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2 A IDENTIDADE ESPACIAL DA AGRICULTURA FAMILIAR E O

2.2 ACEPÇÕES SOBRE DESENVOLVIMENTO RURAL E TERRITÓRIO

O desenvolvimento das áreas rurais tem sido visto como solução para muitos problemas da sociedade atual, entre estes a diminuição da pobreza e da fome. No Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2008 do Banco Mundial, destaca-se que um dos caminhos para o desenvolvimento é a agricultura de pequena escala e que, no Século XXI, a agricultura continua a ser um instrumento fundamental para o desenvolvimento sustentável e a diminuição da pobreza. O Banco Mundial (2008) percebe a agricultura e as indústrias a ela associadas como

ferramentas essenciais para o desenvolvimento e redução da pobreza, principalmente nos países baseados na renda agrícola. Uma das premissas para a consolidação do desenvolvimento rural, de acordo com a instituição, é tornar as produções em pequena escala mais competitivas e sustentáveis, diversificando as fontes de renda da força de trabalho e da economia rural.

A agricultura familiar, nesse contexto, é beneficiada pelo aumento de renda desde que incorpore tecnologias que elevem sua produtividade e que aumentem seu grau de mercantilização. Nesse sentido, o papel do Estado é fundamental, uma vez que pode proporcionar bens públicos essenciais, melhoria do ambiente de investimento, regulamentação da gestão de recursos naturais e garantia de resultados sociais desejáveis. A agricultura pode, então, contribuir como atividade econômica e fonte de crescimento para a economia nacional, fornecendo oportunidades de investimento para o setor privado e impulsionando indústrias.

Nesse contexto, a agricultura familiar tem se mostrado uma categoria socioeconômica essencial para o desenvolvimento devido à sua importância na produção de alimentos, diversificação das atividades produtivas, articulação com os mercados locais e promoção do equilíbrio ambiental. Além disso, a identificação dos movimentos sociais com essa categoria, em escala mundial, tem realçado sua posição como um elemento essencial para o desenvolvimento rural.

A discussão em torno do desenvolvimento rural é ampla, podendo este ser visto a partir de suas dimensões global e local. Na primeira, há um incentivo à modernização da pequena produção, estimulando o aumento na produtividade e a monoculturização vinculada às cadeias agroindustriais. Na perspectiva dos valores locais, há um ambiente de maior diversidade produtiva e sustentabilidade ambiental e cultural dos territórios. Todavia, essas dimensões não são totalmente excludentes no tocante às estratégias adotadas pela agricultura familiar, uma vez que os produtores são atraídos para a produção de commodities globais. Com isso, os ganhos proporcionados pelos grandes mercados não raro seduzem os agricultores familiares a alternativas estranhas às suas condições socioculturais e econômicas.

Nas décadas de 1950 e 1960, o tema do desenvolvimento era discutido a partir de uma perspectiva basicamente econômica. De acordo com Furtado (1961), o desenvolvimento econômico consiste na introdução de novas combinações de fatores de produção que tendem a aumentar a produtividade do trabalho. Assim, segundo o autor, foi criada a ideia de que desenvolvimento, estabelecido sob a

influência da “teoria do subdesenvolvimento”, acarretava reconhecer as limitações da agricultura como setor dinâmico e transformador, implicando numa dicotomia, ainda não superada, que contrapunha os processos modernizantes da indústria, majoritariamente urbana, aos sistemas agrícolas tradicionais, opondo de forma categórica o rural ao urbano.

Essas questões levaram ao entendimento de que o rural é, de certa forma, inferior ao urbano e conduziram ao próprio sentido de atraso e pobreza no campo.

Enquanto “desenvolvimento” identificava-se com progresso, modernidade, urbanização, industrialização, com uma população burguesa, o

“subdesenvolvimento” identificava-se com atraso, tradicional, rural, pobre, inculto e mestiço (GUIMARÃES, 2013). Segundo Veiga (1997), ao se utilizar a noção de

“desenvolvimento rural” supõe-se não somente sua desigualdade, mas uma defasagem ou descompasso entre os espaços urbanos e rurais. E mais, o desenvolvimento rural é parte integrante de uma única dinâmica sistêmica de desenvolvimento e não convém realizar essas divisões e pensar esses espaços separadamente.

Numa perspectiva histórica, o desenvolvimento inscrito nas agendas sociais foi transportado para o campo da política e passou a permear as expectativas e o jogo das disputas sociais a partir da década de 1950 (NAVARRO, 2001). Esse período foi marcado pelo processo de “Revolução Verde”, numa avalanche de transformações técnicas produtivas no campo em escala mundial, resultando numa homogeneização do método de produção agrícola, práticas agronômicas e uso de insumos industriais genéricos (GOODMAN et al.,1990). Durante os anos 80, as políticas inspiradas no modelo neoliberal enfraqueceram o papel do Estado, deixando de lado o tema do desenvolvimento rural da agenda das políticas sociais e econômicas. Apenas na década de 1990, o tema reaparece tanto na condução das políticas nacionais quanto nas orientações de organismos multilaterais.

Essa revisão das questões relacionadas ao desenvolvimento rural também ocorreu em função da necessidade de reorientação do protecionismo da Política Agrícola Europeia (PAC), que reconheceu, de um lado, os problemas criados pela agricultura intensiva e, de outro, a multifuncionalidade do espaço rural, papel no equilíbrio ecológico e suporte às atividades de recreação e preservação da paisagem (KAGEYAMA, 2004).

O debate sobre o tema trouxe à tona duas principais visões sobre desenvolvimento, uma centrada na globalização e outra baseada na localização e diversidade. Na primeira, a dinâmica das agriculturas nacionais está diretamente em linha com aparatos globais de regulação, na medida em que as estruturas produtivas tenderiam a ser dominadas por cadeias globais de commodities e sistemas alimentares. A segunda abordagem, em vez de valorizar as forças homogeneizadoras externas sobre as mudanças rurais, enfatiza os atores e as diversidades locais como responsáveis pela obtenção de alguma autonomia da agricultura e dos espaços rurais. (MIOR, apud KAGEYAMA, 2008, p.70).

Portanto, o desenvolvimento rural pode ser alcançado na medida em que aspectos relativos à sustentabilidade dos territórios, preservação dos valores culturais, produção de alimentos e preservação ambiental sejam prioritários. As diferenças entre essa visão e a do Banco Mundial estão nos termos de convivência entre o agronegócio e a agricultura familiar. Nesse sentido, ganha relevância a abordagem centrada nos territórios como referência para a análise do desenvolvimento rural.

Estratégias com enfoque territorial para o desenvolvimento rural ajudam na geração de políticas públicas, que podem trazer melhorias às regiões rurais. Como a heterogeneidade desses espaços dificulta a aplicação de um modelo único de desenvolvimento, o enfoque territorial releva cada espaço com suas condições próprias de desenvolvimento socioeconômico, cultural e ambiental.

Tendo como referência o espaço rural como território, a dimensão local do desenvolvimento ganhou maior relevância na literatura. De acordo com Schneider (2009, p.26), recentemente “esse tipo de perspectiva territorial do desenvolvimento rural recebe contribuições sistemáticas e vem sendo alimentada pelas discussões sobre a ruralidade, a territorialidade e o desenvolvimento”. Nessa mesma perspectiva, Abramovay (2006) identificou nos laços diretos entre atores sociais uma das razões para a formação de sistemas produtivos localizados, nos quais a análise sobre o meio vai além da agricultura numa dinâmica que envolve diferentes atores sociais e uma diversa gama de atividades articuladas entre si. Segundo o autor:

o estudo dos territórios sob o ângulo das forças sociais que os compõem é um convite a análises empíricas bem fundamentadas sobre sua constituição, mas abre caminho, para se compreender as mudanças que novas forças sociais podem imprimir à maneira como estão hoje organizadas (ABRAMOVAY, 2006, p.10).

Fligstein (2001), baseado em grande parte nos trabalhos de Pierre Bourdieu, considera essas regiões como campos em que se encontram protagonistas com interesses diversos, cuja composição é produzida pela distribuição das diferentes formas de capital. Nessa perspectiva, o Estado e as instituições assumem posição de destaque, promovendo mudanças e dinâmicas sintonizadas com as perspectivas de desenvolvimento local. No Brasil, os estudos orientados por essa abordagem tratam do alcance e dos aspectos evolutivos de políticas públicas em regiões especificas, com vistas a identificar as limitações e também as potencialidades econômicas locais para reorientar suas trajetórias de desenvolvimento.

Os territórios não são um conjunto neutro de fatores naturais e de dotações humanas capazes de determinar as opções de localização das empresas e dos trabalhadores, uma vez que eles se constituem de laços informais, modalidades não mercantis de interação construídas ao longo do tempo e que moldam certa personalidade e, portanto, uma das fontes da própria identidade dos indivíduos e dos grupos sociais.

A ideia central é que o território, mais que simples base física para relações entre indivíduos e empresas, possui um tecido social, uma organização complexa de elos que vão muito além de seus atributos naturais e dos custos de transportes e de comunicações. Há, portanto, uma teia de relações com raízes históricas, configurações políticas e identidades que desempenham um papel ainda pouco conhecido no próprio desenvolvimento econômico (ABRAMOVAY, 2000).

Por sua vez, Friedmann (2000) ressalta os aspectos físicos da natureza para definir a noção de território, caracterizado como bio região, a qual se especializa produtivamente segundo os ciclos dos elementos naturais. Esses sistemas locais se tornam, assim, partes da biosfera, sobre os quais o homem atua, alterando seus contornos originais. Ou seja, os territórios, definidos socialmente, demarcados pela atividade econômica ou pela divisão espacial de trabalho, resultam da ação do estado e dos mercados de um sistema global que os afasta de seus traços naturais.

Por essa razão, o desenvolvimento rural não deve ser entendido pelo limitado conceito de crescimento econômico, mas como um processo que envolve as dimensões econômica, sociocultural, política, institucional e ambiental (KAGEYAMA, 2008). Mais ainda, o rural não se resume somente ao agrícola, mas envolve outros aspectos que compõem o território, também importantes para o

desenvolvimento de uma região. Além disso, mudanças econômicas, tecnológicas, sociais, ambientais e institucionais que se acumularam ao longo da história precisam ser tratadas em conjunto quando do desenho e execução de políticas públicas para a agricultura.

Para Van Ploeg (2000), o desenvolvimento rural implica objetivos voltados à produção de bens públicos em sinergias com os ecossistemas locais, à valorização das economias de escopo sobre as economias de escala e à pluriatividade das famílias rurais. Trata-se de uma saída para as limitações e falta de perspectivas intrínsecas ao paradigma da modernização e ao acelerado aumento de escala e industrialização que ele impõe.

Em virtude do novo contexto agrícola e dos novos desafios para o Estado e para as políticas públicas, o debate sobre desenvolvimento rural tem apresentado maior repercussão. De acordo com Schneider (2007), a agricultura familiar teve destaque nesse período devido ao seu crescimento como categoria política, articulada ao movimento sindical dos trabalhadores rurais, acentuando a importância do papel do Estado para o meio rural na criação de políticas públicas para esse segmento social.

Como anotado acima, no âmbito global, há um incentivo à modernização da pequena produção, estimulando o aumento na produtividade e a monoculturização vinculada às cadeias agroindustriais. Já numa perspectiva dos valores locais, há incentivo à diversidade produtiva e à sustentabilidade ambiental e cultural dos territórios. Todavia, essas dimensões não são totalmente excludentes no tocante às estratégias adotadas pela agricultura familiar, uma vez que ela se articula a mercados globais ao mesmo tempo em que se engaja em modelos de produção sintonizadas com valores locais.

Nos termos de Kageyama (2008), o que dá sentido ao rural enquanto território socialmente construído e com papéis específicos na reprodução e desenvolvimento das sociedades é a relação complementar com as cidades, ou com o urbano, de maneira geral, e que ocorre geralmente através dos mercados (produção e consumo). Paralelamente, o desenvolvimento rural ganhou uma dimensão mais ampla ao envolver os aspectos relacionados à ruralidade e à territorialidade, com vistas à sustentabilidade socioeconômica e ambiental (SCHNEIDER, 2009).

No Brasil, tratando-se de políticas públicas para a agricultura, houve intervenções Estatais no processo de modernização agrícola e instauração do Complexo agroindustrial para quebrar o antigo padrão de expansão agrícola, fundado no uso extensivo de terra e força de trabalho, e, também, para viabilizar a transformação das forças produtivas na agricultura brasileira. O papel desempenhado pelo Estado nesse modelo de desenvolvimento foi de fomentador, por meio da formulação e execução de políticas públicas, tanto no nível setorial quanto macroeconômico, que estimulavam o modelo mundial de incentivo à produtividade e à exportação de commodities.

No entanto, para o setor da produção familiar, o resultado dessas políticas foi negativo, pois parte desse segmento ficou à margem dos benefícios oferecidos pelas políticas agrícolas, principalmente nos itens relativos ao crédito rural, aos preços mínimos e ao seguro da produção. Somente na década de 1990, houve reformulações nas políticas agrícolas que contribuíram para o desenvolvimento econômico da agricultura familiar brasileira. De acordo com Delgado (2009), foi nesse período que realmente se demarcaram os termos em relação ao futuro das relações entre economia e agricultura – sobre o papel da agricultura na economia – e sobre a apropriação do significado do Brasil rural e do desenvolvimento rural.

3 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A AGRICULTURA: O PAPEL DO ESTADO

Este capítulo tem por objetivo resumir os aspectos do processo de liberalização comercial do setor agrícola e seus impactos sobre o desenvolvimento rural. Privilegia-se, aqui, a ideia de que a ação estatal teve um papel determinante nos arranjos que foram ocorrendo no setor e nos caminhos escolhidos para o desenvolvimento. Busca-se apresentar, de maneira sintetizada, o relacionamento entre Estado, mercado e agricultura, que acabou por construir o que conforma o modelo atual de desenvolvimento da agricultura brasileira.

Em seguida, desenha-se a trajetória das políticas públicas para agricultura familiar no Brasil e como, influenciada por lutas e reinvindicações de diversos movimentos sociais, uma política voltada especificamente para a agricultura familiar, por meio do PRONAF foi criada. Ao fim, apresenta-se uma síntese do programa, as modificações ao longo de sua existência, as formas de acesso, os beneficiários e interfaces com a agricultura familiar, bem como as principais críticas à forma de operacionalização e distribuição dos recursos.