que há um preconceito muito arraigado.
É como se transformasse o intelectual no
proletário da era pós-internet. Ninguém
diz a um banqueiro que ganha milhões
que, para o bem comum, deveria abrir
mão de suas propriedades e que sua
família não poderia herdar o patrimônio
que ele construiu durante a vida
mance, eu não sigo uma regra muito rígi- da em relação aos gêneros. Meu conto era uma espécie de romance concentrado, de sinopse de romance em vez de conto realmente. O romance é um gênero mais aberto, sem muita restrição, mas o meu é meio esquisito, à minha maneira, não se- gue um modelo tradicional. Não são lon- gos, são livros curtos, às vezes se misturam com ensaios.
O seu processo de criação não segue regras, cada vez é de um jeito?
Cada vez é de um jeito. É totalmente indisciplinado. Quando tenho possibilidade de fazer de forma regrada, funciona muito bem, mas em geral não tenho horário para trabalhar. Tem dias que não escrevo nada, em ou- tros escrevo muito. O per- sonagem muda conforme o processo. Quando parto de um personagem, na ver-
dade, é mais fácil o processo que vem em seguida, mas em geral parto de uma ideia, uma situação, uma imagem, raramente é o personagem que inicia o processo. O livro que estou escrevendo agora começou com um personagem e percebo que é muito mais natural, mas não é regra para mim. Pretende voltar a lançar contos?
Não está nos planos, mas também não está fora. O prazer da literatura é poder fa-
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zer o que quiser, escrever contos que não parecem contos, romances estranhos, tudo é possível.
A internet banalizou a escrita?
A internet é um instrumento, tudo de- pende do que se faz com ela. A sociedade de massa pós-internet serve muito bem a certos tipos de produção cultural, como cinema e música pop, pode ser enriquece- dora, mas a literatura tem uma resistência. As pessoas estão tentando forçar a barra para a literatura se tornar cultura de massa, até por questões comerciais e de mercado. Nesse sentido, pode-se empobrecer a lite- ratura, criar um modelo único, comercial e mais palatável por razões extraliterárias que têm a ver com massificação.
Com relação ao direito autoral e acesso irrestrito a obras na internet, como o Goo- gle pretendia fazer, como fica o trabalho intelectual?
Há uma certa hipocrisia em relação ao direito autoral no que se refere ao escritor. A produção intelectual, sobretudo num país como o Brasil, dá um retorno muito peque- no, não é respeitada como trabalho de fato. Achar que se deve abrir mão dos direitos autorais da produção intelectual mostra que há um preconceito muito arraigado. É como se transformasse o intelectual no pro- letário da era pós-internet. Ninguém diz a um banqueiro que ganha milhões que, para o bem comum, deveria abrir mão de suas propriedades e que sua família não poderia herdar o patrimônio que construiu duran- te a vida. É curioso eu, tendo optado por ser escritor, que meus filhos não possam herdar os direitos dos meus livros, que é o
pouco que fiz na vida. Por que não podem herdar a possibilidade de capitalização da minha propriedade intelectual uma vez que vivemos num mundo capitalista? Ninguém diz para acabar com a propriedade privada, por que o trabalho intelectual não produz propriedade privada também? Por que meu livro não é meu? Por que eu abrir mão do meu livro vai ajudar
mais a combater a fome do que um banqueiro desistir do direito sobre a propriedade que cons- tituiu ao longo da vida? Só reitera o preconceito em relação ao trabalho intelectual.
É possível viver de lite- ratura?
Não, da literatura que eu faço não. O Paulo Coelho provavelmente, mas o que eu escrevo não.
Disponibilizar tudo na in- ternet seria um recurso para aumentar o presti- gio de alguns escritores por número de cliques?
Acho que a internet pode ser um meio de- mocrático, depende de onde está inserido. No
mundo ocidental tem usos ambíguos. Em relação à literatura, se diz que tudo está disponível na internet, mas o que se aces- sa é o que é mais visto, é uma reiteração, uma reprodução do mesmo. Ninguém
acessa o que é exceção. Esse é o princípio do mercado e da internet também. Não se procura o que ninguém vê, só se tem acesso ao que todos veem, é o que mais aparece, a primeira coisa que vem no Goo- gle. Tem um princípio que elimina a pos- sibilidade de chegar à exceção, então há o risco de reiterar o mesmo para sempre. Acho que a medida do mais visto não deveria ser parâmetro, mas é difícil, pois a internet está baseada nisso. Ela funciona por uma lógi- ca primária da cultura de massa. Tem uma re- dundância na lógica de organização do negó- cio. Eu vivo na internet, mas acho que ela pode ser criticada. Houve um momento de ilusão e fantasia com relação à internet como se fosse inquestionável e a de- mocracia tivesse che- gado finalmente para salvar o mundo das injustiças do capitalis- mo. O curioso é que se revelou que a in- ternet está na mão de grandes corporações capitalistas como Goo- gle, Yahoo e Facebook, que, embora sejam organizações jovens e tenham princípio “libertário”, reproduzem o mesmo raciocínio capitalista de qualquer grande corporação. É um instrumento, tudo depende de como se usa. 33
FO TOS: CAMILA CUN HA