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ABC DE MARIA BONITA, LAMPIÃO E SEUS CANGACEIROS

Contrapondo-se a imagem de uma Maria Bonita “heroína”, figura mitológica, idealizada, que se configura no imaginário nordestino, o folheto ora analisado desconstrói a visão idealizada dessa personagem que agora segue na contra mão dos discursos anteriores. Para Bakhtin (2004, p. 135), “a mudança de significação é sempre, no final das contas, uma reavaliação: o deslocamento de uma palavra determinada de um contexto apreciativo para outro”. Sendo a língua dinâmica, os sujeitos podem mudar sua visão valorativa de atribuição de sentidos das coisas a partir do que Bakhtin denomina de reavaliação, onde as posições de valores podem deslocar-se para uma posição de superioridade ou inferioridade.

Desse modo, o folheto nos revela outra face da personagem Maria Bonita. Intitulado ABC de Maria Bonita, Lampião e seus Cangaceiros, o folheto de Rodolfo Coelho Cavalcante figura como outra forma de visão de uma história repleta de mistérios, encantos e devaneios.

Figura 5: Capa do folheto ABC de Maria Bonita, Lampião e seus cangaceiros

Fonte: Museu de obras raras Atila de Almeida

Debruçando-nos sobre o referido cordel, pudemos inferir que Maria Bonita é desenhada como a amante de Lampião, mulher brava e destemida, figurando com atributos masculinos. Temida pelos conhecidos “macacos”3, que na realidade faziam parte dos famosos volantes, Maria Bonita era boa de mira, lutava em pé de igualdade. Muitas vezes cruel, ela apresenta a desenvoltura de matar como qualquer homem do bando. Dessa forma, Maria

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Gomes de Oliveira foi uma mulher polêmica, de temperamento forte, sendo pioneira no seu metier. Isso lhe trouxe fama e uma série de histórias controversas. Segue o abecedário:

-A-

A amante de Lampião Foi mulher de um sapateiro, Esta vendo Vírgulino O terrível Cangaceiro Resolveu mudar de vida Para torna-se homicida No Nordeste brasileiro. -B-

Bandido nas unhas dela Tinha que andar direitinho E na hora da brigada Lutava de todo jeito Cada tiro era uma queda “Macacos” tu te arreda Senão atiro no peito!”

Incorporada no contexto do sertão nordestino, principalmente no período de seca, a figura da mulher, sobretudo de Maria Bonita já não é aquela que se limita a estar guardada em casa, mas a mulher que vai lutar pelo que compreende ser seu direito. A mulher passa a se adaptar ao trabalho pesado dos homens. As diferenças em meio a tais circunstâncias são deixadas então de lado.

A paisagem nordestina por si só é formada por um cenário marcado pela presença da seca, das dificuldades e do trabalho árduo. Nesse contexto o homem tem a representação da força e da adaptação ao trabalho pesado, no entanto, pelas forças das circunstâncias e pela busca da sobrevivência, as mulheres são obrigadas a se adaptarem ao trabalho árduo. Esse é o pano de fundo para a construção imaginária da personagem “Maria Bonita, mulher macho”, fruto da cultura nordestina.

No folheto, percebemos que a identidade do sujeito masculino configura-se na figura da “mulher macho”, imagem construída por relações histórico-culturais já estabelecidas. Ao analisarmos a terceira estrofe do referido cordel dentro de uma perspectiva ideológica, que tem a função dinâmica e motivadora e que estimula a práxis social. É notória a existência da ideologia, porque as relações vividas, nela representadas, envolve a participação individual em determinada práticas e rituais no interior do aparelho ideológico da sociedade.

- C-

Cosinhava, muitas vezes

Com o seu rifle na mão De manhazinha o café Fazia p’ra Lampião, Mas logo tinha notícia Que o VOLANTE da polícia Vinha em sua direção.

Maria, mesmo fazendo parte do Cangaço, não deixou de lado determinadas normas pertencentes ao universo feminino imposto da época: cuidar do lar, do marido, mesmo que de forma bem peculiar.

Reforçando a ideia de que Maria Bonita era cruel e agressiva, o poeta no 4º verso da 5ª estrofe do cordel em análise, investe sentido na palavra “matava”, que busca chocar o leitor, trazendo à tona uma concepção de que nossa personagem, que nos folhetos anteriores tinha o amor como princípio maior de sua vida, seria fria, calculista e temida assassina no Sertão nordestino. Observe:

-E-

Em combates mais ferrenhos Quando Lampião lutava Cinco, seis, sete soldados Ela sozinha matava... Em frente de sua mira Por detrás da macambira Só cadáver ficava.

-M-

Maria Bonita era Uma moça inteligente Tinha coragem de sobra Pra topar qualquer valente Se Vírgulino matava Ela com raiva sangrava Na hora do sangue quente -O-

O cabra que se afoitasse Fazer graça com Maria Era chamado de defunto Pois ali mesmo morria... Desta forma Lampião De todo seu coração A ela muito queria.

O gosto pela vida no Cangaço é um fator que nos chama a atenção no drama vivido pela personagem. Mesmo levando uma vida difícil, por estar sempre fugindo da justiça, ela demonstra satisfação pela adversidade, vivendo entre os “macacos” e o sanguinário Virgulino:

-G-

- “Gosto muito desta vida Do cangaço do Sertão Enquanto você for vivo Não tiro o rifle da mão...” Dizia ela contente

Na vista de sua gente Osculando Lampião -H-

-“Homem honrado tem lar...” Virgulino assim dizia

Que nada! dizia ela – Isso é pura fantasia, Eu já fui mulher casada, Vivia decente , honrada, De fome quase morria! -I-

Inda que me de um trono Não abandono o Cangaço... Pois no dia que não brigo Eu sinto maior cansaço. Sou mulher, é verdade, Porém a minha vontade É sangrar gente no aço!

Maria Bonita é descrita em todo o cordel como uma mulher violenta, sanguinária, mas também de garra, que enfrentou ama sociedade patriarcal, tornando-se guerreira tanto nas lutas físicas quanto no delineamento de uma nova figura de mulher Sertaneja. Maria Bonita deixou marcas de uma espécie de feminino rústico no Cangaço, sendo até hoje identificação nordestina para outra forma de ser macho, quando se é mulher.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cordel é um gênero textual de grande importância para o povo nordestino, retrata de maneira vivenciada o sofrimento do povo, mas ao mesmo tempo é uma forma de ir além dos problemas da vida, uma espécie de fuga e realização para quem escreve ou ler.

No cenário do imaginário popular do povo nordestino, a mulher não é mais vista com características comuns ao que a sociedade patriarcal impunha. A mulher representada pela nossa personagem é mulher-macho, valente, sanguinária, destemida e fiel, santinha, mas sedutora.

Neste sentido, a análise da figura de Maria Bonita nos cordéis selecionados, permitiu demonstrar que Maria Bonita foi mulher que deixou marcas na cultura nordestina e brasileira. Sinônimo de inovação, símbolo de coragem, postos em uma sociedade machista, oposta aos princípios que a sociedade da sua época pregava, a sua historia de vida pode ter sido alimento ideológico para outras mulheres que buscaram se libertar dos preceitos impostos pela sociedade e que as tornavam frágeis, submissas, frete a figura masculina.

Em nosso estudo foi possível evidenciar a representação do feminino no contexto nordestino através da figura emblemática de Maria Bonita, ora lembrada como exemplo de mulher que lutou por seus ideais e pela sobrevivência ora como sinônimo de robustez feminina.

Ao retratar a história de vida e de morte de Maria Bonita, os poetas cordelistas recolhem registros e interpretam fatos da vida real e do imaginário ideológico do povo nordestino, fazendo refletir a imagem da percepção do movimento do cangaço no imaginário popular. Essa literatura transforma e apresenta Maria Bonita, ora como ser violento e sanguinário ora heroína, que amou incondicionalmente Lampião, introduzindo-se no universo tipicamente masculino, formado por gente considerada dura, rude, impositiva.

Nosso estudo também evidenciou que há diferentes perspectivas pelas quais os poetas cordelistas se colocam quanto ao fato ou acontecimento narrativizado. Na maioria dos cordéis analisados, os poetas colocam a figura de Maria Bonita de forma positiva, figurativizando-a como uma mulher forte e destemida (mulher macho), verdadeira heroína, um exemplo de força e coragem. Uma mulher que utiliza seu poder de sedução como laço que prende o coração do rei do cangaço, deixando assim marcas do feminino no imaginário nordestino, construindo assim uma identidade de mulher até hoje lembrada pela memória coletiva.

Mas um cordel se impõe frente ao demais, ABC de Maria Bonita, Lampião e seus Cangaceiros, de Rodolfo Coelho Cavalcante, na perspectiva de pintar a imagem de Maria

Bonita com as cores próprias de um ser cruel, sanguinário, manipulador, assassino. Na tensão dialética de base semântica estrutural, o amor que a fez seguir em companhia do rei do cangaço, tematizado na maioria dos folhetos analisados, não suficiente para mascarar sua verdadeira essência. Buscando desmitificar a figura emblemática da mulher-macho, o poeta fez uso de argumentações arquetípicas que atualizaram na sua narrativa atos e atitudes de uma mulher manipuladora, assassina, cruel, portanto, temida, não admirada.

Dessa forma, podemos concluir que indo contra os princípios que a sociedade da época ditava como atribuições femininas, Maria Bonita foi, dentre as várias figuras estampadas no cordel, tanto a heroína amada quanto a destemida cruel. Uma performance feminina que enlaçou identidades de sobrevivência aos sentimentos de liberdade de mulheres de todos os tempos.

A entrada de Maria Bonita no Cangaço permitiu que as mulheres nordestinas encontrassem na comunidade cangaceira sexo, festa e prazer, mas também a dureza de uma vida afiada pelas as dificuldades naturais do Sertão, o preconceito da sociedade patriarcalista local e a mira das armas inimigas.

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Folhetos

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