• Nenhum resultado encontrado

Enfim aqui! Nesse momento, com a sensação de não ter ainda chegado ao fim. Certamente não chegamos. Como chegar ao fim quando ainda se há vida? Mas é tempo de concluir. Concluir um ciclo.

Não a toa escolhemos falar de ciclos nessa tese. Ciclos que sempre estão presentes, nesse caso, o ciclo da repetição da violência contra a mulher. Mas há de se lembrar que ciclo é o movimento natural da vida, onde nascemos, vivemos (ou não) e morremos. Ciclos de uma vida, ciclos de um período da história, que ocorrem e hão de ocorrer, talvez infinitamente.

Talvez precisemos repetir alguns ciclos. Talvez repetimos alguns ciclos por escolha, outras vezes somos levados à repetição, mesmo que inconscientemente.

As vezes repetimos situações desagradáveis, não por escolha, mas porque ainda não conseguimos nos desvencilhar de um funcionamento psíquico que, muitas vezes, nem sabemos qual é. Muitas vezes repetimos ciclos dos quais nem sequer nos damos conta.

Talvez possamos interromper ciclos. Talvez não. É preciso poder escolher, mesmo advertidos de que toda escolha é, acima de tudo, uma escolha inconsciente. É certo de que não há garantias. Escolher pela interrupção de um ciclo, não garante a sua extinção. Muitas vezes não conseguimos transformar em realidade as situações que acreditamos lutar. Mas querer escolher, implicar-se pelo processo da escolha já nos abre novas possibilidades.

Certos da repetição em nossa vida, sejam ela positivas ou negativas, a escolha por implicar-se no processo da vida, nos permite a construção de um futuro diferente do atual.

Iniciamos a pesquisa que culminou nessa tese, muitos anos atrás, sem saber ao certo por onde caminharíamos.

Já na especialização em psicologia hospitalar, me deparei com as vertentes clínica e institucional, ao atuar no departamento de ginecologia de um hospital público universitário na cidade de SP.

Foi a partir da clínica, atendendo mulheres no departamento da ginecologia, que nasce a pesquisa que foi se transformando ao longo dos anos, entre diferentes ciclos, até chegar a essa que agora concluo.

Eu trabalhava junto à uma médica ginecologista que acreditava na interlocução com a psicologia, apostando que as pacientes que passavam pela psicologia apresentavam melhoria em seus quadros clínicos orgânicos. Por esse motivo, havia então um protocolo de encaminhamento para a psicologia, de pacientes com sintomas do tipo: depressão, síndrome do pânico, ausência de libido e alguns sofrimentos decorrentes de quadros orgânicos como irregularidade no ciclo menstrual, ovário policístico, até sintomas mais graves como miomas e câncer de mama, útero e ovários.

Foi nesse momento que, por acaso, a clínica me presenteou com uma primeira questão de pesquisa. Surpreendentemente me deparei com a questão do segredo da violência sexual quando muitas dessas mulheres com sintomas ginecológicos, contavam pela primeira vez, episódios de abuso na infância e a repetição da violência por uma vida toda.

Elas diziam: Dra., eu nunca contei isso pra ninguém, mas agora preciso lhe falar.

Começava ali, a partir da minha prática clínica como psicóloga clínica e aprendiz da psicanálise, o meu percurso como pesquisadora.

Num primeiro momento, percebemos a relevância da escuta clínica na instituição de saúde para promover a subjetividade das mulheres e dar voz ao seu sofrimento. No momento seguinte, a importância da pesquisa científica articulada com a prática clínica. E por fim, a relevância da transmissão da experiência da clínica.

Esse trabalho, gerou uma questão inicial em relação ao segredo da violência sexual. Por que repetem caladas, as vezes por toda uma vida, algo que traz tanto sofrimento?

A partir disso, desenvolvi uma primeira pesquisa, o texto de conclusão da especialização, que culminou na segunda pesquisa – a dissertação do mestrado que recebeu o título de “Afinal, segredo de quê? (...)”, quando a clínica me mostrou que o segredo tinha funções muito diversas para cada uma das mulheres.

Nesse momento, pudemos percebem que o segredo, não era propriamente o segredo da violência sexual, mas um ponto nodal da questão “segredo” que ao ser revelado estaria desvelando consigo uma fantasia infantil, a partir do modo como uma criança havia vivido uma situação traumática, e hoje, essa menina/mulher, adulta, estaria lidando com sua demanda de amor, seu modo em estabelecer laços, muitas vezes marcado pela violência (passada e presente).

Nesse momento encerrávamos um ciclo, com a sensação de que ainda haveria muita pesquisa a ser realizada e com o desejo da continuidade.

Iniciando um novo ciclo, continuando a pesquisa e o passo seguinte se transformou nessa pesquisa de doutorado.

O trabalho tomou um rumo um pouco diferente, deixando de ser um recorte da violência sexual e passando à temática da violência doméstica, violência contra a mulher de modo mais ampliado e, especialmente à articulação da clínica da violência com as políticas públicas. Sobretudo, ainda pensando o enigma da repetição da violência.

A pesquisa começa como no início de uma análise, onde existe uma questão, mas não se sabe onde se vai chegar.

Como poderíamos transmitir as contribuições da psicanálise para o avanço das politicas públicas no enfrentamento ao ciclo da violência contra a mulher? Como comunicar a relevância em considerarmos a repetição como dado clínico? Como propor a clínica como mais uma estratégia no avanço dos serviços de atenção às mulheres em situação de violência?

Iniciamos então uma longa pesquisa a respeito da história do desenvolvimento das políticas pública para as mulheres no Brasil, desde o seu início. Trouxemos dados e reflexões a respeito da criação da Lei Maria da Penha e da construção da rede de enfrentamento e atendimento, bem como do estabelecimento dos centros de referência de atendimento à mulher, a Lei do feminicidio e suas repercussões.

Desenvolvemos estudo dos tipos de violência marcadas pelas políticas públicas e pela Lei, caracterizando-os desde seu estágio mais inicial, até o feminicídio em sua condição mais grave das categorias da violência contra a mulher.

Para sustentarmos nossa tese, escolhemos pelo caminho da repetição como dado clínico e a implicação de cada sujeito em sua história, como possiblidade de tratamento do sofrimento e manejo clínico na direção do rompimento do ciclo da violência. Para isso apoiamos nossa discussão na teoria psicanalítica, com o objetivo de trazer contribuições da psicanálise para o avanço dos equipamentos da rede de enfrentamento e atendimento às mulheres em situação de violência.

Discorremos a respeito dos limites a alcances do atendimento psicológico na rede, refletindo a respeito das conquistas, mas também dos problemas e lacunas. Em seguida apresentamos os conceitos de repetição, ética e implicação em psicanálise, delineando a diferenciação entre culpa e responsabilização, articulando com a escuta clínica à mulheres em situação de violência e a possibilidade de retificação subjetiva.

Por fim, trouxemos uma reflexão dos serviços públicos de atenção à mulher em situação de violência propondo uma estratégia de humanização pautada nos princípios do SUS e a transdisciplinaridade como um caminho para a humanização no enfrentamento à violência contra a mulher a partir da interlocução com áreas de saber distintas. Apresentamos a discussão a respeito da responsabilização dos profissionais de psicologia na rede, a prevenção do feminicídio, a possibilidade da assistência ao agressor e a parceria entre políticas públicas e ensino, promovendo o incentivo à formação continuada e a novas pesquisas.

Ademais, apresentamos a aposta do psicanalista como clínico nos serviços da rede, especialmente nos centros de referéncia, para a promoção da subjetividade e tratamento do sofrimento singular, confiando na possiblidade da retificação subjetiva e elaboração da repetição da violência, favorecendo a mudança, na tentativa do rompimento do ciclo.

Alguém pode chegar à clínica em processo de análise, pronto para falar para um analista, talvez por ter passado por essa experiência de “retificação subjetiva” em alguma relação ou acontecimento em sua vida, quando pôde, a partir desse momento, questionar-se pelo que constrói em sua vida. Entretanto, a maioria das pessoas que chegam à clínica, chegam descomprometidas de seus sintomas, sem implicação alguma na sua história, na história relatada. Cabe nesse caso, a manobra analítica para que essa pessoa possa retificar-se subjetivamente, implicando-se na vida.

No caso da nossa tese, mulheres que chegam no serviço de atenção à violência, chegam, em sua grande maioria, sem implicação nenhuma no que vive, ou se queixa – a violência doméstica. Essas mulheres chegam buscando respostas prontas para o seu problema.

Como políticas públicas, podemos oferecer respostas prontas, universais, cada equipamento em seu saber, de modo multidisciplinar, sugerindo o que acreditamos ser o melhor a cada uma dessas mulheres. Mas podemos oferecer também um serviço transdisciplinar, considerando o saber da ciência e dos diversos serviços interdisciplinares, mas considerando sobremaneira o saber de cada uma dessas mulheres e os envolvidos na situação. Sobretudo, oferecer um acolhimento também atento à escuta do sofrimento, a particularidade de cada uma das histórias que poderão ser contadas e escutadas como testemunho, atendendo à Política Nacional de Humanização, Clinica Ampliada e às Política Públicas para as Mulheres.

Um analista no equipamento de atenção a violência certamente estará atento à subjetividade e a singularidade de cada uma das mulheres escutadas. Um analista, certamente apostará na potencialidade de cada mulher em implicar-se na sua própria história, encontrar um caminho singular de saída do seu problema, construindo um novo futuro, seja qual for a sua escolha e o seu caminho.

Está aí a aposta! Um possível ato analítico que promova a subjetividade. A aposta no sujeito, no sujeito do inconsciente, no sujeito dividido entre o que sabe e o que não sabe de si. Esta aí a aposta! Um ato analítico que acredita promover uma saída possível. A possibilidade de escolha por um novo caminho – ou não – mas que seja uma escolha, escolha responsável.

Está aí uma contribuição da psicanálise. A relação entre clínica, instituição e ensino. Está aí uma contribuição da psicanálise. Propor a inserção de mais um discurso nesse debate onde todos os saberes devem ser bem vindos.

A partir desse momento, algumas questões se respondem. Sobretudo, muitas questões ficam em aberto, possibilitando novas possibilidades de pesquisas e estratégias a serem implantadas.

Concluímos, acreditando no privilégio em terminar mais um ciclo dessa maneira, uma tese que propõe novos caminhos e novas discussões, mas acima de tudo, a transmissão de uma experiência que abre espaço para o início de mais um