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À educação física e à prática desportiva sempre estiveram associadas a formação de valores éticos e morais e todo um conjunto de influências benéficas na formação da personalidade dos alunos. De alguma forma, esta associação, a par do dualismo filosófico que a própria designação educação física transporta, conduz a uma visão instrumental do desporto e das atividades físicas. Ou seja, a inclusão da educação física no curriculum aparece frequentemente justificada mais em função de valores educativos ou utilitários que lhe são extrínsecos do que a partir da consideração do valor próprio do seu conteúdo (Graça, 1997, p. 251).

Sob esse prisma, depreende-se, então, que ‘legitimar’ a Educação Física (EF)

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, como disciplina integrante de uma escola que se assume como instituição social no âmbito de uma sociedade democrática, é algo que requer lutas e intervenções em variadas dimensões. Compreender isso, é verificar que os valores extraescolares, sistematicamente, encontram eco e justificativas, que procuram pôr em xeque os princípios escolares e curriculares da disciplina em voga (Graça, 1997). O revés estaria em justificar a disciplina como puramente instrumental, inverdade que perdura na atualidade e leva o professor Jorge Bento a intervir e atestar: – “A Educação Física só é física na aparência!” (Informação verbal) [2]

.

Pontuação que nos instigou a ratificar que a Educação Física não é uma disciplina auxiliar das ditas convencionais (Matemática, Português, etc.); ela tem sua independência substancial na construção do Homem cultural, pluridimensional e simbiótico. Nesse sentido, a escola como instituição social deveria compreender que

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Para fins deste estudo, optamos por representar a Educação Física no contexto escolar pela abreviatura EF. No Brasil, esta abreviatura é utilizada para determinar a área do conhecimento da Educação Física de forma mais abrangente. Por isso, no decorrer deste texto, em citações que fazem menção à Educação Física escolar no Brasil, podemos encontrar abreviaturas que correspondam à literatura acadêmica brasileira, como EFe por exemplo.

[2] Fala do professor Jorge Bento, diretor, na época, da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. A

informação verbal ocorreu no dia 27 de novembro de 2015 na ocasião em que o catedrático presidia o júri de doutoramento em Ciências do Desporto do português Rui Manuel Flores Araújo na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto.

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a arquitetura desse Homem – superorgânico [3] – necessita extrapolar os espectros puramente matemáticos, linguísticos e físicos. Pois, “se a pedagogia compete autorizar os seres humanos a ir além das suas predisposições “naturais”, é seu dever facultar o “estojo de ferramentas” que a cultura desenvolveu para o efeito.” (Bruner, 2000, p. 37, grifo do autor). Interpretando Jerome Bruner (2000) chegamos à conclusão que é injusto beneficiar uma cultura e/ou “inteligência” (Gardner, 1983) em detrimento de outra.

Efetivamente, se pensarmos no “estojo de ferramentas” levantado pelo psicólogo estadunidense, nos confrontamos com um currículo que procura a homogeneização do processo ensino-aprendizagem. Essas considerações nos levaram a retroceder a um passado recente e a elencar um estudo que acreditamos não responder por completo as questões até aqui apresentadas, mas sinaliza uma das demandas por nós perseguidas, os discentes. O artigo de Zélia Matos, Paula Batista e Natividade Israel (2004) salienta que fatores como: ir à escola e estudar estão entre as dez coisas que menos dão prazer ao alunado português no seu quotidiano, reforçando assim a negativa da indagação. Segundo as autoras portuguesas, essa repulsa estaria sendo potencializada, exatamente, pela forma homogênea com que a escola, na figura dos seus agentes, vem enxergando os discentes nas últimas décadas.

Diante disso, não soaria pretencioso conjecturar que um dos efeitos colaterais dessa desmotivação esteja associado à pressão do sistema de ranqueamento e à forma como a escola vem ajustando-se a essa situação. Fernando Cardoso (2014) expõe que “esta é a ‘Escola’ em que a Escola se tem vindo a transformar e, por isso, há cada vez menos professores a ‘poder’ preocupar-se com os ‘porquês’ dos alunos e com as dificuldades que sentem e que são próprias da idade da adolescência.” (p. 5, grifo do autor). Com base nisso, atrevo-me a dizer que a escola transformou-se no que Michael Young (2007) intitula de: linha de produção do “conhecimento dos

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* “Assim, a aurora do social não é um elo numa cadeia, nem um passo num caminho, mas um salto para outro plano. Pode-se compará-lo à primeira ocorrência da vida no universo até então sem vida, ao momento em que uma das infinitas combinações químicas se operou, produzindo o orgânico e fazendo com que dêsse momento em diante houvesse dois mundos em vez de um. As qualidades e os movimentos atômicos não interferiram quando êsse aparentemente trivial acontecimento ocorreu; a majestade das leis mecânicas do cosmos não ficou diminuída, mas algo de novo foi inextinguivelmente acrescentado à história dêste plano.” (Kroeber, 1949, p. 278). Em resumo, o conceito de superorgânico procura salientar a evolução social que caracteriza o progresso da civilização, onde a cultura é vista por Alfred Kroeber (1949) como o agente potencializador desse homem sui

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poderosos” [ 4 ]

. Visto que disciplinas de cariz mais prático (Educação Física, Educação Musical e as Artes) perdem espaço, sobretudo valor enquanto conteúdo curricular [5].

O caso do Brasil (Rio de Janeiro) não é muito diferente. A denúncia parte da literatura [ 6 ] e da nossa experiência como pesquisador social, onde em estudo recente, convivemos – em parte – com esse modelo de ‘Escola’ descrito por Fernando Cardoso (2014). Em verdade, experienciamos fenômenos interessantes no tocante desta tese, onde uma escola obteve índices positivos enquanto sua coordenação reconhecia as potencialidades da Educação Física: números que declinaram com a substituição dos agentes diretivos e a reformulação do projeto político pedagógico, que valorizava a EF e suas dimensões. Ou seja, fatores que legitimam a importância das disciplinas “não convencionais para o processo, a necessidade da interdisciplinaridade para o ensino e, principalmente, a relevância que a EFe, o esporte e a arte teriam na aprendizagem daqueles que lá estiveram e ainda estão, os alunos.” (Ferrari, 2014, p. 118, grifo do autor).

[4] * Para Michael Young (2007), o “conhecimento dos poderosos” é definido por quem detém o conhecimento.

Historicamente e mesmo hoje em dia, quando pensamos na distribuição do acesso à universidade, aqueles com maior poder na sociedade são os que têm acesso a certos tipos de conhecimento; é a esse que eu chamo de “conhecimento dos poderosos”. [...]. Assim, precisamos de outro conceito, no enfoque do currículo, que chamarei de “conhecimento poderoso”. Esse conceito não se refere a quem tem mais acesso ao conhecimento ou quem o legitima, embora ambas sejam questões importantes, mas refere-se ao que o conhecimento pode fazer, como, por exemplo, fornecer explicações confiáveis ou novas formas de se pensar a respeito do mundo.” (p. 1294, grifo do autor).

[5] * “Com a publicação do Decreto-Lei nº 139/2012 de 5 de julho (Ministério da Educação e Ciência, 2012b), as

escolas passaram a ter autonomia para organizar os tempos letivos na unidade (de 45 ou 50 minutos) que considerassem mais convenientes. Às escolas que optaram por unidades de 50 minutos, foi-lhes permitido fazer a redistribuição do tempo curricular sobrante das diferentes disciplinas, o que se traduziu na perda de tempos letivos para a disciplina de Educação Física (entre outras disciplinas) e um acréscimo de tempos para as que estão sujeitas a exame nacional.” (Cardoso, 2014, p. 4).

[6] * Dermeval Saviani (apud Phaschoalino & Fidalgo, 2011, p. 114) evidencia que: “Em lugar de aplicar provas

nacionais em crianças de 6 a 8 anos, o que caberia ao Estado seria equipar adequadamente as escolas e dotá-las de professores com formação em cursos de longa duração e salários compatíveis com seu alto valor social. [...].”. * Segundo Álvaro Hypólito (2008), “o modelo gerencialista parece ser hegemônico nas políticas educacionais, com seus índices de eficiência e produtividade, provas de avaliação em todos os níveis, rankings e escolas, e tantos outros indicadores para orientar o financiamento das políticas de educação ou, melhor, das políticas gerenciais de educação. O que cada vez mais temos experimentado são modelos e mais modelos de gestão, e o que não vemos melhorar é a educação. Algo parece não se encaixar nesses discursos gerencialistas.” (p. 77, grifo do autor).

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Essa relação (ancestralidade) [7] lusófona é um dos motes do capítulo, “A

Sustentabilidade dos Sistemas Desportivos e o Desporto na Escola”. Nele, José

Sarmento, Flávia Bastos e Carla Luguetti (2014) aproveitam o espaço disponibilizado por Isabel Mesquita e Jorge Bento e debruçam-se sobre questões

que envolvem o liame Desporto-Educação Física-Portugal-Brasil. Logo, a primeira

observação que decorre desse estudo é que a palavra complexidade é empregada sistematicamente, o que demonstrou quão abstruso é o cenário luso-brasileiro no que tange a EF e suas distintas constelações.

Outra questão abordada pelos autores, que acreditamos ser de suma

importância para a nossa pesquisa, é o momento socioeconômico de ambos os

países, fato que segundo os teóricos pode vir a dificultar a desenvoltura do Desporto Escolar (DE), da Educação Física como parte integrante e fundamental da escola. Essa preocupação torna-se ainda mais alarmante quando somos apresentados aos

números que as circundam. Sob essa ótica, José Sarmento, Flávia Bastos e Carla

Luguetti (2014) enfatizam que o montante investido pelos Estados esporadicamente

excede “1% do respectivo PIB. No caso de Portugal e do Brasil este valor fica

mesmo aquém deste 1% — assim sendo, os valores destinados ao Desporto na

Escola são muito inferiores à percentagem referida anteriormente.” (p. 339-340).

É interessante observar como essas questões socioeconômicas aparecem reiteradamente em outras pesquisas. No livro “Favelasport: estudos sobre o

fenômeno esportivo em comunidades do Rio de Janeiro”, Carlos Silva (2013)

escreveu um capítulo intitulado “Mídia, legados esportivos e olimpíadas no Brasil”, onde deixa claro que os investimentos na educação brasileira são irrisórios.

[7] Essa relação pode ser rastreada na esquadra de Pedro Alvares Cabral, nos índios, anônimos, que no Brasil estavam.

Na língua portuguesa, no Tupi-guarani, no modo de vestir, no Pau-Brasil, na paixão pelos doces e no pequeno-almoço. Rastreada em Dom. Pedro II e na Princesa Isabel, em Zumbi dos Palmares e na tão pouco falada Dandara. Na figura de Jamelão, Eusébio, Cartola, Eça de Queirós, Drummond e Camões. Descortinada nos versos de Cecília Meirelles, Fernando Pessoa, Monteiro Lobato e Saramago. No concreto armado de Niemeyer, na resiliência de Cristiano Ronaldo, na perícia de Senna, na genialidade de Pelé e Nuno Gonçalves. Na coragem de Tiradentes, na inteligência de Pedro Nunes, na simpatia de Carmem Miranda, no pioneirismo de Santos Dumont e na regionalidade de Bimba e Paulo Freire. Ou seja, rastreada na ancestralidade (cultura) do Fado, do Samba, da Feijoada, do Bacalhau e, sobretudo, da Educação Física e do Desporto que tanto nos une.

No cenário da tese, essa ancestralidade pode ser rastreada na obra “Educação física e desporto: relação Brasil

Portugal”. Rastreada na vida de Faria Junior, na veia poética de Jorge Bento, no legado de Manoel Tubino e

Paulo Cunha e Silva. Na sátira de Medina, na pedagogia de Amândio Graça, no casamento (in)feliz de Valter Bracht e na contundência de Isabel Mesquita. Revelada no posicionamento de Celi Taffarel, na psicologia de António Manuel Fonseca e literalmente na luta do professor Go Tani. Na fisiologia de Farinatti, no futebol de

Júlio Garganta, na sustentabilidade de Osborne, na estatística de José Maia, na violência de Santos, na gestão de

Carlos Silva e no olimpismo de Capinussú. Isto é, rastreada na ancestralidade da cultura corporal, do jogo, do esporte, da dança, da luta e porque não dizer, das complexas relações que esses e outros profissionais encontram no contexto da Educação Física e do Desporto.

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Lançando mão de dados do fórum do jornal Lance, o teórico repercutiu que um número vultoso de colégios públicos do município do Rio de Janeiro sequer possui espaços destinados a prática da Educação Física. “De acordo com os dados apresentados, em 2008, dos 1.781 colégios públicos da prefeitura do Rio de Janeiro, 803, o que equivale a 45%, não tem instalação esportiva.” (Silva, 2013, p. 85).

Uma pesquisa que acentua a exposição de Carlos Silva (2013) é a tese de doutoramento, “A escola perante o sedentarismo e a obesidade. Análise das

políticas públicas escolares na cidade do Rio de Janeiro”. Alex Almeida (2012),

assim como Carlos Silva (2013), denuncia que, um dos obstáculos das aulas curriculares de Educação Física, da relação professor-aluno e do processo ensino- aprendizagem é o descaso; a inadimplência do Estado-nação com a sociedade-civil fluminense. Segundo ele, a Educação Física, como disciplina curricular obrigatória, “tem sido negligenciada nas escolas brasileiras, especialmente as públicas, pois, entre outras limitações, de cada cinco (05) escolas apenas uma (01) tem equipamento para a prática de atividades desportivas.” (p. 55). Alarmante, não é?

São por esses e outros motivos que essa tese apresentou-se como uma oportunidade de pesquisar duas culturas complementares de países irmãos e justificou-se pelo ensejo de evidenciar atmosferas distantes, porém complementares (Bento, 2014a). Despertou daí a relevância da investigação, já que a essência dessa tese doutoral emergiu diante da possibilidade de averiguar duas instituições que procuram preservar o lugar da Educação Física em meio à contemporaneidade. O que não é fácil! [8]

[8] * Segundo Zélia Matos (2014), “o déficit de compreensão da importância real da EF no processo de educação

e desenvolvimento da pessoa, e que a torna tão receptiva ao que lhe anuncie um possível reforço do seu estatuto e reconhecimento social, tem causas históricas, filosóficas e culturais tão antigas que, neste tempo de mudança, em que nos devemos abalançar na prospecção de novos significados e de novas normas para orientarem a EF na escola, sentimos que são pouco compreendidos os fundamentos que lhe ditaram o lugar no sistema educativo, bem como a forma como historicamente se desenvolveram (ou não) os argumentos teóricos da sua justificação.” (p. 162-163).

* De acordo com Amândio Graça (2014b), “a educação física, como área de matéria do currículo escolar, não é uma realidade monolítica, é um terreno partilhado e disputado por tradições, comunidades de prática, retóricas de legitimação e, ciclicamente, atravessado por movimentos de renovação de discursos e práticas. A educação física é pois um mar alimentado por fontes e cursos de água com os mais variados caudais. Por míngua dos caudais, por falta das chuvas e por evaporação das águas, o mar pode regredir e no limite desaparecer. Importa, por isso, estar atento aos discursos, às fontes de legitimação da educação física, à sua sustentabilidade, ao seu valor educativo e ao seu contributo para o revigoramento da área e da sua missão formativa.” (p. 111-112).

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