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A VISÃO DE YOUSCHKEVITCH (1976) SOBRE A HISTÓRIA DO CONCEITO

2 CONCEITO E HISTÓRIA DE FUNÇÃO

2.1 A VISÃO DE YOUSCHKEVITCH (1976) SOBRE A HISTÓRIA DO CONCEITO

De acordo com Youschkevitch (1976, p. 37) “Up to now the history of functionality has remained insufficiently studied5”. Em especial, percebe-se divergências entre as opiniões de autores em relação à época em que realmente se originou o conceito de Função, Youschkevitch (1976) apresenta em seu trabalho The Concept of Function up to the Middle of the 19 th Century6 algumas informações que comprovam essa ideia a partir dos pensamentos de especialistas antigos que corroboram com sua posição. Para tanto, Youschkevitch (1976) desenvolve um trabalho de opinião em conjunto com reflexões de autores como Smith7 (1958), Boyer8 (1959), Hartner e Schramm9 (1963), a fim de delinear e esclarecer a história da funcionalidade com o objetivo de apresentá-la de modo mais eficiente. Algumas dessas reflexões aparecem, resumidamente, na figura 3.

Figura 3 – Algumas das reflexões apresentadas por Youschkevitch (1976)

Fonte: Elaborado pela autora

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Até agora a história da funcionalidade tem sido estudada de maneira insuficiente (tradução nossa).

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O Conceito de Função até a Metade do Século XIX (tradução nossa).

7 “[...] a real ideia de funcionalidade, mostrada pelo uso de coordenadas foi primeiro claramente e publicamente expressa por Descartes” (SMITH, 1958 apud YOUSCHKEVITCH, 1976, p. 37) (tradução nossa).

8 “O conceito de Função e a ideia de símbolos como representando variáveis não pareceu entrar em trabalho de nenhum matemático desse período” (BOYER, 1959 apud YOUSCHKEVITHC, 1976, p. 38) (tradução nossa). “Isso foi equivalente ao moderno uso de equações como expressões de relacionamentos funcionais, embora muito mais restrito” (BOYER, 1959 apud YOUSCHKEVITHC, 1976, p. 38) (tradução nossa).

9 “A questão da origem e do desenvolvimento do conceito de Função é usualmente tratada com uma unilateralidade ao considerar exclusivamente a análise cartesiana” (HARTNER; SCHRAMM, 1963 apud YOUSCHKEVITHC, 1976, p. 38) (tradução nossa).

As observações destacadas por Youschkevitch (1976) nos levam a considerar que a história da funcionalidade deve ser marcada pelo trabalho de Descartes e seu uso de coordenadas, embora os símbolos como variáveis não apareçam em trabalhos de seus contemporâneos como Fermat. Assim, a origem do conceito de Função não pode ser analisada só do ponto de vista das contribuições de Descartes e seus contemporâneos, ou seja, apenas da relação cartesiana. De fato, Youschkevitch (1976), a partir de Boyer (1959), considera que existem outros contribuintes relevantes, como, por exemplo, a Matemática Grega.

Desse ponto de vista, a origem do conceito de Função vem antes de

Descartes, com cálculos da Astronomia e Ciência Árabe, e sua consolidação vai além dele, estendendo-se ao século XIX, com a definição clássica.

Contudo, mesmo esta consolidação pode ser questionada e antecipada para meados do século XVIII.

Nesse sentido, Youschkevitch (1976), mesmo sem defender uma ou discordar de outra ideia, informa que, em relação ao século XIX, a definição

clássica de Função que consta em quase todos os textos sobre Análise

Matemática é atribuída a Dirichlet (1805-1859) ou a Lobachevski (1792- 1856), embora esta seja uma afirmação não exata já que o conceito geral de Função, como a relação arbitrária entre pares de elementos, cada um tomado em seu próprio conjunto, foi formulado antes, em meados do século XVIII.

Considerando a necessidade de revisão dos marcos comumente postos na história do conceito de Função e estando clara a importância de conhecer o histórico desse conceito, Youschkevitch (1976) aborda observações quanto ao seu desenvolvimento até cerca da metade do século XIX, separando esse tempo em três períodos que ele julga importantes:

A Antiguidade: estudo de casos particulares de dependências entre

duas quantidades, mas onde ainda não se tinham as noções gerais de

quantidades variáveis e funções. Como por exemplo, o caso em que na

contagem para o controle de seu rebanho, o homem fazia associar a cada animal uma dobra no dedo ou uma ranhura em barro/pedra ou marcando nós em uma corda. Nesses casos, segundo Eves (2004, p. 26), o homem utiliza-se da “maneira mais antiga de contar e baseia-se em algum método de registro simples, empregando o princípio de correspondência biunívoca”. Tal

associação nos remete à noção de Função quando faz associar elementos de um conjunto (as marcas em pedra ou os nós em corda, por exemplo) a um único elemento de outro (os animais do rebanho), ou seja, estabelece uma relação de dependência biunívoca entre quantidades sem, contudo, assumir generalizações.

Figura 4 – Quipus usados por peruanos indígenas

Fonte: Eves (2004, p. 27)10

Os quipus são conjuntos de cordões usados em processos de contagem através de nós em cordas. Têm tamanhos e cores variados. Segundo Eves (2004, p. 27) “nós maiores são múltiplos dos menores, e a cor da corda pode distinguir homens de mulheres (coleção Musée de L’Homme, Paris)”.

A Idade Média: na ciência Europeia do século XIV, tais noções gerais se expressaram pela primeira vez de forma definida, tanto nas formas

geométricas quanto mecânicas. Como na Antiguidade, cada caso concreto de dependência entre quantidades era definido por meio de uma expressão verbal, ou com um gráfico, em vez de uma fórmula, contudo, a principal diferença nesse período está na presença de noções gerais, além de, conforme Youschkevitch (1976), ter havido um aumento quanto ao número

de funções utilizadas bem como melhorias quanto aos métodos para seu

estudo. Essa foi uma época em que o estudo dos fenômenos naturais estava em destaque. Como exemplos, Boyer e Merzbach (2012, p. 187) citam a variação da “velocidade de um objeto em movimento e a variação da

temperatura, de ponto para ponto, em um objeto com temperatura uniforme”.

Considerando que as discussões acerca desses temas eram longas, mas que não existiam instrumentos adequados para análise, Boyer e Merzbach (2012)

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informam que Nicole de Oresme (1323-1382) buscou solução para percepção e análise mais detalhadas dessas variações por meio de uma figura. A partir de suas ideias, surgem as primeiras representações gráficas de funções.

Figura 5 - Representação gráfica de Oresme

Fonte: Rezende; Thess (2009).11

A figura 5 nos mostra a representação gráfica desenvolvida por Oresme. Denominada latitude das formas, trata-se de uma maneira nova de representar dependência entre variáveis onde, nesse caso específico, as grandezas tempo e velocidade e sua dependência são apresentadas por meio de retas horizontal e vertical, respectivamente.

As informações apresentadas, até então, nos levam a verificar elementos que diferenciam a noção de funcionalidade que se tinha na Antiguidade em relação daquela identificada na Idade Média. A análise apenas aritmética e a falta de preocupação com as generalizações foram marcos nos tempos antigos enquanto que, na Idade Média, uma nova forma de se representar dependências entre grandezas, surgiu. As representações geométricas de Função bem como algumas ideias de casos gerais, já eram percebidas nesse período (Idade Média).

O Período Moderno: época que se iniciou ao final do século XVI, onde

começaram a prevalecer as expressões analíticas das funções, geralmente indicadas por somas de séries de potências infinitas.

Bem verdade é que a interpretação por meio analítico da

funcionalidade tenha revolucionado o mundo matemático, especialmente pela

sua eficácia, tendo, assim, assumido um papel importantíssimo quanto ao conceito de Função em todas as ciências exatas. Contudo, exclusivamente esse entendimento, com o passar do tempo, foi tido como inadequado, de tal

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Disponível em: http://pt.slideshare.net/prof.andrea/procura-se-pela-funo-algum-viu. Acesso em: 10 dez. 2016.

modo que houve a necessidade de uma nova definição geral que, posteriormente se universalizou.

Para efeitos didáticos, vamos abordar o Período Moderno considerando o final do século XVI e os séculos XVII, XVIII e XIX, cujas características e exemplos, seguem:

Final do século XVI: fase na qual se usava o uso de letras para representar quantidades variáveis e que apareceu como uma novidade matemática. François Viète (1540-1603) estabeleceu como prática o uso de vogais para representarem quantidades desconhecidas e consoantes para a representação dos parâmetros, o que Youschkevitch (1976) considerou como a

Nova Álgebra. Segundo Eves (2004, p. 309):

Antes de Viète era comum se usarem letras ou símbolos diferentes para as várias potências de uma quantidade. Viète usava a mesma letra, adequadamente qualificada; assim, o que hoje se indica por ele expressava por A, Aquadratum, A cubum; mais tarde alguns escritores abreviaram essa noção para A, Aq, Ac.

A notação de Viète possibilitou, pela primeira vez, a representação de uma equação algébrica e de expressões envolvendo números desconhecidos, por meio de símbolos algébricos.

A convenção moderna de se usar as primeiras letras do alfabeto para representar constantes e as últimas letras para representar as incógnitas foi introduzida por René Descartes (1596-1650), filósofo e matemático francês que propôs a utilização de um sistema de eixos para localizar pontos e representar graficamente as equações.

Embora, via senso comum, a Descartes seja atribuída a responsabilidade pela construção do sistema de coordenadas apresentado na figura 6 (Plano Cartesiano como é conhecido), que é considerado importante elemento da Geometria Analítica (GA), destacamos que, como informa Eves (2004), Pierre de Fermat (1601-1665) muito contribuiu para o desenvolvimento dessa área. Em artigos publicados postumamente, foram apresentadas equação geral da reta e da circunferência, além de informações sobre elipses, hipérboles e parábolas, atribuídos a Fermat. Além disso, ele também desenvolveu trabalhos sobre tangentes e quadraturas, definindo, por meio delas, muitas curvas analiticamente. De acordo com Eves (2004, p. 389), “onde Descartes partia de um lugar geométrico e então encontrava sua equação,

Fermat partia da equação e então estudava o lugar correspondente”. Destacamos Oresme como um dos precursores do uso de coordenadas para localizar pontos, uma antecipação dessa GA. Em seu La Géométrie(1637), Descartes, divulgou suas contribuições à GA revelando avanços reais em relação à geometria algébrica dos Gregos, que também pode ser vista como ideias iniciais da GA.

Figura 6 - Imagem representando a Geometria Analítica de Descartes

Fonte: Site Momentos Estelares de la Ciencia12

Eves (2004, p. 382) considera a GA um “poderoso método de enfrentar problemas geométricos” cuja essência “reside na transferência de uma investigação geométrica para uma investigação algébrica correspondente” (EVES, 2004, p. 383).

Descartes, trabalhando sobre métodos geométricos mais gerais que os de Viète, exibiu ferramentas algébricas inovadoras. Seu objetivo era o mesmo de Viète, resolver problemas de construção. Porém seu método de representar algebricamente problemas geométricos que envolviam equações de qualquer grau ou equações indeterminadas foi a revolução da Geometria do século XVII.

 Século XVII: para esse período, dois personagens merecem destaque: Newton (1642-1727) e Leibniz (1646-1716), ambos com seus trabalhos envolvendo variações, contribuindo para o avanço quanto à Análise Matemática e, consequentemente, quanto ao estudo das funções. Newton em seu trabalho publicado em 1736, sob o título Method of fluxions, usa o termo

fluente e fluxo do fluente, o que hoje se chama de variável dependente e

independente. Segundo Eves (2004, p. 439):

12

Disponível em:

http://momentosestelaresdelaciencia.blogspot.com.br/2013/01/descartes.html. Acesso em: 10 dez. 2016.

Para Newton, nesse trabalho, uma curva era gerada pelo movimento contínuo de um ponto. Feita essa suposição, a abscissa e a ordenada de um ponto gerador passam a ser, em geral, quantidades variáveis. A uma quantidade variável ele dava o nome de fluente (uma quantidade que flui) e a sua taxa de variação dava o nome de fluxo do fluente. Se um fluente como a ordenada do ponto gerador, era indicada por, então o fluxo desse fluente era denotado por ̇.

Apesar de Newton não ter usado o termo Função em seus trabalhos ele já considerava a existência de uma relação entre variável dependente (fluente) e independente (fluxo do fluente). Os conceitos mecânicos e cinemáticos usados por ele para expressar as variáveis, na linguagem atual, seria o mesmo que considerá-las em função do tempo.

Foi Leibniz (1646-1716) quem primeiro usou o termo Função, em 1673, para designar, em termos muito gerais, um segmento de reta (corda, abscissa, ordenada, etc) cujo comprimento depende da posição que ocupa certo ponto sobre uma curva dada.

 Século XVIII: durante esse século um nome que muito aparece quando se estuda sobre o desenvolvimento da Matemática, em especial, sobre o avanço quanto ao conceito de Função é Leonhard Euler (1707 – 1783), cuja característica mais marcante de seus estudos inclui a criação e o uso de uma simbologia que é aceita e utilizada até os dias atuais, é o caso da notação para logaritmo de x e, aquela que mais se destaca, a representação f(x) para

função de x que, segundo Boyer e Merzbach (2012) são designações

estabelecidas por Euler. Sobre isso, Boyer e Merzbach (2012, p. 304) dizem que “em quase tudo, Euler, o construtor de notação mais bem-sucedido em todos os tempos, escrevia na linguagem e notação que usamos hoje”.

Século XIX: a definição geral de Função, por volta da metade do

século XIX, possibilitou outros caminhos no desenvolvimento da teoria das

funções. Contudo, de maneira bem geral, a definição desenvolvida nessa época é muito comum àquela que é utilizada ainda hoje:

Uma Função da variável , , é uma relação entre pares de elementos de dois conjuntos numéricos e , em que cada elemento do primeiro conjunto se interliga com um elemento , e somente um do segundo conjunto , segundo uma regra definida (YOUSCHKEVITHC, 1976, p. 39).

Vale lembrar que a regra sugerida na definição anterior pode se apresentar de maneira verbal, por meio de uma tabela de valores, com uma

expressão analítica, por um gráfico, entre outras formas.

Aqui se unem as diferentes formas de representação que nos períodos anteriores eram vistas de maneira isolada.

A partir dos argumentos de Youschkevitch (1976), percebe-se que o conceito de funcionalidade sofreu alterações com o decorrer do tempo. Conhecer tais alterações implica perceber o quão dinâmico é o conhecimento matemático e ainda que se trata de uma área inacabada. Dessa forma, a evolução do conceito de dependência funcional é utilizada nesse trabalho como elemento que nos proporciona um panorama global desse dinamismo da Matemática, característica essa que torna clara a importância da aplicação que atividades que considerem a contextualização como recurso didático a ser aplicado em sala de aula, visando favorecer a aprendizagem do aluno. Nessa perspectiva a utilização da HM aparece como metodologia capaz de contribuir para o ensino da Matemática, como recomendam os documentos oficiais (BRASIL 2000, BRASIL 2015) e os autores referentes ao tema neste trabalho.

Levando em conta as abordagens de Youschkevitch (1976), delineamos, de modo mais detalhado, na seção seguinte, a história do conceito de Função, considerando os três períodos históricos sugeridos por ele: Antiguidade, Idade Média e Idade Moderna.

2.2 A HISTÓRIA DO CONCEITO DE FUNÇÃO A PARTIR DOS PERÍODOS: