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Acionando noções: performance e performatividade

Em primeiro lugar, para que se promova a discussão, é importante elucidar a persistência de uma estreita relação entre os termos “performance”, “performativo” e “performatividade”. Apesar de focalizarem propriedades distintas, esses conceitos não são excludentes ou opostos, mas interagem entre si e operam de modo imbricado, fazendo com que a explicação de um acabe por abarcar a compreensão de outro e vice-versa. Por essa razão, este tópico busca salientar a relação de diferença e contato mútuo entre essas categorias sem compartimentá-las em subdivisões ou seções teóricas apartadas. Ademais, devido ao caráter fluido e escorregadio dessas acepções, este texto tenta apontar alguns caminhos para a compreensão dos termos a fim de construir um espaço em que essas formulações possam transitar e ser realçadas, evitando definições que cristalizem suas particularidades e impeçam seus transbordamentos.

A noção de performance tem se popularizado nos últimos anos por sua transdisciplinaridade e energia renovadora capaz de desestabilizar o cerne ontológico de uma gama de conceitos em relevo atualmente. Dentre eles, as ideias de sujeito, representação e realidade têm sido reiteradamente reorganizadas por meio dos estudos concentrados na performance como orientação ou ponto de partida. Enquanto alguns estudiosos propõem que tomemos as origens da performance a partir dos movimentos de vanguarda do início do século vinte (dadaísmo e surrealismo, como exemplos), outros sugerem que a performance é tão antiga quanto a prática ritualística, como aponta Eleonora Fabião (2009) . Uma vez que o termo traz embutida uma série de25 interpretações, este texto evitará uma determinação reducionista de seus contornos, procurando, antes, delinear seu campo de manifestação, com o propósito de nos ajudar a reconhecer algumas de suas particularidades.

As performances — sejam de ordem ritualística, de entretenimento, ou de arte, por exemplo — podem marcar ou desmanchar identidades, contar estórias e remodular o corpo, como explica Richard Schechner (2006). O autor retoma as formulações de Victor Turner (1982) para desenvolver a concepção de performances 26 como “comportamentos restaurados” (SCHECHNER, 2006, p. 29) , duas vezes27 experenciados, para os quais as pessoas treinam e ensaiam, ainda que de maneira inconsciente, em certas situações. A vida cotidiana, para citar caso análogo, requer anos de prática e treino de uma determinada porção de comportamentos culturais, de apreensão de modelos socialmente construídos e atuação de papéis reajustados diariamente na esfera pública. Nesse sentido, a performance pode ser encarada tanto como um processo quanto como um objeto ou produto, ou seja, algo criado ou

25 Considerando colocar a performance em perspectiva histórica em detrimento de enquadrá-la

teoricamente, a autora explica que a performance trata justamente de desnortear classificações e desconstruir modos clássicos e tradicionais de recepção e produção artística. “Trocando em miúdos: tentar definir a performance não é apenas contraditório ou redutor, é mesmo impossível. Definir performance é um falso problema” (FABIÃO, 2009). Os trechos são retirados de uma entrevista concedida ao jornal Diário do Nordeste. Ver:

http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/caderno-3/definir-performance-e-um-falso-problem a-1.281367​.

26Em seu livro​From Ritual to Theathre: The Human Seriousness of Play ​(1982), o autor britânico Victor

Turner apresenta um estudo das maneiras pelas quais a performance pode ser apreendida, em especial no campo da antropologia, desenvolvendo os conceitos de “drama social” e “roteiro”, os quais operam no sentido de relacionar certos tipos de processos sociais com os dramas dos palcos do teatro.

produzido dentro e por meio de um conjunto de operações, mas também como o que dele sobra, seja enquanto memória ou materialização.

A performance, entretanto, não se limita a repetições miméticas. Ela compreende a possibilidade de mudança, de crítica e atualização dos padrões de repetição, oscilando entre a conservação e a inovação. Isso porque o próprio fazer da performance está ancorado à operação de um dos mais significativos conceitos irradiados pelos Estudos da Performance: o de ​performatividade​. Em outras palavras, a performatividade é a propriedade fundamental da prática da performance, qualidade que a configura para ser o que aquilo que ela é. Mas de onde exatamente decorre essa formulação? Não se pretende localizar um sentido original ou mais correto de utilização do termo — além do mais, como veremos, é evidente a heterogeneidade de formas que a expressão “performatividade” assume no texto acadêmico —, mas seguir as pistas conceituais que nos levam a pensar a performatividade como uma força que desestabiliza referentes e opera transformações na realidade.

Foi o filósofo e linguista John Langshaw Austin quem cunhou o termo “performativo”. Ele introduziu essa noção no campo da filosofia analítica no ano de 1955, numa série de conferências ministradas na Universidade de Harvard, as quais foram publicadas em forma de livro anos mais tarde. Em “ ​How to do things with words​”

(1962), Austin desenvolve a teoria dos ​atos de fala a partir de uma elaboração teórica que mudaria os rumos dos estudos da linguagem: enunciados linguísticos não apenas descrevem coisas ou “servem” para fazer declarações, mas, em alguma medida, efetivamente produzem estados, executam ações e geram condutas, como no âmbito dos testemunhos, casamentos, batizados ou acordos, nos quais são empregadas frases como “eu prometo”, “eu aposto”, “eu sou”, entre outras. A oração “eu te perdoo”, por exemplo, efetiva a ação que seu verbo denota, ultrapassando o mero relato de um fato. Fundamentando uma série de classificações, o autor nomeia esse segundo tipo de sentenças de ​enunciados performativos​, ou, de modo abreviado, ​performativos (AUSTIN, 1962, p. 06) , em contraste ao primeiro grupo referido, composto por 28

28Do original: ​“I propose to call it ‘performative sentence’ or a performative utterance, or, for short, ‘a performative’​. O autor faz uso do termo ​performative ​com base no verbo da língua inglesa ​to perform​, frequentemente utilizado para designar ação — e que origina também a palavra ​performance​.

proferimentos ​constatativos .29 ​Em suma, os performativos agiriam sobre o mundo, criando novas realidades e apontando para estados originais. Assim, seria impossível classificá-los em verdadeiros ou falsos, uma vez que carregam uma força de invenção constitutiva.

No decorrer de suas conferências, entretanto, Austin gradativamente articula a dissolução da dicotomia constatativos/performativos, dando lugar a uma divisão em três categorias: atos locucionários, ilocucionários e perlocucionários . Com essa 30 catalogação, ele tentava demonstrar que, diferentemente de sua formulação inicial, o falar está sempre imbricado ao agir, levando em consideração o caráter produtor intrínseco a quaisquer atos de fala. Apesar de tomar a performatividade em sua capacidade de desmanchar oposições binárias, o autor, à época, defendia que os atos performativos da fala poderiam, ou não, ter êxito — ser “felizes” ou “infelizes”, em termos austinianos — a depender das circunstâncias sociais e institucionais envolvidas no contexto da ação.

Diante da lista de critérios para medir a probabilidade de “infelicidade” de performativos elaborada por Austin , o autor francês Jacques Derrida (1991), na31 condição de entusiasta da obra austiniana, compõe algumas críticas de cunho complementar às ideias do filósofo inglês. Derrida argumenta que as análises de Austin requerem exaustivamente um valor de contexto, e até de um contexto teleologicamente determinável, “buscando, em vão, fixar a pertinência, a pureza e o rigor” de categorias que o performativo embaralharia em sua realização ​per se​, devolvendo a comunicação performativa ao lugar de comunicação estritamente intencional (DERRIDA, 1991, p. 27-28). Com o intuito de escapar da tentativa de totalização empreendida nas

29 No original, Austin utiliza o termo ​constative​, para denominar o primeiro grupo de proferimentos.

Embora em determinada parte dos trabalhos acadêmicos produzidos no Brasil acerca da teoria dos atos de fala apareça o termo “constativo” para mencionar as expressões presentes na obra referida, opto por utilizar o vocábulo “constatativo” em diálogo com a tradução realizada pelo professor Danilo Marcondes de Souza Filho, publicada em 1990 pela editora Artes Médicas Sul.

30 De acordo com Austin, todo ato de fala é simultaneamente locucionário, ilocucionário e

perlocucionário. A primeira qualidade demarcada na classificação diz respeito à própria ação de enunciar. A segunda designa o que se realiza ​na linguagem, o efeito de enunciação esperado. Já a terceira, trata do que resulta da ação, que se realiza ​pela linguagem. Para mais detalhes, conferir a oitava conferência de Austin (idem, p. 94), na qual o autor aprofunda a questão.

31 Austin elabora uma série de condições necessárias para o funcionamento “feliz” de proferimentos

performativos, “sem reinvindicar para tal esquema qualquer caráter definitivo”. Dentre os requisitos, por exemplo, há a exigência de procedimentos convencionalmente aceitos e, subsequentemente, contextos adequados ao procedimento específico invocado (ibid., p. 14-15).

classificações de Austin e, ao mesmo tempo, sobrelevar a originalidade anti-logicista do pensamento do autor inglês, Derrida, por conseguinte, sugere os conceitos de

iterabilidade​ e ​citacionalidade​.

Relacionando a repetição à alteridade, o autor explica que o primeiro termo deriva de ​itara​, palavra em sânscrito utilizada para denominar “outro”, evidenciando a particularidade de um signo ser sempre outro em sua própria constituição e funcionamento ao comportar a mudança e a possibilidade de alterar-se a cada repetição

. A citacionalidade, por sua vez, indicaria a propriedade de um signo que o permite

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deslocar-se da conjuntura de enunciação, “romper com todo o contexto dado” e “engendrar ao infinito novos contextos, de modo absolutamente não-saturável” (ibid, p. 25). Desse modo, Derrida argumenta que tais características são os componentes a partir dos quais os performativos da fala produzem múltiplos efeitos e rupturas.

É nesses dois conceitos (ou ​quase-conceitos ) que Judith Butler (2003)33 encontra suporte para desenvolver a concepção de ​performatividade de gênero​. Abandonando a ideia de performatividade exclusivamente ligada a um compromisso firmado entre falantes por meio da linguagem verbal, a autora está mais interessada em discutir uma teoria da ação cuja radicalidade se sustenta na perspectiva linguística que considera o sujeito objeto de seu próprio fazer . A autora, desse modo, compreende o 34 gênero de modo não estritamente correlacionado à biologia, ao “sexo”, ou a uma estrutura ontológica, mas como uma “identidade tenuemente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos” (BUTLER, 2003, p. 200). Nesse sentido, o gênero (tal como outras formas identitárias) é um ato, cuja ação requer performances, ou práticas corporais, repetidas e ensaiadas na esfera

32Segundo o autor, “toda escrita, deve, pois, para ser o que ela é, poder funcionar na ausência radical de

todo destinatário empiricamente determinado em geral.” (idem, p. 19). Ele busca, a partir de suas formulações, relacionar a escrita e os atos de fala mais a um sentido de diferença do que de representação. Dessa maneira, toda repetição é, para Derrida, a repetição da diferença.

33 O termo “quase-conceito” é utilizado em Derrida para sublinhar a impossibilidade de o pensamento se

organizar em torno de conceitos homogêneos, universais e fechados em si mesmos, como lembra a pesquisadora Denise Dardeau (2011).

34 Como pontua a professora Joana Plaza Pinto (2013), essa reflexão de Butler alinha-se à interpretação

derridiana do performativo e vai de encontro ao projeto filosófico do escritor norte-americano John Searle, intérprete “oficial” de Austin nos Estados Unidos. Ao contrário deste, que “procura dar continuidade à obra de Austin nos moldes do valor de verdade proposicional”, a autora “segue seu percurso com a autonomia crítica de quem contesta as formas tradicionais de filiação (seja o parentesco seja a teoria), fazendo suas perguntas a Austin para dar corpo à sua própria noção de performatividade e de vulnerabilidade à linguagem.” (PINTO, 2013, p. 36).

pública . A ideia de performatividade no que concerne ao gênero, assim, relaciona-se às35 propostas de Derrida na medida em que o gênero, para Butler, deve ser tomado como prática iterativa e citacional, demarcando atos corporais que engendram identidades em sua operação mesma, materializando formas não pré-existentes a cada repetição.

É importante mencionar que, além de fazer referência ao pensamento de Derrida, a noção de performatividade nos trabalhos da autora emerge a partir do engajamento de Butler com os estudos de Michel Foucault (1979) acerca do poder e de 36 sua inscrição nos corpos . De acordo com pensamento de Butler, não se trata de avultar37 uma forma de (re)criar formas e identidades livremente, visto que não seria possível pensar a performatividade de gênero completamente desassociada das relações de poder que também atuam como ações reiteradas e materializadas nos corpos. Entretanto, devido à sua natureza iterável e citacional, a performatividade guarda em si o potencial de subversão política das normas regulatórias — e de perpetuar a eterna constituição do mesmo — ao reinaugurar o próprio contexto em sua atualização, isto é, na performance. Portanto, retomando a formulação produzida do início deste trabalho, “a performatividade é da ordem do devir e do virtual”, por certo, mas apenas na medida em que o poder também o é.

Ter conhecimento do panorama articulado acima nos auxilia com esta pesquisa visto que possibilita que compreendamos a concretização de um novo estado, seja atrelado ao caráter performativo de atos de fala ou do cerne criativo de práticas 38 corporais, por meio da ação da performance. Ainda que na obra de Butler a performatividade esteja relacionada à dimensão do gênero e da sexualidade na esfera social, existem linhas de diálogo com o que o que este texto propõe refletir, posto que a

35 Para desenvolver seus argumentos acerca da performatividade de gênero, Butler destaca as paródias

realizadas pelas ​drag queens​: “Ao imitar o gênero, o [fazer] ​drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero – assim como sua contingência” (idem, p. 196).

36 Após estudar rigorosamente instituições “marcadas pela disciplina” como quartéis, escolas e prisões,

Foucault constata que o poder está por toda parte como algo capilarizado: “(...) Em outras palavras, captar o poder na extremidade cada vez menos jurídica de seu exercício.” (FOUCAULT, 1979, p. 182).

37Em entrevista (1994), Butler afirma que delineou a noção de performatividade, com base nos escritos

de Derrida acerca de Austin, para elucidar questões que a autora considera pouco desenvolvidas por Foucault, como o discurso na constituição do sujeito e o poder discursivo na produção do corpo material.

38 Se anteriormente o vocábulo “performativo” aparecia neste capítulo apenas como forma abreviada de

aludir ao conjunto de operações constitutivas investigadas inicialmente por Austin, próximo da classe dos substantivos, aqui, por outro lado, seu uso circunscreve a qualidade criativa de tais operações. Assim, esse termo será utilizado numa variedade de formas e construções cognatas, como no texto do autor estadunidense.

dissertação levanta indagações acerca da fabricação de um novo corpo a partir das autoinscrições de Naomi Kawase em sua obra autorreferente, cujas imagens admitem a noção de performatividade como núcleo de seu funcionamento. No argumento deste capítulo, esse desenho conceitual nos assiste a compreender alguns pontos do imbricamento e mútua influência entre as esferas da performance e da performatividade.

* * *

Certo, a estratégia da performance, como aponta Fabião (2009), é mesmo resistir a definições. Enquanto gênero artístico, a performance não utiliza materiais ou mídias específicas, não fixa formas temporais ou espaciais e não estabelece modos de documentação ou critérios de recepção. Entretanto, como já foi mencionado, há fatores primordialmente comuns entre peças de performance. Algumas das tendências gerais envolvem acima de tudo o corpo como materialidade ou tema das obras. São elas: o entrelaçamento e a investigação das fronteiras entre dicotomias como arte e vida, sujeito e objeto, presença e ausência e verdadeiro e falso, a atualização de dramaturgias autorreferentes e experimentações em torno das qualidades de presença do espectador.

E por seguir caminhos que desestabilizam dicotomias e sistemas instituídos, a performance é também epistêmica. Ora, como explica Diana Taylor (2013), em primeira instância a performance constitui o objeto ou processo de análise dos estudos da performance. Ou seja, as muitas práticas e eventos — danças, rituais, comícios políticos, funerais — que envolvem comportamentos ensaiados, apropriados para a sua ocasião ou que embaralham convenções são geralmente separados de outros à sua volta para constituir focos de análise distintos. Desse modo, entender esses itens ​como performances sugere que ela também funciona como uma epistemologia. Portanto, num segundo plano, a performance também monta a lente metodológica que permite que pesquisadores analisem eventos como​ ​performances.

Assim, apesar do âmbito extraordinariamente amplo de comportamentos abrangidos pelos termos “performance” e “performatividade” e suas derivações — que vão desde uma determinada dança até uma ação mediada tecnologicamente, indicando múltiplas camadas de compreensão — este texto propõe que reconheçamos, na esteira

de Taylor, “as interconexões profundas entre todos esses sistemas de inteligibilidade e as fricções produtivas entre eles” (TAYLOR, 2013, p. 27).

Como sumariza Fischer-Lichte (2008), a performatividade encontra na performance um modo de ganhar uma forma atual, engendrando novas realidades ao manifestar-se pelo intermédio do caráter constitutivo dos atos performativos (FISCHER-LICHTE, 2008, p. 29). A partir de um estudo pormenorizado de diversos trabalhos de performances , a autora propõe que consideremos uma39 ​estética do

performativo nas artes​, ressaltando o teor crítico e transformador evidente em diversas práticas artísticas desde a década de sessenta do século passado, como nos trabalhos de John Cage, na música, do grupo Fluxus, nas artes visuais, Edith Clever, na literatura, e Peter Handke, no teatro (idem, p. 20).

Retomando a linha de pensamento de Massumi a respeito dos afetos, Del Rio (2013) elabora, ainda, que o corpo que performa se apresenta como uma “onda de choque afetiva” ao público, o evento mesmo que transforma os afetos numa materialidade visível e palpável. “Colocando de outra maneira, a performance envolve a expressão e a percepção dos afetos no corpo” (DEL RIO, 2013, p. 10) . Propomos, 40 logo, aproximar tal ideia ao arquivo cine-performativo de Naomi Kawase, em que as performances foram elaboradas na medida em que eram filmadas e vice-versa.