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O primeiro contato realizado com Paula ocorre já passado algum tempo da chegada de seu bebê à unidade de tratamento intensivo neonatal. Ele havia sido deslocado para a sala de tratamento semi-intensivo há cerca de cinco dias.

Ela relata que havia feito seu exame pré-natal nesse mesmo hospital, já que sua obstetra pertence ao quadro médico da instituição. Ela pensava que o nascimento prematuro de seu bebê havia ocorrido devido ao abalo emocional sofrido por ela quando se encontrava na 24ª semana de gestação relacionado a problemas de saúde na família. Após esse episódio ela passou a ter dores nas costas e no abdômen. Foi, então, recomendado um repouso, já que ela passou a apresentar contrações regulares. Esse repouso se prolongou até a 34ª semana de gestação, quando então ela entrou em trabalho de parto. Durante o repouso, diz só ter pensado em poder segurar a gestação o mais longe possível, para que seu bebê pudesse estar mais bem formado.

A gravidez não foi planejada, mas Paula afirma que o bebê foi muito desejado. Ela pretendia concluir seus estudos para depois casar e ter filhos. A

família deu todo apoio à gravidez desde o início. O marido trabalha durante o dia e faz um curso superior de noite. Em função das condições de risco de sua gestação, decidiram morar na casa dos pais dela. O pai de Paula trabalha na área das ciências humanas e sua mãe está realizando uma formação acadêmica na área de saúde. Segundo ela, esse teria sido um velho sonho da mãe que decidiu investir no sonho após a criação dos filhos. Paula informa que possui uma irmã que é também formada na área da saúde e que ela mesma havia tido contato com essa área durante dois anos. Ela decidiu, após o início do contato com a rotina hospitalar, que esta área não seria uma boa escolha para ela porque se atormentava muito com o sofrimento das pessoas: “Não suportava ver o sofrimento, as desigualdades sociais do atendimento dispensado pelo SUS, enfim as diferenças”. Nessa ocasião, buscou uma ajuda psicoterápica que, segundo ela, lhe apontou o caminho para poder auxiliar as pessoas de outro modo. A psicoterapia foi interrompida no início da gestação por causa do desconforto dos enjôos. Paula comenta, que teria sido melhor que ela não a tivesse interrompido: “Talvez tivesse sido melhor prosseguir, isto me poderia ter ajudado, já que fico nervosa com facilidade”.

Paula descobriu a gravidez no segundo mês de gestação. Como tem ovário policístico, era bastante freqüente ficar sem menstruar por dois meses. Além do mais, diziam que ela não engravidaria facilmente. Durante a gestação, gostava muito de fazer ultra-sonografia para ver o bebê. Paula teve que ser submetida a uma cesárea de urgência, mas afirmou que estava advertida da possibilidade do nascimento prematuro de seu bebê. Ela achava que estava preparada para esse nascimento, pois o bebê inclusive tinha bom peso, 2,125 Kg.

O encontro com o bebê após o nascimento foi, no entanto, bastante traumático para ela, pois ele necessitou do auxílio dos aparelhos para respirar, tendo sido, portanto, entubado. Ela declara que: “Não estava preparada para aquilo”. Quando teve alta e foi para casa, não conseguia dormir nem comer. Solicitava que sua mãe ligasse para o hospital todas as noites para que ela pudesse dormir. Ela assim descreve como se portou no primeiro contato com o médico após o nascimento de seu filho: “O médico veio dar-me notícia sobre o estado clínico de meu filho, mas eu procurava não prestar muita atenção ao que ele lhe dizia, já que por não ser uma leiga na área da saúde encontrava-me apta a entender a gravidade da situação. Preferi confiar e apostar que tudo ia dar certo”. Essa costumava ser sua conduta que contrastava com a do marido, que segundo ela, perguntava tudo, queria saber de tudo. Ela considerava-o inclusive bastante ciumento em relação ao bebê. Ficava incomodado com o fato de as enfermeiras o tocarem muito e às vezes achava que elas eram um pouco abruptas com a criança. Ela relata que um dia, quando chegou junto com seu marido na unidade e viram vários residentes no serviço este comentou: “Eles não vão pegar no nosso bebê, não é?”.

Paula acha que o bebê está evoluindo bem, pois já necessita de pouco oxigênio e agora precisa ganhar peso. Os familiares estão muito ansiosos, mas ela entende que o bebê tem um outro ritmo para crescer, engordar e para se recuperar. Ela acha que são cansativas as idas e vindas ao serviço: ”Aqui, parece que o tempo pára”. Ela costuma conversar com outras mães, principalmente com a mãe do bebê que fica no berço vizinho ao do seu filho.

Os contatos com Paula foram interrompidos devido à transferência repentina de seu bebê para outro hospital logo após nosso último encontro. Tomo conhecimento de que no final de semana havia ocorrido um atrito importante entre Paula e uma das médicas de plantão. De acordo com o relato da equipe, a irmã- médica de Paula havia entrado em contato com o serviço e questionado um aspecto da conduta médica (a utilização de determinado medicamento) adotada com o sobrinho. A equipe argumentou junto à irmã-médica e à avó materna que a conduta adotada era a correta e alegaram que não havia motivo para inquietação em relação à avaliação clínica da criança. No contato feito pela mãe de Paula com a equipe, ela informa a um dos membros da equipe que estava preocupada com sua filha que não vinha se alimentando bem e manifestando preocupações de ter tido o corpo deformado pela gravidez e pelo parto.

Na tentativa de talvez colocar um ponto final no mal-entendido entre a família e a equipe médica, Paula é abordada por outro membro da equipe que reafirma o infundado do questionamento da conduta adotada em relação a seu bebê. Paula fica muito contrariada por ter sido abordada enquanto estava amamentado seu filho e reage imediatamente ao fato de que sua irmã estivesse sendo questionada. Todo o episódio é encerrado com a transferência do bebê para outro hospital. A avó, posteriormente, comunica à equipe que o problema não foi a decisão sobre a conduta terapêutica com o bebê, mas a posição da equipe em relação ao questionamento feito pela família.

Inicialmente, vale destacar a reação da mãe ao nascimento do bebê. Ela imaginava que enfrentaria com mais tranqüilidade esse nascimento porque havia

sido preparada para essa possibilidade. Essa suposição é bastante comum entre as mães que, durante o acompanhamento pré-natal, foram advertidas para a eventualidade maior ou menor de um nascimento prematuro. No entanto, nenhuma delas está preparada verdadeiramente para isso. A presença da criança real, com todo o impacto causado pela impressão de sua enorme fragilidade, desarticula esse suposto saber prévio da mãe. A imagem da criança, conectada ao aparato das máquinas, é sempre inquietante para os pais. Para essa mãe, contudo, o fato de ela possuir uma familiaridade com a área médica faz com que ela se sinta ainda mais em risco quando interpelada pelas informações médicas. Sua posição diante dos informes médicos é a de não prestar muita atenção a nada, de não querer saber. Ela deixa isso para outros: o marido e a mãe. Ela havia decidido interromper a formação iniciada na área da saúde porque não suportava a falta de solução para o sofrimento humano, que é identificado em sua fala pelo desamparo do pessoal do SUS. A sua posição deixa claro a relação significativa entre não querer saber, a falta de solução para o desamparo humano e a angústia suscitada pela falta de resposta ao desamparo.

Vale observar, que Paula destaca que a conduta do marido é mais agressiva e ciumenta em relação ao bebê. Ele não apenas quer saber de tudo, como também sua conduta ciumenta em relação ao bebê, tanto no que se refere à equipe médica, como com relação à enfermagem aponta o que alguns identificam como um traço pelo qual o pai vem tentar marcar seu lugar junto à equipe médica. Mathelin (1997), afirma que a reação, às vezes, mais impetuosa do pai junto à equipe é seu modo de reagir aos efeitos do nascimento de seu filho, tentando recuperar o lugar de terceiro

junto à mãe e ao bebê que a hospitalização da criança faz deslizar para a equipe médica.

[...] o pai pode mostrar-se muito exigente com a equipe, como se só pudesse vir em ajuda da mãe e do filho de um modo vindicativo. [...] Ele está protegendo sua família; ao opor-se a nós, ao se mostrar intratável, pensa dar novamente a sua mulher, a seu bebê e a si mesmo um pouco de confiança nele (Mathelin, 1997, p.76).

O atrito entre a equipe médica e a família materna é um ponto importante na hospitalização desse bebê. Nos pareceu que a interferência da família materna através do questionamento da conduta médica adotada pela equipe com o bebê pela irmã-médica de Paula foi tomada pela equipe como expressão de uma rivalidade entre pares. Entendemos, entretanto, que a situação armada por esse questionamento tinha como pivô um antagonismo entre o saber que se inscrevia pelo lado materno e o saber da equipe médica. Ao final de todo episódio, a avó materna do bebê assegura à equipe que o problema não foi a decisão sobre a terapêutica em si mesma, mas a reação ao questionamento. O bebê, afinal de contas, informou a avó materna a um dos membros da equipe, estava sendo tratado no outro hospital com a mesma terapêutica.

A compreensão pela equipe das transferências que os pais realizam sobre ela é de vital importância na jornada da hospitalização do bebê. Lembremos que Paula encontrava-se bastante fragilizada após o nascimento de seu filho. Havia as preocupações com o corpo, a falta de apetite e a dificuldade no sono. Ela elide inicialmente tudo que possa remetê-la às más notícias. Ao apoio que ela recebe do marido se interpõe, de maneira importante, o apoio que ela vai buscar do lado da linhagem materna. A mãe liga todas as noites para a UTI para recolher notícias

sobre o bebê, enquanto a irmã legitima para ela as condutas terapêuticas realizadas com seu filho. O que esta mãe interpreta como uma banalização do questionamento realizado pela irmã torna intolerável toda a situação para ela, pois representa uma destituição do saber sobre o bebê que vem do lado materno. Essa mãe que buscava do lado de sua própria mãe um ancoramento para seu narcisismo abalado pelo nascimento do bebê, utilizou o confronto com a equipe médica para proceder à evasão da criança da cena.