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Um dos cientistas sociais que mais se dedicou à elaboração de uma me- todologia comprometida com a luta social das classes populares foi, sem dúvida, o sociólogo colombiano Orlando Fals Borda. “Como investigar la realidad para transformarla” (BORDA, 2009, p. 253) é a questão que bem intitula a busca de Borda por abordagens que fossem capazes de gerar sa- beres emancipatórios junto aos movimentos populares colombianos, cuja situação e suas lutas foram foco de estudo e pesquisa de Borda em boa parte de sua vida acadêmica. Como ocorreu também na Geografia crítica, Bor- da (2009, p. 270) parte de uma crítica político-epistemológica da tradição científica de seu campo, a Sociologia:

En las regiones estudiadas se sentía la necessidad de contar con una Sociologia que fuese ante todo una Ciencia Social inspirada en los intereses de las clases trabajadoras y explotadas; se necesitaba de una “ciencia popular” […]

Porém, como diz Borda (Ibid.):

[…] ya no parecia posible transformar esta Sociología académica [positivis- ta], desde su interior, en instrumento revolucionario. La Sociologia conocida en Colombia se había concebido en términos de la burguesía dominante: ésta no podía suicidarse intelectualmente con su próprio instrumento […]

O que não “podia suicidar-se intelectualmente” com suas próprias fer- ramentas devia, então, ser devidamente criticado ao mesmo tempo que su- perado. Para isso e para além da divisão dos campos disciplinares, Borda propôs como fundamento o materialismo histórico. Não se tratou de que- rer superar o fazer de ciência em si, mas, sim, repensar a forma dela ser construída (Ibid., p. 272):

El rechazo del positivismo y de las tecnicas “objectivas” de investigación inspi- radas en el modelo conocido de la integración y el equilíbrio social no podía dejar la orientación de los neuvos trabajos regionales en el vacío; esto hubiera equivalido a rechazar la ciencia misma.

Mantendo um compromisso com a ciência, Borda perguntava-se como seria possível combinar o vivencial e o racional em processos de transfor- mação radical:

Que exigencias nos ha hecho y nos hace la realidad del cambio en cuanto a nuestro papel como científicos y en cuanto a nuestra concepción y utilización de la ciencia? Por que, al vivir, no lo hacemos sólo como hombre, sino como se- res preparados para el estudio y la crítica de la sociedad y del mundo. Nuestras herramientas especiales de trabajo han sido y son mayormente los marcos de referencia y las tecnicas con las que sucesivas generaciones de científicos han intentado interpretar la realidad. Pero bien sabemos que estas herramien- tas de trabajo tienen vida própria, sino que toman el sentido que les demos, con sus respectivos efectos en variados campos de la vida y del conocimiento.

(BORDA, 2009, p. 253-254).

À base destas reflexões, Borda elabora a proposta da Investigación Acción

Participativa (IAP), que não se reduz a uma mera técnica de investigação,

nem a uma mera forma de educação popular e tampouco a uma mera ação política. Todos estes aspectos são “fases” não necessariamente consecutivas que podem ser combinadas numa metodologia de um processo vivencial que tem por objetivo capacitar as classes exploradas para engendrar “con eficacia el peso transformador que les corresponde, traducido a proyectos, obras, lucha y desarrollos concretos” (Ibid.) e visa produzir conhecimento sociopolítico próprio das bases populares envolvidas. A proposta da IAP nasce de uma gama de experiências que Borda fez junto a movimentos po- pulares do campo na Colombia:

Nuestras experiencias con las comunidades campesinas del valle del Mezqui- tal, San Augustin Atenango, El Regadío, El Cerrito y Puerto Tejada nos per- miten entender mejor un proceso que combina la investigación científica y la acción política para transformar radicalmente la realidad social y económica y construir el poder popular en beneficio de los explotados. A este complejo proceso, que incluye la educación de adultos, el diagnóstico de las situaciones, el análisis crítico y la práctica como fuentes de concocimiento para ahondar en los problemas, necesidades y dimensiones de la realidad, lo hemos deno- minado Investigación-Acción Participativa (IAP). Con ello se busca diferen-

ciarlo de otros tipos de investigación-acción que no están por el cambio social sino por la conservación y defensa del status quo, como el propuesto por Kurt Lewin. (BORDA, 1986, p. 125).

Abordagens semelhantes à IAP foram elaboradas em diversos contextos de lutas e países (BORDA; RAHMAN, 1991). Borda diferencia quatro fases fundamentais para se realizar um processo de IAP. Na fase (1) da “investiga- ción colectiva”, o grupo pesquisa e analisa sua própria situação social para a partir disso entrar em uma fase (2) de “recuperación crítica de la historia”, na qual busca resgatar a história pelo olhar e pela experiência própria e superar o olhar histórico dominante (dos dominadores), que tende a invisibilizar os grupos explorados. Segue a fase (3) de “valorización y empleo de la cultura popular”, visando um resgate de formas de expressões culturais esquecidas ou abandonadas no tempo, mas que podem ser importantes na fase (4) de “producción y difusión del nuevo conocimiento” entre os membros da co- munidade e também a partir dela para fora (SEITHEL, 2000, p. 269; BOR- DA, 1986, p. 138-140). Neste processo, os métodos predominantes a serem utilizados são descritivos e qualitativos, mas, quando necessário, a IAP tam- bém recorre a métodos quantitativos e estatísticos (BORDA, 2003, p. 98).

Borda fundamenta a IAP em um marxismo aberto, inspirado também nos trabalhos de Paulo Freire, e o seu trabalho destaca-se nas Ciências So- ciais como uma proposta genericamente sul globalista e pensada a partir

das e para as realidades da luta de classes da América Latina. Fazendo ex-

periências na utilização da IAP, Borda e outros pesquisadores refletiram as dimensões dos dois principais tipos de tensão no trabalho de campo: entre teoria e prática e entre sujeito e objeto.

Resulta contraproducente ver a los investigadores y a los investigados como polos antagónicos o discordantes. Hay que verlos en un mismo plano horizon- tal para crear una relación respetuosa, productiva y confiable la del sujeto-su- jeto. (BORDA, 2003, p. 101).

Diferenciando-se então das Ciências Sociais baseadas nos postulados positivistas, que exigem uma relação de distância entre observador e obser- vado e utilizam-se de técnicas supostamente neutras, como a “observacion participante” ou “observacion por experimentación” que “dejaban a las co-

munidades como víctimas de la explotación científica” (BORDA, 2009, p. 261-262), a IAP surgiu como alternativa por se basear na:

[…] inserción en el proceso social. En este caso se exigía del investigador su plena identificación con los grupos con los cuales entraba en contato, no sólo para obtener información fidedigna, sino para contribuir al logro de las metas de cambio de esos grupos. Se diferenciaba así esta técnica de las anteriores en que se reconocía a las masas populares un papel protagonista, con la conse- guiente disminución del papel del intelectual-observador como monopoliza- dor o controlador de la información científica.

A perspectiva da Investigación-Accion viveu um momento importante quando ocorreu o Simpósio Mundial sobre Investigación-Acción em Carta- gena, Colômbia, em 1977, com protagonismo decisivo de cientistas sociais do sul global (BORDA, 1986, p. 13), que, junto ao Congresso Brasileiro de Geografia em Fortaleza, um ano depois, marcou o fortalecimento das cor- rentes críticas nas Ciências Sociais latino-americanas.

Sobre o significado da IAP para a Geografia, Borda (2013a) aponta:

Así como se construye socialmente el territorio/espacio, también se construye socialmente la ciencia como conocimiento, que queda sujeta a interpretación, reinterpretación, revisión e enriquecimiento constantes. En esta forma, lo que se aprende y descubre con la IAP queda listo para su desarollo y aplicación inmediata en las políticas de ordenamiento territorial, en el uso del ambiente ecológico y en otras prácticas sociales y economicas.

Em diálogo com a Geografia, Fals Borda também destacava a amplitude da luta político-epistêmica, com a qual a IAP buscaria contribuir:

De poco vale reordenar el territorio o controlar su utilización geográfica si los habitantes y sus dirigentes no sienten que marchan hacia metas superiores de organización social y política, hacia la gran aventura de emancipación de los pueblos, con el fin de romper la situación explotadora y opresiva que ha saturado al mundo con las políticas del maldesarollo y de la todavia peor glo- balización capitalista salvaje, cuyos límites deben estabelecerse por nuestros países y sus gentes, tarde o temprano. (Ibid.).

Borda deu um papel à IAP que superou seu caráter de mera abordagem metodológica nas Ciências Sociais críticas, vendo nela uma “filosofia da vida” (BORDA; RAHMAN, 1991, p. 16; BORDA, 2013b) – valendo certo cuidado diante desta constatação de não sobrevalorizar o papel do saber e fazer científico em sua relação com saberes e fazeres dos movimentos so- ciais, como discutiremos mais adiante.

De toda forma, a IAP deixou um legado importante como ferramenta de geração de saberes emancipatórios por ter relacionado diretamente a Ci- ência Social ao fortalecimento dos movimentos populares e sua construção de poder popular (BORDA, 1986, p. 14). Nessa relação, o protagonismo está com as classes populares em luta, conforme afirma o cientista social indiano Muhammad Anisur Rahman (1991, p. 13):

Muitos trabalhos de IAP têm sido inspirados pela noção de “luta de classe” tal como encorporado no materialismo histórico, mas IAP opõe-se a certas interpretações do materialismo histórico que vê a transformação social como primeiramente uma tarefa dum partido de “vanguarda” que assume (por ela mesma) obter uma consciência mais “avançada” comparada á das massas.21 Um conceito que bem expressa a sensibilidade reflexiva de Orlando Fals Borda é o conceito do “sentipensamento”. O cientista social colombiano Vic- tor Manuel Moncayo (2009, p. 10, grifo meu) escreve na apresentação de uma coletânea de textos-chave da obra de Borda publicada pelo CLACSO:

[…] el hombre-hicotea que sabe ser aguantador para enfrentar los reveses de la vida y poder superarlos, que en la adversidad se encierra para volver luego a la existencia con la misma energía de antes, es también el hombre sentipen- sante que combina la razón y el amor, el cuerpo y el corazón, para deshacer-se de todas las (mal) formaciones que descuartizan esa armonía y poder decir la verdad, tal y como lo recoge Eduardo Galeano en el libro de los abrazos, rindiendo homenaje a los pescadores de la costa colombiana.

21 Tradução livre. No original: “Many PAR [Participatory Action Research] works have been inspired by the notion of “class struggle” as embodied in historical materialism, but PAR is opposed to certain interpretation of historical materialism that views social trans- formation as primarily the task of a ‘vanguard’ party which assumed (itself) to have a more ‘advanced’ consciousness relative to that of the masses”.

Borda expressa o quanto seu “sentipensar” foi inspirado pelos ribeiri- nhos caribenhos colombianos ao explicar que é com eles que chegou a co- nhecer esses próprios conceitos, do “hombre hicotea e sentipensante”. A partir da convivência, Fals Borda conheceu e impressionou-se com a cultu- ra ribeirinha, uma cultura marcada pela relação íntima e integrada dos ri- beirinhos com a água e a terra de sua região. Assim, os ribeirinhos estariam preparados tecnicamente para um “rico modo de vida”, uma vida anfíbia, à beira rio:

[Los ribereños] inventaron por ejemplo el concepto de “sentipensante”. Es el “sentipensante” que aparece en mis libros, eso no lo inventé yo, eso fue alli [en los sitios junto a los ribereños en la region caribeña La Grande Magdalena] […]. Un pescador que iba conmigo dijó: “mira nosotros de realidad creemos que actuamos con el corazón, pero también empleamos la cabeza. Y cuando combinamos las dos cosas, asi somos sentipensantes”. Concepto tan sensillo, cierto, se entiende, es muy bonito[…].22

Sentipensando, estes ribeirinhos precisam saber aturar o sofrimento e, por isso, se inspiram na espécie de tartaruga “hicotea” (encontrada, sobre- tudo, na Colômbia e na Venezuela) que sabe se proteger imobilizada duran- te meses, em meio à lama, da seca com o nível da água do rio abaixando, mas volta a viver com plena energia quando a água volta. Borda conta do diálogo com ribeirinhos cuja vivência conheceu de perto:

“Hombre hicotea. Hombre que aguanta los revezes de la vida por que sabe esperar su momento. Somos hombres hicoteas. Sofrimos mucho, pero tambien gozamos. […] Apesar de nuestra pobreza dicen, va ganando la alegria.”

O antropólogo colombiano-estadunidense Arturo Escobar inspira-se nos trabalhos de Orlando Fals Borda em “Sentipensar con la tierra” (2014, p. 16):

22 Esta citação, como as do parágrafo anterior e a citação a seguir, são transcrições feitas de um vídeo no qual Borda explica as origens do sentipensamiento e do hombre hicotea. A data da gravação não está indicada. O vídeo está disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=LbJWqetRuMo>. Acesso em: 27 abr. 2018.

Sentipensar con el territorio implica pensar desde el corazón y desde la mente, o co-razonar, como bien lo enuncian colegas de Chiapas inspirados en la ex- periencia zapatista; es la forma en que las comunidades territorializadas han aprendido el arte de vivir.

“[…] Impossível entender uma vizinhança sem ser um vizinho”: