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1. A TEORIA DA JUSTIÇA RAWLSIANA

3.1 ABORDAGEM A PARTIR DO IDEAL COMO NÃO

A presente seção representa uma mudança qualitativa no trabalho. Até o momento, discutimos o que chamamos de críticas internas e externas da teoria da justiça rawlsiana. A seguir, a abordagem de tal proposta será realizada de forma complementar para assim propormos um novo procedimento relativo à escolha de princípios de justiça. Posteriormente, chegaremos à construção de um novo aparato conceitual procedimentalista que atenda especificamente aqueles problemas não considerados pelo modelo de justiça rawlsiano.

Sen (2012, p. 125-9) fará uma importante distinção entre o que ele considera duas formas para “responder a perguntas sobre como promover a justiça e comparar as propostas alternativas para ter uma sociedade mais justa”. Ele diferenciará o que ele chama de abordagem “comparativa” da “transcendental”. A primeira se refere a um tipo de procedimento que consiste em comparar modelos de justiça sem apelo a um modelo ideal. O segundo caso se caracteriza, pelo contrário, por ser uma forma de formular juízos de justiça levando em consideração um modelo ideal de justiça e de sociedade. A diferença entre ambos os tipos de abordagem consistiria, principalmente, em que, o segundo, em oposição ao primeiro, trata de determinar “o que é uma sociedade justa”. O que na continuação observaremos, serão os motivos pelos quais Sen crítica a abordagem “transcendental”, a qual, segundo ele, está presente no procedimento rawlsiano.

Sen (2012, p. 132-3) sustenta que para comparar o grau de justiça entre dois modelos de justiça concorrentes não é necessário um modelo “transcendental” de justiça que represente o melhor caso91. O argumento que ele oferece, grosso modo, aponta para o fato de que, da mesma forma que é possível fazer algumas comparações para determinar qual das opções é a melhor sem levar em consideração um modelo ideal, também é avaliar dois modelos de justiça e determinar qual deles é mais

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É necessário observar que o uso que Sen faz do conceito “transcendental” não é o mesmo da tradição kantiana. No caso de Sen, “transcendental” é empregado para se referir a um modelo perfeito ―no nosso, caso, um modelo de justiça ideal, ou um modelo de sociedade plenamente justa.

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justo sem apelar para comparações com um transcendental correto. O exemplo por ele dado ― muito questionável quanto a sua semelhança com a justiça― vem da arte. Ele sustenta ser possível avaliar duas pinturas e determinar qual das duas é a mais bela, ainda que não exista “a pintura mais perfeita do mundo”.

Sen (2012, p. 129-32) sustentará também que um modelo transcendental de justiça como o rawlsiano não é suficiente para estabelecer, entre diferentes modelos de justiça, qual é o mais justo. O motivo, segundo ele, consiste em que:

[u]ma teoria transcendental prática pode servir [...] como um grande “manual completo” do revolucionário. Mas esse manual maravilhosamente radical não seria muito invocado nos reais debates sobre a justiça nos quais estamos sempre envolvidos. Perguntas sobre como reduzir as injustiças múltiplas que caracterizam o mundo tendem a definir o domínio de aplicação da análise da justiça; o salto para a perfeição transcendental não pertence a ele (Sen, 2012, p. 131).

O que Sen salienta novamente na passagem citada é a sua ideia de que para podermos nos aproximar de um modelo de justiça adequado para uma sociedade concreta, é imprescindível levar em consideração certos aspectos particulares dessa sociedade. É assim que, segundo o autor, os debates reais sobre o grau de justiça das sociedades operam e sem esse tipo de avaliação particular de caso, não seria possível dizer que um modelo de justiça seja justo.

Considerando essas duas afirmações de Sen ―sobre a não necessidade e insuficiência de um ideal transcendental do modelo de justiça― resta-nos perguntar por cada uma delas em particular e pelos argumentos por ele oferecidos. No primeiro caso, a afirmação parece ser um pouco forte, uma vez que sustentar a não necessidade de um modelo de justiça correto parece ferir até os nossos juízos mais básicos a respeito da justiça. Em princípio, pareceria que, mesmo que nossas sociedades não sejam perfeitas, sempre é possível determinar um modelo de justiça perfeito; embora as estruturas básicas das sociedades reais não operem de forma justa, deveria existir um modelo de justiça que, por assim dizer, representasse a melhor opção entre todas para qualquer uma das diferentes espécies de sociedades democráticas e

153 ocidentais ―para seguir dentro do marco teórico rawlsiano. Em função de tal consideração, seria possível sustentar a existência de um tipo de modelo de justiça realmente justo para essa grande variedade de sociedades? Certamente, defender esse tipo de compromisso ontológico, ainda que Rawls proponha a superioridade do seu modelo de justiça sobre outros modelos, parece ser uma tese forte demais. Ele, por exemplo, sustenta que na etapa constitucional as partes do seu procedimento devem optar entre uma democracia de cidadãos proprietários e uma democracia liberal em função das propriedades particulares da sociedade em questão (RAWLS 2003, p. 191-8). Ou seja, não existiria “o” melhor sistema de governo, sem referência à sociedade em questão. Será então que Rawls, no entanto, realmente consideraria que a justiça como equidade é perfeita nesses termos? Seja qual for o caso e ampliando com o raciocínio de Sen: só faria sentido dizer que um modelo de justiça é justo em função de sua adequação às necessidades particulares da sociedade em questão, ou seja, um modelo de justiça é justo para uma determinada sociedade e em função dos problemas de justiça próprios nela existentes.

A partir dessas reflexões ―e deixando de lado agora o espírito crítico a respeito da justiça como equidade― podemos perceber que, mesmo concedendo que não exista um modelo de justiça transcendental ―perfeito― que seja o mais justo para qualquer sociedade democrática ocidental, alguém poderia sustentar então que, para cada sociedade em particular, existe um modelo transcendental que seria, para ela, e somente para ela, o melhor modelo de justiça. Em outras palavras, o ideal transcendental não se aplicaria a qualquer sociedade democrática, mas haveria um para cada uma delas. Assim, considerando as constantes mudanças de nossas sociedades, seria possível que, para cada uma delas existisse “o” modelo de justiça apropriado, independentemente de qualquer transformação que essa sociedade pudesse sofrer? Em uma época muitas vezes definida como de constantes mudanças, seria possível cogitar a possibilidade de que exista um modelo justiça para cada sociedade que resista como o melhor ao longo do tempo? E, dessa maneira, poderíamos seguir nesse raciocínio, chegando a afirmar que para cada momento da história de uma sociedade existiria um modelo de justiça plenamente justo para aquela sociedade e naquele momento, mas que, não necessariamente ele seria o “melhor” modelo para um momento futuro. ―O modelo seria o homem de Heráclito que lava suas mãos na correnteza e a sociedade o rio, sempre em constante mudança― A argumentação poderia chegar a essa conclusão, mas muito

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provavelmente qualquer leitor concordaria com a futilidade de tal reflexão ontológica.

O importante, então, é compreender as implicações de se sustentar a idealidade de um determinado modelo de justiça, tanto para todas as sociedades democráticas quanto para somente uma sociedade. Mesmo que Sen não tenha escolhido os melhores exemplos para sustentar a sua tese, parece aceitável a afirmação de que não é necessário um modelo transcendental de justiça para poder comparar o grau de justiça de diferentes modelos. Para isso seria necessário assumir previamente a existência de um modelo de justiça perfeito para todas as sociedades ou para uma determinada sociedade, algo que, como foi destacado, parece inconsistente do ponto de vista ontológico. Mas, mesmo concordando com a tese de que não é possível estabelecer um modelo de justiça perfeito com total rigor, isso não nos leva necessariamente a ter que aceitar que, no campo da prática política seja útil empregar algum tipo de padrão de justiça como norteador. Ainda que não exista nenhum tipo de modelo de justiça transcendental ideal ―universal ou particular― na prática política é possível chegar a um acordo considerável sobre o que implica, grosso modo, um modelo de justiça justo. São esses padrões os que, sem serem perfeitos, são e devem ser utilizados na tomada de decisão política envolvendo assuntos de justiça.

Considerando as colocações de Sen, o importante é não esquecer que no terreno da filosofia política, reflexões sobre aspectos ontológicos geralmente possuem valor menor do que outros tipos de reflexões, como, por exemplo, sobre a eficiência, a efetividade, a eficácia etc. No entanto, mesmo não existindo um modelo de justiça que seja “o melhor do mundo”, no campo da prática é evidente que se pode sempre estabelecer um padrão básico claro de justiça e que ele pode operar como uma orientação a ser seguida no momento de se tomar decisões políticas acerca da justiça ―com isso, porém, não se nega a afirmação de Sen segundo a qual uma abordagem transcendental não é suficiente. Não se deve desconsiderar a grande utilidade que um padrão de justiça norteador pode ter no campo da deliberação política. Contudo, uma abordagem literalmente transcendental ―isto é, uma abordagem que apele a um ideal como critério norteador― vê-se desafiada a resolver problemas de caráter ontológico mais do que propriamente de justiça. Nesse sentido, é preciso determinar o ideal a ser considerado, no caso da teoria da justiça, esse ideal se define por meio da pergunta: o que é uma

155 sociedade justa? Esse é um dilema complexo e, aparentemente, sem solução.

Na próxima seção, começaremos a esboçar um procedimento alternativo ao rawlsiano para a escolha de princípios de justiça aplicáveis a sociedades reais. Os principais critérios que serão privilegiados serão sua capacidade de aplicação real e o distanciamento de uma lógica da abordagem transcendental da justiça.

3.2 A INSUFICIÊNCIA DA ETAPA ZERO NO PROCEDIMENTO