ficado uma sombra úmida.

Enquanto os soldados o mantinham sentado, outro lhe erguia a cabeça, segurando-o pelos cabelos. Poder-se-ia pensar que estava morto, a não ser pela respiração irregular e a expressão de extremo esgotamento que se notava em seus lábios.

Ao ser largado pelos soldados. Pepe Armador abriu os olhos e se agarrou, às tontas, às bordas do cimento. Depois desabou no estrado, com um gemido rouco.

O alcaide deixou a cela e ordenou que lhe dessem de comer e que o deixassem dormir por alguns instantes.

- Depois – disse – continuem trabalhando, até que ele cuspa tudo o que sabe. Não acredito que possa resistir muito tempo386.

384

MÁRQUEZ, 2014d, p. 19-20.

385 MÁRQUEZ, 2014c, p. 193. 386 MÁRQUEZ, 2014c, p. 221-222.

Em Veneno da madrugada, Gabriel García Márquez aborda questões como censura, tortura e autoritarismo, ao contar a história de uma cidade amedrontada pelos pasquins. Estes eram colocados, à noite, na porta da casa das pessoas e contavam pormenores da vida íntima dos cidadãos, causando discórdias e medo da violação da intimidade.

A descrição da tortura sofrida por Pepe Armador é muito significativa e bem próxima de depoimentos colhidos pela Comissão Nacional da Verdade do Brasil sobre violações de direitos ocorridas no período da ditadura militar de 1964 a 1985.

Ontem eu custei um pouco pra reconhecer o prédio. Foi necessário que a gente localizasse uma coluna, que está meio disfarçada, no meio de paredes. Só que quando nós achamos essa coluna, que ficava junto às salas de tortura, eu reconheci o prédio. Junto a essa coluna ficava um banco encostado. Como eram duas as salas de tortura, e nós éramos três, eles colocavam um em cada sala, pra tomar sessões de choque; uma das salas tinha o pau de arara, pra pendurar no pau de arara, e o outro ficava sentado, era bem do lado, quem sentasse nessa cadeira ouvia os que estavam sendo torturados. Era uma maneira que eles utilizavam para que aquele que estivesse esperando se autotorturasse, ficasse imaginando, ficasse configurando na sua cabeça o que aconteceria com ele. No momento em que eu fui colocado nesse banco, sempre algemado para trás, pensei: “Como é que eu posso me livrar dessa situação? Como é que eu posso amenizar isso?”. Decidi: “Só tem uma forma de fazer isso: dormir”. Então encostei nessa coluna e disse: “ om, é sua obrigação revolucionária, obrigação moral de dormir”. Aí eu dormi. Depois disso, isso me ajudou enormemente, porque eu aprendi a dormir, nunca depois disso tive um problema de insônia, os poucos momentos que eu ficava na cela dormia desbragadamente. Quando vinham, jogavam a comida por baixo e eu empurrava com o pé de volta, e continuava dormindo. Porque, enquanto eu dormia, podia sonhar. Eu estava na praia, eu estava continuando a fazer as coisas, estava entrando em quartéis, tomando os quartéis, levando as armas que deveriam estar em poder do povo. Aprendi a dormir

[Antônio Roberto Espinosa, depoimento à CNV, em 24 de janeiro de 2014. Arquivo CNV, 00092.000570/2014-21]387

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A experiência do encarceramento no presídio Tiradentes foi narrada por Áurea Moretti Pires em depoimento à CNV, datado de 25 de fevereiro de 2014:

No quartel. Antes disso levaram nós da delegacia, eu e o Vanderlei, que era a cabeça da coisa. Levaram, então, o cabo Aparecido com seu pau de arara, com seu choque elétrico, tá, eu amarrada do modo como eles fazem que fica amarrado, assim, pulso amarrado, de um modo que a parte de baixo da perna dá pra passar o cano do pau de arara, né?, então quando levanta a gente tá pendurado de cabeça pra baixo, e no caso ele tirou toda minha roupa, fiquei só de calcinha. [...]

O Miguel Lamano também entrou na estória. Foi lá dar tapa na minha cara. Claro, sempre assim, sabe? Mas depois mandou o cabo Aparecido parar, porque os dois eram juntos. E o Lamano veio batendo ni mim e eu amarrada no pau de arara. Ele ria de mim e falava assim: ixe, é magrela demais, não

vai aguentar pau de arara. Eu virei e falei mesmo, falei: imagina, eu é que aguento porque eu sou magra, eu queria ver você com essa barriga, cê já tinha entregado até tua mãe. E os soldados ouviram e saíram espalhando, porque todo mundo tinha medo e ódio dele, de ver ele como ele espancava todo mundo, ainda não nós, e eu peitava no que eu podia, e não deixava barato as coisas388

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Antônio Pinheiro Salles conta sobre as torturas as quais foi submetido em seu depoimento de 18 de setembro de 2013 à CNV:

[...] Este Nilo Oliveira [...], muitas vezes quando eu estava pendurado no pau de arara, porque a gente fica com a cabeça para baixo, pois durante um tempo você resiste, fica com a cabeça ainda levantada, depois de algum tempo você não exerce mais nenhum domínio sobre o corpo. É tudo assim, amortecido. O resto está amarrado, mas o pescoço ele cai. E ele foi inúmeras vezes chegar em cima de mim, lá no local onde o meu pescoço caído, ele abria a calça, tirava o pênis e urinava na minha cara. Ele fez isso várias vezes. “Eu estou com vontade de urinar, vou urinar aqui nesta latrina.” Pegava e urinava.

[...] Então, em muitas oportunidades eu era arrastado de lá, literalmente, arrastado. Pegavam-me pela perna, um torturador pegava uma perna, outro pegava na outra perna, arrastavam a cabeça na lage, o corpo na lage. [...] chegando lá a pessoa era amarrada no pau de arara. Embaixo, às vezes eles colocavam, em baixo do corpo da pessoa amarrada, colocavam jornais para forrar o chão. Às vezes não, mas quase sempre eles colocavam aquele jornal embaixo. Porque a pessoa vomitava muito e defecava muito.389

A tortura é uma violência física e/ou psicológica implementada contra uma pessoa para intimidá-la, com o objetivo de obter delas informações, confissões ou declarações. A violência é administrada para que o objetivo seja efetivado. A vítima é submetida a situações vexatórias, humilhantes, de absoluta submissão e impotência390.

O torturador pretende que a vítima conte o ele que deseja, mas depois se cale diante da sua aniquilação e quebra do amor próprio. A ele não interessa que ela conte os horrores a que foi submetida.

Outros profissionais no Brasil, de forma isolada ou vinculados às instituições, insurgiram-se contra a tortura e protagonizaram ações na época em que o silenciamento sobre ela prevalecia dentro da sociedade brasileira. Entre estes, Hélio Pellegrino, médico, psicanalista, escreveu, em 1978, que “a tortura busca, à custa do sofrimento corporal insuportável, introduzir uma cunha que leve à cisão entre o corpo e a mente. E, mais do que isto: ela procura, a todo preço, semear a discórdia e a guerra entre o corpo e a mente” (Arquidiocese de São Paulo, 1985, p. 281)391.

388 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade, 2014, v.1, p. 373. 389

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade, 2014, v.1, p. 373.

390 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade, 2014, v.1, p. 328. 391 ARANTES, 2013, p. 96.

O silêncio do Estado Brasileiro sobre a prática da tortura continua, de certa forma. A Comissão Nacional da Verdade requisitou informações das Forças Armadas Brasileiras sobre a participação do Brasil na Escola das Américas, mas os Comandos da Marinha e da Aeronáutica responderam de forma incompleta a requisição e a resposta do Comando do Exército foi a seguinte:

[...] as solicitações constantes do Ofício de referência estão inseridas em um contexto diretamente influenciado pelo lapso temporal, pela dispersão das notícias históricas, pela ausência de um banco de consultas com dados consolidados sobre as informações requeridas, e, por fim, pela legislação arquivística que regulamentava a política nacional de arquivos públicos no período considerado392.

A CNV, porém, a partir de informações prestadas pelo Departamento de Defesa dos EUA, identificou que mais de 300 militares brasileiros participaram, como alunos ou instrutores, de cursos sobre tortura na Escola das Américas, entre os anos de 1954 a 1996393.

Apesar de oficialmente negada, a tortura e outras graves violações de direitos humanos foram utilizadas rotineira e sistematicamente como política de Estado no Brasil, durante a ditadura militar 394. Havia utilização desses mecanismos em delegacias e estabelecimentos militares e clandestinos, com o escopo de assegurar supremacia da segurança nacional e combater ao terrorismo395.

Alguns agentes do Estado, na época da ditadura, afirmaram em depoimentos perante à CNV a existência da tortura como prática recorrente. Cláudio Guerra declarou que o coronel

Freddie Perdigão “tinha dois grupos de trabalhos distintos e secretos: um de tortura e

interrogatório e outro de execução” 396. O ex-sargento Marival Chaves Dias do Canto, que atuou no DOI-CODI de São Paulo e no CIE, afirmou o seguinte sobre a morte de Alexandre Vannucchi:

Suposto suicídio. O que o Peninha, o Vannucchi, a história que contam no DOI é que ele foi levado para a enfermaria, para fazer um curativo, se apossou de uma gilete e cortou o pulso, essa é a versão, mas isso não é

verdadeiro. Essas pessoas morreram todas no pau de arara, todas sob

interrogatório397.

392

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade, 2014, v. 1, p. 331.

393 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade, 2014, v. 1, p. 331. 394 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade, 2014, v. 1, p. 337. 395 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade, 2014, v. 1, p. 343. 396

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade, 2014, v. 1, p. 344. Depoimento datado de 23 de julho de 2014.

397 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade, 2014, v. 1, p. 345 (grifos nossos). Em depoimento datado de 21 de

A Anistia Internacional divulgou relatório no ano de 1972, que constava 1081 pessoas vítimas de tortura no Brasil no período entre 13 de dezembro de 1968 e 15 de julho de 1972398. O relatório Brasil: nunca mais apresentou o número de 1.843 pessoas que conseguiram relatar, em processos judiciais, as violências de que foram vítimas. Porém, estima-se que o número real de vítimas tenha sido maior, porque nem todos conseguem relatar o trauma vivenciado, seja por medo de represálias, seja por bloqueio psicológico399.

Um dos aspectos mais perversos da tortura é o fato de tornar bastante difícil às suas vítimas falar sobre ela, pela dor envolvida nessa memória, bem como pelo medo das ameaças feitas pelos torturadores, relativas à própria pessoa torturada e a pessoas próximas, um medo que pode perdurar. Mas narrar uma experiência de tortura é também difícil por serem os seus procedimentos extremamente humilhantes e porque a violência infligida, muitas vezes, é insuportável – a ponto de levar a vítima a falar aquilo que jamais diria em condições diferentes400.

Muitas vezes, um trauma corta, fragmenta e silencia, tornando-se obstáculo para se narrar o passado. Nesse caso, o silenciamento da narrativa se dá de forma interna, em virtude de uma causa externa violenta, por exemplo, a tortura. Surge uma distância intransponível entre os mecanismos da linguagem disponíveis para se narrar o fato e o sentimento que o corpo experimenta401.

Quando algo relacionado a uma experiência, seja um fato, uma percepção, um objeto ou algo visto ou vivido, não pode ser resgatado em um relato, é um sinal de que um limite foi atingido. Nesse momento, surge a necessidade de transmitir esse trauma, pois relato e memória separam-se e o objeto aflora fora do fluxo temporal, tornando-se único402. Nas palavras de Primo Levi403, “a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem”.

Na língua, confundem-se servidão e poder, pois, ao mesmo tempo que é uma classificação, o que por si só é motivo de opressão, permite o exercício da liberdade de expressão, como destacado por Barthes. Assim, o poder que advém da língua é inegável, mas a violência existente nessa servidão também não pode ser descartada e é um dos motivos da

398“O número, contudo, era sabidamente inferior ao real porque não foi possível aos investigadores visitar as

prisões, de forma que as suas fontes tiveram que se restringir a depoimentos assinados e enviados à organização, bem como aos prisioneiros que deixaram o país. Mesmo entre esses últimos, alguns deixaram de efetuar

denúncias com medo de represálias contra as suas famílias no rasil” ( RASIL. Comissão Nacional da Verdade,

2014, v.1, p. 348).

399 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade, 2014, v. 1, p. 348. 400 BRASIL. Comissão Nacional da Verdade, 2014, v. 1, p. 349-350. 401

MACÊDO, 2014, p. 45-47.

402 Prefácio de Romildo do Rêgo Barros do livro: MACÊDO, 2014, p. 14. 403 MACÊDO, 1998, p. 24.

dificuldade existente no que tange à pobreza lexical, quando se pretende representar a realidade por meio do encadeamento simbólico404.

Para Paul Ricoeur, essas feridas do passado “levam a memória corporal a se

concentrar em incidentes precisos que recorrem principalmente à memória secundária, à relembrança, e convidam a relatá-los” 405.

404 Apresentação de Antônio Teixeira do livro: MACÊDO, 2014, p. 27. 405 RICOEUR, 2007, p. 57.

6 POR QUÊ CONTAR E OUVIR AS NARRATIVAS SILENCIADAS?