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O acolhimento da compensação ambiental ex ante no Direito da União Europeia 4 O acolhimento no Direito português: Rede Natura 2000 (e outras áreas classificadas?)

REVISITAR UM TEMA ∗

3. O acolhimento da compensação ambiental ex ante no Direito da União Europeia 4 O acolhimento no Direito português: Rede Natura 2000 (e outras áreas classificadas?)

5. Quatro (+ 1) casos dos tribunais portugueses.

Apresentação Power Point Vídeo

Nota prévia

Sobre a falsa singularidade de “uma” nota prévia, escondem-se um agradecimento e três esclarecimentos. O primeiro é endereçado à Comissão Científica e à Direção do Centro de Estudos Judiciários, pelo seu convite, a que esperamos corresponder com mais um contributo para o tratamento de um tema que para muitos continua a ser uma novidade, e que, em certa medida, até para o legislador o é, visto andar a reboque da construção prática e jurisprudencial. Sobre os segundos:

Dizer que o Programa da ação de formação refere a “compensação ecológica”, mas ao falarmos de compensação ecológica ou de compensação ambiental falamos, sem diferença de essência, na mesma coisa. Simplesmente, alguns autores preferem usar a expressão “ecológica” para reforçar a ideia de que esta compensação lida com aspectos intrinsecamente ligados ao meio ambiente per

si, e não, também, com direitos dos indivíduos, sejam de personalidade, ou reais1. O certo é que,

até para acompanhar o legislador português, optamos pelo termo “ambiental” – estamos a pensar no artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 142/2008, de 24 de julho (Regime Jurídico da Conservação da Natureza e da Biodiversidade [RJCNB]), que é expressamente dedicado aos

instrumentos de compensação ambiental, à semelhança do que sucede no Direito brasileiro (referido pela identidade linguística), mais concretamente no regime do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC)2.

• Depois, não é de toda a compensação ambiental que nos vamos ocupar, mas só da compensação ambiental ex ante, cujas particularidades, como conceito, veremos de seguida;

* * O presente texto foi elaborado para servir de suporte escrito à intervenção do autor, sobre o tema, inserida na ação de formação dedicada à Proteção Ambiental e Licenciamento Único Ambiental, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários, no dia 25 de maio de 2018.

* Jurista na Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões. Mestre em ciências jurídico-ambientais pela

Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

1 Assim, desde logo, Carla AMADO GOMES, «De que falamos quando falamos de dano ambiental? Direito, mentiras e

crítica», Actas do Colóquio: A responsabilidade civil por dano ambiental, org. Carla Amado Gomes e Tiago Antunes, ICJP, Lisboa, 2009, pp. 163 a 171 (cf. a nota de rodapé 14) –

https://www.icjp.pt/publicacoes/pub/1/737/view?language=en; e Carla AMADO GOMES e Luís BATISTA, «A biodiversidade à mercê dos mercados? Reflexões sobre compensação ecológica e mercados de biodiversidade», Textos Dispersos de Direito do Ambiente, vol. IV, AAFDL, Lisboa, 2014, pp. 313 a 398.

2 Cf. o artigo 31.º do Decreto n.º 4.340, de 22 de agosto de 2002, que regulamenta a Lei n.º 9.985, de 18 de julho de 2000.

PROTEÇÃO AMBIENTAL E LICENCIAMENTO ÚNICO AMBIENTAL 4. Sobre a compensação ambiental (ou ecológica) ex ante de danos à biodiversidade. Revisitar um tema E é o “revisitar de um tema” (título da nossa intervenção), porque o conhecemos e vimos acompanhando desde 2011, ano de início da preparação da tese de mestrado que defendemos na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 20133. Por outro lado, à tese seguiram-se já

algumas intervenções orais e trabalhos escritos, e o que aqui trazemos acaba por ser um misto, de sistematização do tema e refinação de alguns aspetos que dela careciam. Ao mesmo tempo, incluímos alguns casos dos tribunais nacionais, que podem ter interesse dados os destinatários da formação.

Dito isto, o que devemos entender por compensação ambiental ex ante? O que tem, de específico, que a distinga quer dos métodos tradicionais de responsabilização (a restauração natural e a indemnização pecuniária), quer de outras compensações?

1. O CONCEITO

Num conceito composto, a explicação pressupõe a sua desconstrução e a análise em separado e em conjunto de cada componente. É o que faremos:

(i) “Compensação” (e a distinção face à restauração natural):

Etimologicamente, compensar é o ato de oferecimento de uma contrapartida, com vista a atenuar uma situação de lesão ou desconforto, conforme sugere, desde logo, o artigo 4.º, alínea b), do RJCNB, ao prever o princípio da compensação “dos efeitos negativos provocados pelo uso dos

recursos naturais”. E se seguirmos a definição do dicionário Porto Editora da língua portuguesa,

compensação é o “restabelecimento do equilíbrio entre coisas complementares”. Definição particularmente feliz:

– Restabelecimento do equilíbrio: a compensação surge no âmbito de políticas de proteção da biodiversidade em rede (no net loss), desde o Clean Water Act norte- americano, de 19724, à mais

recente Our life insurance, our natural capital: an EU biodiversity strategy to 2020, na qual a Comissão e os Estados-membros assumem o compromisso de “analisar o potencial da compensação de

biodiversidade como um meio para concretizar uma abordagem de ausência de perdas líquidas”5;

– Entre coisas complementares: porque a compensação não repõe a situação anterior, nem recupera o bem que em concreto foi afetado6, repondo a situação ou as condições que existiriam

não fosse a ocorrência do evento lesivo (como é intenção da restauração natural, prevista no artigo

3 Luís BATISTA, A compensação ambiental ex ante como forma alternativa de tutela da biodiversidade, tese, FDUL, Lisboa,

2013 – http://repositorio.ul.pt/handle/10451/12089.

4 Palmer HOUGH e Morgan ROBERTSON, «Mitigation under Section 404 of the Clean Water Act: where it comes from,

what it means», Wetlands Ecology and Management, vol. 17-1, Springer, 2009, pp. 15 a 33 (cf. as pp. 15 a 19).

5 COM(2011) 244 final, cf. o Ponto 4.2., tradução nossa; e o Anexo da Comunicação, Action 7 – http://eur-

lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2011:0244:FIN:EN:pdf. Na doutrina, ligando o “funcionamento em rede” ao equilíbrio dos ecossistemas, Carla AMADO GOMES, «Uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma: duplo eixo reflexivo em tema de biodiversidade», No Ano Internacional da Biodiversidade. Contributos para o estudo do Direito da protecção da biodiversidade», coord. Carla Amado Gomes, ICJP, Lisboa, 2010, pp. 7 a 51 (cf. a p. 50).

6 Heloísa OLIVEIRA, «O dano à biodiversidade: conceptualização e reparação», No Ano Internacional da Biodiversidade.

Contributos para o estudo do Direito da protecção da biodiversidade», coord. Carla Amado Gomes, ICJP, Lisboa, 2010, pp.

PROTEÇÃO AMBIENTAL E LICENCIAMENTO ÚNICO AMBIENTAL 4. Sobre a compensação ambiental (ou ecológica) ex ante de danos à biodiversidade. Revisitar um tema 562.º do Código Civil) – o que pressupõe, necessariamente, uma intervenção in situ7 –, mas antes (re)cria, num outro sítio, uma situação equivalente, com uma capacidade de prestação igual, mas que nunca é idêntica8. Para que a capacidade de prestação seja igual, a equivalência, mais do que

quantitativa, tem de sê-lo qualitativamente, o que pressupõe, se está em causa a biodiversidade, a recriação de habitats, de espécies de fauna e flora, e das funções ecológicas perdidas (desde corredores ecológicos, locais de nidificação, caraterísticas específicas que tornam uma área mais resistente a pressões externas, etc.).

(ii) “Ambiental” (e a distinção face à indemnização pecuniária):

A compensação diz-se ambiental em função dos bens tutelados, isto é, dos bens cuja lesão dá lugar à obrigação de compensar. A sua referência são os bens ambientais naturais, enquadrados no artigo 10.º da Lei n.º 19/2014, de 14 de abril (nova Lei de Bases do Ambiente [nLBA]), aqui especificamente

um: a biodiversidade.

Se tivermos presente a dupla faceta dos bens ambientais, que ao lado do seu valor ecológico existe um potencial de aproveitamento humano, um mesmo evento pode, simultaneamente, implicar um lesão do bem per si (a sua perda, a deterioração da sua condição, etc.) e uma lesão pessoal (os moradores afetados no seu descanso com a instalação de torres eólicas, a comunidade pesqueira em crise na sequência de um derrame petrolífero, etc.)9. Aí estamos diante “danos ambientais reflexos”,

que não interessam à compensação ambiental, uma vez que esta se ocupa unicamente dos

“danos ambientais puros” ou “danos ecológicos”, em que o ambiente é o objeto da lesão, em vez

de desempenhar o simples papel de percurso causal da mesma10.

Esta dualidade de danos, quer a nível de conceitos, quer de regimes, já é conhecida do Decreto-Lei n.º 147/2008, de 29 de julho (Regime Jurídico da Responsabilidade por Danos Ambientais [RJRDA]), onde o Capítulo II é dedicado à responsabilidade civil, por danos ambientais reflexos (por

isso, os artigos 7.º e 8.º falam em “ofender direitos ou interesses alheios por via da lesão de um

componente ambiental”), e o Capítulo III à responsabilidade dita “administrativa”11, por danos ambientais puros (cf. os artigos 11.º, n.º 1, alínea e), 12.º, n.º 1 e 13.º, n.º 1). Sucede que o RJRDA acolhe a compensação ambiental (ex post) justamente só para os danos ambientais puros (cf. o artigo 11.º, n.º 1, alínea n) e o Anexo V, n.º 1, alínea b))12.

Mais, o facto de a compensação ambiental guardar uma relação direta para com os concretos componentes ambientais afetados determina que as medidas em que esta se pode traduzir devem

7 Sobre os pressupostos e o funcionamento da restauração ecológica (=restauração natural), ver Hortênsia GOMES PINHO,

Prevenção e Reparação de Danos Ambientais: as medidas de reposição natural, compensatórias e preventivas e a indemnização pecuniária, GZ Verde, Rio de Janeiro, 2010 (pp. 355 e seguintes).

8 “Un milieu naturel équivalent mais jamais identique”, como escreve Marthe LUCAS, «La compensation environnementale,

un mécanisme inefficace a améliorer», Revue Juridique de l’Environnement, n.º 1, Limoges, 2009, pp. 59 a 68 (cf. a p. 59).

9 Carla AMADO GOMES, «Do que falamos quando falamos...», op. cit. p. 5. Os exemplos são nossos, mas muitos outros

poderiam ser dados.

10 José CUNHAL SENDIM, Responsabilidade Civil por Danos Ecológicos: da reparação do dano através de restauração

natural, Coimbra Editora, Coimbra, 1998 (p. 133). Ainda sobre a distinção entre danos ambientais reflexos e danos ambientais puros ou ecológicos, Michel PRIEUR, Droit de l’Environnement, Dalloz, Paris, 2004 (pp. 916 e 917).

11 A não confundir com responsabilidade da Administração, pois aplica-se a operadores quer públicos, quer privados. 12 Sobre o regime bipolar do RJRDA, ver, entre outros, Tiago ANTUNES, «Da natureza jurídica da responsabilidade

ambiental», Actas do Colóquio: A responsabilidade civil por dano ambiental, org. Carla Amado Gomes e Tiago Antunes, ICJP, Lisboa, 2009, pp. 121 a 152 (cf. a p. 126); e António BARRETO ARCHER, Direito do Ambiente e Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 2009 (pp. 38 e 39).

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PROTEÇÃO AMBIENTAL E LICENCIAMENTO ÚNICO AMBIENTAL 4. Sobre a compensação ambiental (ou ecológica) ex ante de danos à biodiversidade. Revisitar um tema ser: medidas in kind, ou em espécie, ficando arredados os pagamentos pecuniários, exceto nos termos do artigo 36.º, n.ºs 3 e 4, do RJCNB13; e medidas kind-to-kind ou kind-to-kind and better, ou

seja, o resultado final não pode ser menos que a no net loss, mas, se possível, o desejável até é que se gerem ganhos adicionais de biodiversidade (net gain). Logo, a troca deve ser “apples for apples”14. (iii) “Ex ante”:

A compensação pode colocar-se, como obrigação, em duas fases ou momentos: antes da ocorrência do dano (ex ante), ou depois (ex post). É isto que, fundamentalmente, distingue a compensação ambiental do RJRDA (ex post), daquela que vamos ter no quadro da Rede Natura 2000 (ex ante). O que não quer dizer que, por o dano ainda não ter ocorrido, a compensação lide com meras eventualidades ou estimativas – aqui entram em cena as avaliações ambientais e os estudos técnicos, matéria à qual voltaremos infra (4.)

Naturalmente, ao anteciparmos a obrigação de reparação, introduzimos o elemento do acordo das medidas compensatórias entre o operador e a Administração, o que faz delas uma condição de emissão e de eficácia do ato autorizativo, numa lógica em tudo idêntica à das medidas de mitigação tradicionalmente fixadas nas Declarações de Impacto Ambiental (DIAs) condicionalmente favoráveis15.

Mas esta distinção não é meramente formal, antes se projeta, também, no plano da maturidade das medidas compensatórias. Com efeito, no RJRDA o dano ambiental não era esperado, mas ocorreu... pelo que deve ser reparado. O que significa que o calendário de implementação das medidas compensatórias é fixado sabendo-se de antemão que estas irão atingir a sua maturidade (irão dar frutos) quando o dano já se fez (e faz) sentir – e é isso que explica que no Anexo V do RJRDA esteja prevista, sob o falso nome de “reparação compensatória”, a reparação das chamadas “perdas

transitórias”, entenda-se, de perdas adicionais registadas enquanto os componentes ambientais

afetados não recuperam plenamente (cf. o Anexo V, n.º 1, alínea d)). Diferentemente, quando se trata de compensar ex ante, porque estamos a antecipar a ocorrência do dano, as medidas devem estar plenamente concluídas e ser eficaze s antes ou, no limite, na data em que o dano ocorra.

Curiosamente, a Comissão Europeia, no seu Documento de Orientação sobre o n.º 4 do artigo 6.º da

Diretiva Habitats, de 200716, veio admitir exceções ao ser ex ante:

“Como princípio geral, um sítio não deve ser afectado de forma irreversível por um projecto antes de a compensação ser concretizada. Todavia, podem ocorrer situações em que não é possível satisfazer este requisito. Por exemplo, a reconstituição de um habitat florestal levaria muitos anos até poder assegurar as mesmas funções que o habitat original

13 O n.º 4 sublinha que “os pagamentos (...) ficam obrigatoriamente adstritos às finalidades de compensação ambiental

que lhes subjazem”.

14 J. B. RUHL, Alan GLEN e David HARTMAN, «A practical guide to Habitat Conservation Banking Law and Policy», Natural

Resources & Environment, vol. 20-1, ABA, 2005, pp. 26 a 32 (cf. a premissa na p. 26).

15 Parte da doutrina fala numa “contratualização”, que enfraqueceria o exercício do poder de polícia da Administração.

Neste sentido, Jean UNTERMAIER, «De la compensation, comme principe général du Droit et de l’implantation de télésièges en site classé», Revue Juridique de l’Environnement, n.º 4, Limoges, 1986, pp. 318 a 412 (cf. as pp. 404 a 406). Cremos ser a generalização (e habituação) dos atos dotados de cláusulas acessórias, em domínios de forte instabilidade dos pressupostos de facto em que estes atos se baseiam (como é o ambiental).

PROTEÇÃO AMBIENTAL E LICENCIAMENTO ÚNICO AMBIENTAL 4. Sobre a compensação ambiental (ou ecológica) ex ante de danos à biodiversidade. Revisitar um tema

afectado negativamente por um projecto. Devem, pois, envidar-se os maiores esforços para assegurar que a compensação se concretize com antecedência; caso isso não seja totalmente viável, as autoridades competentes devem ponderar uma compensação suplementar para os prejuízos que ocorrerão entretanto” (Ponto 1.4.3.).

A aproximação ao regime das perdas transitórias causa-nos estranheza, porque se a intervenção ex

ante tem alguma vantagem é a de evitar essas perdas17, e porque a natureza ex ante da

compensação ambiental é a sua maior garantia de sucesso e de qualquer outra medida de reparação de danos a bens cuja nossa capacidade de compreensão, valoração e reprodução é, ainda hoje, limitada.

(iv) Conjugando, agora, o que acabámos de tratar, podemos chegar a uma definição de compensação ambiental ex ante, como sendo um modo de tutela reparadora, na forma específica, por equivalente não pecuniário, mediante o oferecimento de prestações substitutivas dos bens lesados e em antecipação da sua lesão18.