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1. PRÁTICAS E RELAÇÕES HISTÓRICAS

1.4. A VOZ NO LIMIAR ENTRE O SAGRADO E O PROFANO

A palavra proferida pela voz cria o que ela diz. No entanto, toda palavra não é só Palavra (ZUMTHOR, 1993, p. 75).

Ao delinear o que se denominaria literatura medieval em A letra e a voz, Zumthor (1993) prepara o capítulo dedicado às formas de palavras e ao que chama de “palavra-força”: palavra inconsistente e versátil. Tinha, entre os seus portadores, os velhos, os pregadores, os chefes, os santos e até os poetas, e ocupavam lugar privilegiado na corte, nas praças públicas ou em templos cristãos. Zumthor (1993), então, propõe uma separação em dois sistemas no que se refere à própria força da palavra no âmbito da igreja; seriam eles: a igreja-edifício, na qual acontece a liturgia e a pregação; e a igreja-instituição, depositária de uma função totalizadora com as suas hierarquias e os aparelhos de estado (ZUMTHOR, 1993). Ambas as igrejas seriam guardiãs e transmissoras dos princípios da fé e da tradição cristãs.

menos metafísica do corpo.” ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007:79.

No caso da tradição, esta teria sido uma das fontes do dogma cristão e tal noção abrangia, por meio de seus escritos patrísticos, um vasto circuito de discussões e declarações orais, institucionalizadas em práticas pastorais ou conciliares (ZUMTHOR, 1993). Outra fonte seria a dupla procissão da mensagem divina: verbum e scriptura. Por meio da voz, exercia-se formas sacramentais e exorcizantes; ela não era apenas transmissora de doutrina e fundadora de uma fé – se se pensar que a doutrina cristã é originária a partir de alguém que não escreveu os seus ensinamentos, tal qual Sócrates também não o fez.

Por que, pergunta Tomás [de Aquino] (IIIa, questio 32, art.4), Jesus não escreveu? Porque a palavra permanece mais perto do coração e não exige transposição; é saber direto (ZUMTHOR, 1993, p. 76).

A prática da confissão nos primeiros séculos do cristianismo, ainda ausente das técnicas de poder – penso, aqui, a partir de Foucault (1998), no poder como um elemento capaz de apontar o modo pelo qual se produz os saberes e como os sujeitos constituem-se nessa articulação –, toma proporção outra a partir do século XIII. É quando, com os questionamentos da autoridade eclesial e os seus dogmas, na heresia da Reforma Protestante, tem-se um aperfeiçoamento nos procedimentos de investigação da verdade: a confissão e a inquisição, que reforçam o controle das camadas populares e das heresias (CHEVALIER, 2012). Desse modo, a igreja mantinha a voz de seus fiéis projetada no silêncio. No entanto, a voz sempre intervinha na relação dramatizada, na qual o homo religiosus confrontava o divino como poder e como vontade. Mas a palavra não se limitou aos escritos da tradição cristã, tem-se entre os séculos XII e XIII, um período em que se produziu largo volume laico, o que foi proveitoso tanto para o discurso político quanto para a poesia.

Com a expansão dramática da liturgia entre os séculos X e XII, exigiu-se, cada vez mais, o recurso de especialistas da poesia e do canto em língua vulgar, uma língua sui generis oral.

A ampliação da arte predicatória a reaproxima num ponto preciso, da prática dos contadores profissionais: o sermão, a homilia43 se recheiam de

apólogos, os exempla – técnica não desprovida de antecedentes, mas que tende a generalizar-se entre 1170 e 1250, mesma época em que, nas universidades, se constituem as artes praedicandi, sistematizando em termos de retórica a eloquência pastoral (ZUMTHOR, 1993, p. 78).

43 “1. Comentário sobre o trecho do evangelho lido durante a missa; 2. Sermão.” (HOUAISS, 2001: 234)

Os ensinamentos e os rituais religiosos eram transmitidos da boca ao ouvido, como os exempla, textos que reuniam compilações extraídas das mais diversas fontes, entre elas, as tradições narrativas orais locais e mesmo exóticas, que objetivavam a pregação católica (ZUMTHOR, 1993). Contudo, havia intercâmbios entre esse tipo de pregação pastoral e as formas de divertimento narrativo, como foi o caso dos fabliaux, uma espécie de divertimento narrativo contado nas ruas com algum suporte do antigo folclore. Muitos desses fabliaux designavam os seus cantos como essample. Contudo, para o ouvinte nas ruas, os limites sonoros entre esses dois termos – exempla (termo sistematizado da retórica pastoral) e essample (que abrange desde a pregação de algum monge de passagem até as canções e os contos de rua pagãos) – misturavam-se facilmente. Dessa forma, como seria possível traçar um limite entre os textos, entre vozes tão próximas na forma em que procedem, mas distantes no propósito?

O poder vocal daqueles que detinham conhecimento perpetuava o discurso de verdade por meio de fragmentos do evangelho, lembranças de histórias santas, lendas, fábulas, até de relatos alegóricos de viagem e relatos hagiográficos – estes últimos amplamente adaptados em línguas vernáculas a partir do século XII, e que tinham, como destino, serem recitados publicamente como um sermão.

Daí, pode-se pensar, a profundidade em que se inscreviam, no psiquismo individual e coletivo, os valores próprios e o significado latente dessa Voz; mas também os equívocos, na superfície e na profundidade, entre ela e a voz portadora de poesia (ZUMTHOR, 1993, p. 79).

Zumthor (1993) afirma, ainda, que culto e poesia permaneciam funcionalmente unidos no nível das pulsões profundas, culminando na obra da voz. Assim, a voz poética relacionar-se-ia com a voz religiosa, de modo a produzir emoção em virtude de uma identidade. O domínio da religião, não muito distinto do mágico, fornecia o sistema acessível de explicação do mundo, agindo de uma construção simbólica sobre o real. Não muito diferente da religião nesse sentido, eram as canções e a poesia.

Por fim, pensar a canção sagrada ou profana ou, ainda, a própria música, em virtude de seu estatuto de enunciado, é pensar em uma criação humana cheia de significações que exercem efeitos sobre nós. Diante disso, justamente, não se poderia dizer que a música em si, independentemente do contexto em que é tocada, sempre será profana por não ser uma

estrutura abstrata pura? E é precisamente por essa razão que a música possui propriedades estéticas e artísticas, ainda que use a materialidade efêmera do som, como a voz, para tentar alcançar o abstrato do divino.

A beleza mundana traria consigo a marca do pecado, mesmo quando santificada por meio da arte a serviço da religião. Com isso, para serem admitidas como elementos da mais alta cultura, as canções, assim como outras manifestações artísticas, deveriam elevar-se à categoria das virtudes; assim, a doutrina ligava os “[...] indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes proib[ia], consequentemente, todos os outros” (FOUCAULT, 2003, p. 43). No entanto, esses indivíduos acabavam aproximando-se por meio da apropriação desses discursos de ritualização da palavra, especificados em um jogo entre o culto divino e o dizer secular, ambos carregados de um discurso de exaltação, seja na ordem celestial, seja na sociedade secular. Desse modo, o estatuto da voz inscrevia-se como que em um palimpsesto, ora sagrado, ora profano.