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ABDERRAHMANE AL-SADI E A “PRIMEIRA REESCRITA DA HISTÓRIA AFRICANA”

Moises Nunes Sayão (autor)1 Prof. Dr. José Rivair Macedo (orientador)2 Resumo: Tradicionalmente, quando falamos em escrita da história, especialmente no Brasil, estamos nos referindo a autores nacionais ou, ainda mais frequentemente, a autores europeus ligados às escolas inglesas, francesas e alemãs, predominantemente, ou da Antiguidade. É certo que os pensadores que dedicaram-se a esta tarefa são dignos de serem estudados e terem suas obras discutidas, pois servem como referenciais para que (re)pensemos a nossa própria prática enquanto historiadores. No entanto, não podemos negar que a grande maioria deles tem como origem a sociedade ocidental, calcada em preceitos judaico-cristãos e expressos em idiomas de matriz europeia. A presente investigação tem por objetivo trazer à discussão nacional uma contribuição externa a estes limites, de modo a enriquecer nossos referenciais não apenas tocantes à historiografia em si, mas também aqueles que dizem respeito a sociedades histórica e historiograficamente subalternizadas, levando em conta suas especificidades.

Para realizar a tarefa acima proposta, teremos como fonte a crônica Tarikh al-Sudan3 (TS), a qual será submetida à análise à luz de contribuições diversificadas, tentando contemplar, sempre que possível, autores de origem africana, sem ignorar intelectuais americanos, europeus e, eventualmente, asiáticos, que prestaram contribuições importantes para o desenvolvimento de conhecimentos tocantes ao nosso objeto de estudo. Pretendemos centrar nossa análise textual

1 Aluno do curso de Mestrado Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal

do Rio Grande do Sul (UFRGS), desenvolvendo a pesquisa intitulada Uma escrita da história na África Ocidental: o Tarikh al-Sudan de Abd al-Sadi (Tombuctu, séc. XVII), sob orientação do Prof. Dr. José Rivair Macedo, desde o semestre 2019/1. Licenciado e bacharel pela mesma universidade, integrante do grupo de pesquisa “Africanas: biografias, referências de pesquisa e constituição de um banco de dados informatizado”, sob coordenação do Prof. Dr. José Rivair Macedo. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Contato: moises.sayao@gmail.com.

2 Professor Titular do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e Pós-Doutor pela Universidade de Lisboa (UL). Atualmente dedica-se ao estudo das sociedades africanas anteriores à colonização europeia.

3 “História do Sudão”. É importante informar que, por não dominarmos a língua árabe – idioma do manuscrito

original –, trabalhamos a partir de uma edição moderna traduzida por John Hunwick a partir da transcrição de Octave Houdas, e reconhecemos as limitações impostas por esta condição. No entanto, sustentamos a validade da nossa pesquisa tendo em conta dois fatores principais. Primeiramente, trata-se de uma primeira investida nacional nesta área, com o referida fonte, logo, estamos introduzindo a discussão, e havemos de fazê-lo dentro das circunstâncias que nos são impostas. Em segundo lugar, consideramos o trabalho de Hunwick mais confiável que uma tradução que poderíamos realizar, uma vez que, embora a crônica tenha sido escrita em caracteres árabes, estes expressavam um pensamento híbrido, dada a confluência cultural do seu ambiente de produção, do qual Hunwick era um profundo conhecedor.

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de modo a compreender como a conjuntura da sua produção influenciou e foi influenciada por ele, bem como questões mais tocantes à prática historiográfica propriamente, a dizer, o trabalho do autor com as fontes, com a espacialidade e a temporalidade.

Do ponto de vista teórico, o nosso trabalho filia-se à corrente dos estudos decoloniais, no sentido proposto por Walter Mignolo (2017). Em decorrência desta pretensão, buscaremos revelar uma “África-Sujeito”, através de uma visão “de dentro pra fora” (LEITE, 2008, p. XVIII). Para tal, prestaremos atenção especial às advertências de pensadores africanos contemporâneos, como Valentin Yves Mudimbe e Archie Mafeje, referentes a uma postura crítica em relação aos conceitos e categorias do africanismo4.

O TS, escrito por Abderrahmane al-Sadi em meados do século XVII, provavelmente na cidade de Tombuctu, na atual República do Mali, é um texto dividido em 38 capítulos que contêm listas dinásticas e de eventos, narrativas históricas de cidades, eventos e governos, biografias e hagiografias. Al-Sadi, que à época da elaboração do texto ocupava um cargo importante na administração local – uma espécie de secretário-geral – de Tombuctu, nasceu em 1594 e possui ascendência árabe. Não há informações concretas a respeito da sua infância e juventude, mas é muito provável que tenha usufruído de uma boa educação formal, tendo em vista os importantes cargos que ocupou na vida adulta – foi imã na cidade de Djenné antes de ser nomeado catib em Tombuctu – e, principalmente, a erudição exibida na sua obra (HUNWICK, 2003, p. Lxiii; FARIAS, 2003, p. Lxxix).

A região de Tombuctu, incluindo Djenné, ao sul do Saara e próxima à curva do Rio Níger, já era àquela época um importante centro urbano cosmopolita. Sua posição geográfica, às margens do deserto, propiciou que viesse a tornar-se um destacado entreposto comercial entre o Magreb – e o Mediterrâneo – e a África Sul-Saariana5. Desta forma, a cidade abrigava indivíduos oriundos de diversas regiões, não apenas comerciantes, mas também sábios e estudiosos, uma vez que, não só pela interação cultural, mas também pelo estímulo à erudição por parte dos seus administradores desde o início do século XIV, quando Mansa Muça retornou de sua peregrinação a Meca trazendo consigo sábios de variados ramos do conhecimento muçulmano. Desde então foram estabelecidas madraças, verdadeiras escolas corânicas, nas quais se ensinavam desde a tradição verbal e a jurisdição muçulmana, até a astronomia, a

4 Mudimbe chama de africanismo o discurso produzido por europeus ao longo dos séculos XIX e XX acerca da

cultura, história e existência dos africanos, conferindo-lhes sentidos particulares a partir da ideia de alteridade (2013, p. 12). Sobre o emprego de conceitos e categorias ocidentais em contextos, ver Mafeje (2001, pp. 61-63).

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gramática e a história, entre outros conhecimentos (SAAD, 1983, pp. 3-81).

Quando da escrita do TS a cidade de Tombuctu encontrava-se sob a dominação marroquina através da dinastia Arma, que havia tomado o poder em 1591. Como veremos adiante, esta é uma condição fundamental para a compreensão e caracterização da crônica de al-Sadi. Porém, antes disso é importante caracterizarmos o gênero tarikh. Por todo o mundo islâmico desenvolveram-se tradições de escrita da história local (HOURANI, 2016, p. 269). Entretanto, no contexto do nosso estudo, tendo em conta a forma como estes textos foram concebidos, isto é, suas referências, pode-se afirmar que foi um gênero sem precedentes, no qual os autores não reivindicaram uma originalidade de informações, mas propuseram reinterpretações históricas! A sua continuidade e fluidez narrativas faz dos seus criadores verdadeiros inovadores intelectuais, artífices de uma nova ideia de passado (FARIAS, 2003, p. Xxxviii; 2008, pp. 95-96). Zakari Dramani-Issifou chamou este conjunto de textos de “a primeira reescrita da história africana” (apud M’BOKOLO, 2008, p. 139). Sabemos da existência de outros três componentes deste gênero, além do TS, são eles: o Tarikh al-fattash6

(TF), de autoria de Ibn al-Mukhtar, concluída por volta de 1664; um texto anônimo, ao qual foi atribuído o título de Notícia Histórica, provavelmente escrito entre os anos de 1657 e 1669; e, por fim, um texto cujo nenhuma cópia chegou a nós, mas que é citado como uma referência no TF e parece possuir propriedades compatíveis com o gênero, o Durar al-hisan fi akhbar ba’d

muluk al-Sudan7, de autoria de Baba Goro, e de data não consensual8 (HUNWICK, 2003, p. 2;

FARIAS, 2008, p. 95).

A religiosidade islâmica é o primeiro aspecto a ser destacado no texto de al-Sadi. Desde a introdução, onde Deus é nomeado frequentemente (dez vezes nas duas primeiras páginas), até a própria justificativa da escrita, que se dá pela retomada de um ramo do conhecimento abandonado pelos antepassados recentes, que apresentaram um mau comportamento e foram castigados por isso, denotando fortes valores muçulmanos (HUNWICK, 2003, pp. 1-2). A fundação da primeira dinastia local é atribuída a Zuwa Alayaman9, marcando os seus vínculos originários da Península Arábica (HUNWICK, 2003, pp. 5-6).

Todavia, são percebidos elementos de outras vertentes culturais, como por exemplo a

6 “História do pesquisador”.

7 “Pérolas de belezas sobre o que está relacionado a alguns reis do Sudão”.

8 Hunwick o atribui ainda ao século XVI, enquanto Farias, por encontrar menções a este texto no TF, mas não no

TS, considera que seja possível que este tenha sido escrito entre ambos.

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narrativa de Ali Kulun, suposto fundador da dinastia Soni, no século XIV, que pode ser associado a Aligurran, personagem mítico da cultura tuaregue (HUNWICK, 2003, pp. 7-8; FARIAS, 2003, pp. Xciv-xcv). Além disso, são identificáveis algumas inadequações linguísticas que sugerem que al-Sadi, embora escrevesse em árabe, certamente pensava noutro idioma, provavelmente o songai (HUNWICK, 2003, p. Lxiv).

É interessante como a espacialidade é apresentada de forma diversificada pelo autor. Ele limita o seu objeto de estudo ao Sudão e à cidade de Tombuctu (HUNWICK, 2003, p. 2). Aqui também é notável a influência do Islã sobre o pensamento do autor, que incorpora nomenclatura (Sudão10).

A associação entre território e poder, bem como a sobreposição de poderes sobre territórios são apresentadas por al-Sadi em diversas passagens. Ao relatar, por exemplo, a já mencionada história de Ali Kulun, ele trata da subordinação dos governantes do Songai aos do Mali. Situação que teria sido invertida quando da chegada de Ali Kulun ao poder e a instauração da dinastia Soni, sob a qual a autoridade dos governantes teria se estendido apenas sobre os territórios já constituintes do Songai (HUNWICK, 2003, pp. 7-8). Do mesmo modo a relação entre território e poder é expressa quando da narrativa da tomada de Tombuctu pelos tuaregues, justificada por estes pela incapacidade de seus antigos governantes de protegerem-na (HUNWICK, 2003, pp. 11-12). A expansão do Mali é descrita em termos territoriais (HUNWICK, 2003, p. 14; 15), denotando que a região possuía agrupamentos bem estabelecidos e identificáveis, a ponto de serem tomados como referência para a descrição de al-Sadi.

Por fim, analisemos os capítulos dedicados às cidades de Djenné e Tombuctu, respectivamente. A primeira é descrita em aspectos referentes ao seu povo, à sua economia, suas peculiaridades geográficas, à localização de sua mesquita e à ocupação do seu espaço (HUNWICK, 2003, pp. 17-19). Nesta passagem temos uma caracterização da cidade que, embora não seja precisa do ponto de vista da orientação, não deixa de ser possível de ser caracterizada como um mapa enquanto um sistema cognitivo que auxilia na compreensão do mundo, reduzindo-o a uma representação administrável (WOODWARD & LEWIS, 1998, pp. 1-10). Tombuctu, por sua vez, é assinalada principalmente pelo seu caráter cosmopolita, ressaltando suas origens tuaregues Magcharan, e a pluralidade de origens de pessoas que lá conviviam (HUNWICK, 2003, p. 30). O desenvolvimento da cidade é marcado pelas habitações

111 e pelas mesquitas (HUNWICK, 2003, p. 30).

No que tange à temporalidade, é importante destacar a contribuição de Jean Boulègue. Ele entende o TS com unidades individualizadas quanto às narrativas, cronologias e temáticas. No caso de dinastias e “reinos”, os governantes ocupam uma figura central no discurso histórico, que tem a cronologia pautada em relação ao período no qual aqueles detiveram o poder. Todavia, nos capítulos dedicados às cidades de Tombuctu e Djenne, são estas que ocupam a posição central, como personagens e agentes políticos, logo, a periodização passa a ser referente às suas transformações e independente de quem está no exercício do poder. Em suma, cada parte do TS segue um esquema cronológico próprio (BOULÈGUE, 2004, pp. 99- 107).

No tocante às fontes utilizadas, al-Sadi faz referências vagas, como “pessoas confiáveis” ou “um dos meus colegas”, e outras explícitas, como Ahmad Baba e Ibn Battuta. Enquanto nos últimos capítulos, contemporâneos à sua atuação na administração, podemos perceber a precisão de dados mencionados, sugerindo que tenha se valido de informações e documentos oficiais, embora sem referenciá-los (HUNWICK, 2003, p. Lxiv).

Podemos refletir também acerca dos objetivos do autor ao escrever tal texto. Após a invasão marroquina, em 1591, a cidade de Tombuctu foi palco de uma série de levantes políticos e sociais imputados à existência de três elites: a Arma (de origem marroquina e de caráter político e militar), a Ásquia (dos governantes submetidos pelos marroquinos, mas que permaneceram gozando de um status privilegiado) e o “patriciado” urbano de Tombuctu (influente e integrado à administração Arma) (FARIAS, 2008, p. 97). Certamente foi diante da necessidade de conciliar os interesses destes grupos que foram promovidos esforços para a criação de uma narrativa com profundidade cronológica e que lhes concedesse unidade política (FARIAS, 2003, p. Lxxii).

Em suma, o TS apresenta-se como um produto riquíssimo a ser estudado e, certamente, como uma demonstração dos gênios intelectual e político genuinamente africanos, frequentemente silenciados em prol de uma narrativa racista, eurocêntrica e subalternizante da história africana.

Cabe destacar que esta é uma pesquisa ainda em andamento, à qual ainda podemos acrescentar não apenas desdobramentos, mas principalmente informações que permitam-nos averiguar, por exemplo, elementos da tradição oral songai anterior à sua escrita, bem como a influência que o texto escrito possa ter exercido sobre a oralidade posterior, uma vez que estes

112 textos eram possivelmente lidos em público.

Palavras-chave: escrita da história; Tombuctu; Islã.

REFERÊNCIAS

BOULÈGUE, Jean. Temps et structures chez un historien tombouctien du XVII siècle. In: Afrique & Histoire, vol. 2-1, pp. 97-108, 2004. Disponível

em:

<https://www.cairn.info/revue-afrique-et-histoire-2004-1-page-97.htm>. Acesso em: junho de 2016.

FARIAS, Paulo. Arabic medieval inscriptions from the Republic of Mali: Epigraphy, Chronicles, and Songhay-Tuareg History. Nova York: Oxford University Press, 2003. . Intellectual innovation and reinvention of the Sahel: the seventeenth-century Timbuktu chronicles. In: JEPPIE, Shamil & DIAGNE, Bachir (Eds.). The Meanings of Timbuktu. Cidade do Cabo: HSRC Press, 2008, pp. 95-108.

HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. HUNWICK, John. Timbuktu and the Songhay Empire: Al-Sa’dīs Ta’rīkh al-sūdān down to 1613 and other Contemporary Documents. Leiden: Brill, 2003.

LEITE, Fábio. A Questão Ancestral: África Negra. São Paulo: Casa das Áfricas/Palas Athena, 2008.

MAFEJE, Archie. Anthropology in Post-independence Africa: End of an Era and the Problem of Self-definition. Nairobi: Heinrich Böll Foundation, 2001.

MBOKOLO, Elikia. África Negra: história e civilizações, Tomo I (até o século XVIII). São Paulo: EDUFBA/Casa das Áfricas, 2008.

MIGNOLO, Walter. Desafios Decoloniais Hoje. In: Epistemologias do Sul, v. 1 (1), pp. 12-

32, 2017. Disponível

em:

<https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/article/download/772/645>. Acesso em agosto de 2018.

MUDIMBE, Valentin-Yves. A invenção de África: Gnose, Filosofia e a Ordem do Conhecimento. Lisboa: Edições Pedago, 2013.

SAAD, Elias. Social History of Timbuktu. Nova York: Cambridge University Press, 1983. WOODWARD, David & LEWIS, G. Malcolm. The History of Cartography, Volume 2, Book 3: cartography in the tradicional african, american, arctic, australian, and pacific societies. University of Chicago Press: Chicago e Londres, 1998.

A HISTÓRIA ORAL EM PERSPECTIVA COMPARADA: URUGUAI E

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