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Como já colocado inicialmente, o tema do aborto é de complexa abordagem e análise. Suscita debate caloroso e promove reações polarizadas.

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Incidência e prevalência são medidas de frequência da ocorrência de doenças/agravos: a incidência mede quantas pessoas tornaram-se doentes; a prevalência mede quantas pessoas estão doentes. Essas referências também podem servir à análise da prática de aborto inseguro.

Dois atores sociais protagonizam o embate no plano político, o Movimento Feminista e o segmento religioso, principalmente representado pela Igreja Católica, numa arena de intensa disputa.

Para as feministas, a Igreja Católica e outros grupos cristãos aliados contra a descriminalização/legalização do aborto formam um bloco conservador que compromete a laicidade do Estado - marca fundamental do estado democrático de direito. Para a Igreja Católica e as demais denominações cristãs que formam o „Movimento em Defesa da Vida‟, as feministas e quem as apóia são criminosos segundo a lei e pecadores segundo a dogmática cristã. Ambos os atores contam com apoios diversos - partidos políticos, profissionais de saúde, juristas. A sociedade brasileira nunca se pronunciou efetivamente sobre a questão43, mas, a julgar pela efervescência da discussão no recente período eleitoral, é uma questão de difícil consenso.

A que se deve tamanha resistência diante de um assunto que parece de decisão pessoal? Por que a reprodução assistida não promove discussão semelhantemente acalorada, mesmo se tratando de decisão sobre concepção? Entre tantos fatores, entendemos que o aspecto religioso - enquanto fé pessoal ou igreja institucional - exerce forte influência na vida social, no arcabouço jurídico-legal brasileiro e igualmente condicionou a Política de Saúde da Mulher. A influência da Igreja Católica nas decisões nacionais não é pequena e, embora analisar essa influência extrapole os limites do nosso trabalho, é pertinente lembrar que a não inclusão do direito à vida desde a concepção na Constituição de 1988, fruto do lobby do batom44, precisa ser

vista ao lado da força política católica em vetar a inclusão da descriminalização do aborto na mesma Lei. Mais recentemente presenciamos outras expressões dessa influência: o III Programa Nacional de Direitos Humanos foi censurado pela CNBB e o Governo cedeu, retirando do texto o conteúdo sobre descriminalização do aborto; nas eleições presidenciais de 2010 foram firmados acordos com segmentos religiosos sob pena de comprometer a vitória quase garantida do PT, como já apresentado anteriormente.

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Há setores que defendem a realização de um plebiscito sobre o aborto como forma de ouvir a sociedade brasileira sobre o assunto – em geral, políticos contrários à descriminalização.

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Assim ficou conhecida a ação das feministas e das deputadas federais junto aos parlamentares na Assembleia Nacional Constituinte. A conquista de cerca de 80% das demandas apresentadas, tornou o segmento o mais vitorioso daquele momento.

A liberdade religiosa de que trata a Constituição Federal assegura a obrigatoriedade de tratamento igualitário por parte do Estado brasileiro a todas as formas de pensamento religioso sem que nenhuma delas dite rumos à condução do país. No tocante à questão do aborto verifica-se clara intervenção religiosa no espaço público, tanto no plano formal – da legislação45 – quanto no plano simbólico – quando, por exemplo, é utilizado o recurso da objeção de consciência por médicos(as) ao se recusarem a atender mulheres que solicitam o procedimento do aborto legal ou mulheres com complicações pós- abortamento que procuram os serviços de saúde.

Enquanto a Igreja defende a vida do feto, sob o argumento de que desde a concepção existe uma vida e que o feto tem direito à vida no decurso de sua formação, feministas defendem a legalização irrestrita do aborto preconizando a “defesa da vida das mulheres que morrem por falta de recursos para fazer o aborto em condições médico-higiênicas seguras” (LAUDANO, 2001, p. 211). A defesa da vida do feto ou da mulher atrela-se a preceitos religiosos, éticos e morais construídos, repassados e apreendidos socialmente.

Uma ética laica deve pensar o direito ao aborto e a defesa da vida das mulheres, com vistas à superação do que se encontra atualmente instituído e em que “a experiência brasileira com o aborto é mais uma lembrança sobre como as mulheres, ao enfrentar uma gravidez indesejada, são levadas ao aborto ilegal, independentemente dos riscos a sua saúde” (COSTA, 1999, p. 180).

O principal argumento religioso é o do início da vida desde a concepção, daí a não aceitação do aborto em qualquer circunstância e a mobilização para que os permissivos legais deixem de existir. A Igreja Católica e a maior parte das denominações evangélicas reconhecem o aborto como assassinato e usurpação do lugar de Deus, único que pode tirar a vida por criá-la. Um contra- argumento de cristãos que se posicionam a favor do aborto é que a vida em potencial não é vida completa. Assinalam ainda que o princípio do direito à vida não é absoluto; nem mesmo em nossa legislação em que se pode matar em

legítima defesa e em defesa da propriedade, por exemplo. Do ponto de vista da teologia católica, reacende uma forte discussão sobre a hominização46.

Para os críticos dos segmentos religiosos, trata-se de uma posição incoerente já que as igrejas elevam sua voz sobre o aborto, mas convivem silenciosamente com a opressão e a barbárie encontradas de tantas formas na sociedade, incluindo a violência contra as mulheres, sua exploração e as condições adversas de vida a que elas e seus(as) filhos(as) são submetidos(as) em nossa sociedade. No bojo da crítica à Igreja Católica também aparecem fatos históricos nos quais a Igreja protagonizou ações distoantes da „defesa da vida‟, como a Inquisição, as Cruzadas, as supostas relações com o nazismo. Há também pontuações importantes sobre as mudanças de posição da Igreja Católica quanto ao aborto, lembrando que houve tempos em que o aborto não era tido como crime e nem como pecado.47 Cabe salientar que o exercício da fé religiosa não é aqui tomado como problema. A questão é transpor os limites da liberdade de fé e de culto, prescrevendo parâmetros de regulação para a vida social; o que caracterizaria ingerência da instituição religiosa e comprometeria a laicidade do Estado. O risco crucial das posições religiosas é a tendência ao fundamentalismo48 que facilmente assume contornos dualistas num embate constante entre as forças inimigas e as forças do bem. “A exacerbação da tendência fundamentalista [...] tem gerado várias formas de violência, sobretudo contra as mulheres, os homossexuais e os grupos marginalizados” (GEBARA, 2003, p. 46).

No que toca às práticas profissionais - campo também complexo quanto a posições assumidas diante do aborto/aborto legal – a discussão perpassa o argumento religioso, pessoal ou em sua força simbólica, e repercute na reflexão da ética, da moral e, em particular, da ética profissional.

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Processo de implantação da alma no corpo durante a gestação – para Tomás de Aquino e Agostinho só ocorria após 40/80 dias da fecundação; essa posição foi aceita até 1869 pela Igreja Católica e colocava o aborto como uma prática a ser evitada, mas não como crime ou pecado. Em 1869, o Papa Pio IX publicou o Apostolicae sedis que ignora a questão da hominização e requer a excomunhão para abortos praticados em qualquer etapa da gestação.

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Para aprofundar ver CAVALCANTE e XAVIER, 2006; HURST, 2006; MURARO, 1997.

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Termo cunhado no protestantismo norteamericano, entre 1910 e 1915 como reação ao modernismo teológico, reafirmando conteúdos fundamentais da fé cristã.

Para Boff (2003) a ética é parte da Filosofia e a moral compõe a vida concreta. A ética

considera concepções de fundo acerca da vida, do universo, do ser humano e de seu destino, estatui princípios e valores que orientam pessoas e sociedades. Uma pessoa é ética quando se orienta por princípios e convicções (...). A moral trata da prática real das pessoas que se expressam por costumes, hábitos, valores culturalmente estabelecidos. Uma pessoa é moral quando age em conformidade com os costumes e valores consagrados. Estes podem, eventualmente, ser questionados pela ética (p. 37).

Conforme Mustafá (2004) a ética reflete filosoficamente sobre o agir humano no mundo. Pode ser vista na perspectiva teleológica – ao enfatizar os fins a alcançar – ou na perspectiva deontológica – na qual se destaca o agir conforme as normas estabelecidas. A autora se insere entre os que abraçam a ética teleológica por entender sua visão mais geral e que trata de princípios do agir humano indo além dos comportamentos ditados por regras. A autora diz ser esta uma posição que considera o homem como sujeito da história, e baseia-se em Marx para afirmar ser o homem um ser teleológico, o qual pensa, projeta seu trabalho antes de realizá-lo. Afirma, ainda, que as duas perspectivas devem ser tomadas como interconectadas.

Os princípios devem necessariamente ser objetivados sob a forma de códigos, normas e leis para se fazerem cumprir pelos membros da sociedade. [...] Com efeito, o direito subjetivo precisa ser objetivado através de normas, sem se perder de vista que estas normas são históricas e mutáveis (p. 174).

Pode-se perceber que nos domínios da religião, da ética, da moral cabem posições diversas diante de interesses conflitantes. No que se refere ao aborto/aborto legal, as posições em confronto influenciam diretamente nas práticas em saúde e, por vezes, se expressam em limites concretos ao acesso ao direito. A saúde da mulher enquanto política pública articulada à garantia dos direitos reprodutivos é, no dizer de Coelho (2006), um desafio em construção.

As ações profissionais enquanto práticas diretamente relacionadas à saúde e à vida são conteúdos de análise da Bioética; campo disciplinar que nasceu em 1970 nos Estados Unidos e propagou-se no Brasil na década de 1990, voltado a refletir e se pronunciar sobre questões na interface dos avanços tecnológicos e os limites éticos. Em sentido amplo pode ser apresentada como a ética das ciências da vida e da saúde. “Um novo âmbito

de pertinência em que se entrecruzam aspectos teóricos e práticos relativos às ações humanas no campo das ciências e técnicas da vida e da saúde” (BRAZ e SCHRAMM, 2005, p. 12).

Os avanços biotecnológicos têm ocasionado mudanças significativas na vida humana ao possibilitar transplantes, tratamentos com células-tronco, técnicas de reprodução humana assistida, terapêuticas para prolongamento da vida. A reprodução tem sido uma das áreas de maior progresso científico; ao permitir, por exemplo, o conhecimento da gravidez de um feto anencéfalo, abriga a discussão ética sobre o direito à interrupção por parte da mulher. No campo da reprodução situam-se delicadas questões relativas à infertilidade, às Novas Tecnologias de Reprodução, à esterilização cirúrgica, à decisão pela não procriação e à gestação de substituição49, além da questão do aborto.

Os temas relacionados ao começo e ao fim da vida também são trabalhados pela Bioética, sendo um dos temas mais controvertidos e no qual se insere a discussão sobre o aborto. Kottow (2006) assegura que os temas do início e do fim da vida são os mais presentes no pensamento humano de todas as épocas, daí sua complexidade. Há interesse científico e especulativo, como também de doutrinas religiosas.

As atitudes contrárias ao aborto são geralmente relacionadas ao conceito de início da vida adotado; as posições progressistas trazem à discussão o bem-estar e desejo da mulher, a viabilidade do embrião ou feto, os fatores socioeconômicos. A doutrina que marca o início da vida pelo ato sexual e que busca impedir qualquer interferência ao processo reprodutivo contrasta com as pesquisas científicas e a força da pressão das mulheres em todo o mundo. Daí porque, como já exposto, para os Movimentos Feminista e de Mulheres a não inclusão do direito à vida desde a concepção na Constituição foi um ganho significativo. Do lado dos setores contrários, esse é um tema caro e há um embate permanente para ser incorporado à legislação - o PL do Estatuto do Nascituro, já citado, faz parte dessa proposição.

Kottow (2006) coloca como questão de fundo demarcar se os processos do início da vida são paralelos ao aparecimento da vida humana, da vida pessoal. Apresenta quatro perspectivas sobre a questão. A primeira é a

perspectiva concepcional – é a mais radical e intransigente das concepções e

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preconiza a existência da vida humana, pessoal quando da união do espermatozóide com o óvulo. Apesar de reconhecer a potencialidade (hipotética) das células, o autor discorda da defesa do status moral do embrião. A visão evolutiva aceita que o início da vida humana ocorre em etapas posteriores à fecundação - para alguns adeptos seria o momento de implantação do embrião50; para outros o critério de viabilidade fetal é mais

importante e há os que defendem momentos do desenvolvimento como essenciais para o reconhecimento do início da vida humana, como o aparecimento da crista neural, a detecção de movimentos fetais ou o nascimento. Outra visão é a social que assume que só os indivíduos inseridos numa sociedade podem ser reconhecidos como pessoas. E, por fim, a perspectiva relacional que defende que o novo ser existe à medida em que se estabelece uma relação com ele; tem a ver com o fato de o embrião ou feto ser reconhecido como humano e evocar empatia em outro ser (GROBSTEIN, 1981 apud KOTTOW, 2006). Essa perspectiva, apesar de apoio acadêmico escasso, precisa ser considerada uma vez que

Quando sabe estar grávida, a mulher, de acordo com a maioria das legislações contemporâneas, encontra-se em condições de exercer um direito de escolha: assumir a maternidade ou rejeitar a gravidez buscando o aborto. Quando a gravidez é indesejada ou forçada, a escolha do aborto conta com vasto apoio moral e jurídico, embora este não seja incontestavelmente unânime. Do ponto de vista ético, parece mais válido que a maternidade seja um ato de escolha do que uma imposição natural. O reconhecimento do início da vida humana por aceitação e compromisso, como propõe a visão relacional, é uma atitude moralmente louvável e superior à acolhida passiva da gravidez como um fato consumado e irreversível (p. 28).

Para o autor atribui-se ao feto status moral parcial já que pode ser sacrificável diante de risco de vida da mãe, e que as condutas terapêuticas carecem de aprovação da mãe. Destaca que a Bioética rege-se pelos princípios da autonomia, da beneficência e da não-maleficência, e que esses princípios também são referenciais para a prática médica.

Consideramos que esses princípios podem ser norteadores para posições menos restritivas no campo da Saúde da Mulher, expressas no devido acolhimento às demandas das mulheres e ao reconhecimento de sua capacidade de discernir e decidir.

No capítulo de Análise dos Dados voltaremos ao tema da ética como um dos temas que emergiram nos depoimentos dos(as) profissionais de saúde entrevistados(as).