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Acolhimento: um processo em construção

5. RESULTADOS E DISCUSSÃO

5.3. Possíveis sentidos ao que nos acontece

5.4.4 Acolhimento: um processo em construção

A gestão municipal e o grupo de apoio institucional reconhecem que o acolhimento é um processo em construção e uma realidade na rotina das equipes. Ambos apontam a necessidade de ampliação e problematização do conceito, pois existe a percepção de que a definição sobre o tema reverbera no fazer das equipes.

Então assim, eu acredito que aconteça o acolhimento...então ainda é um processo de construção, eu acredito, não é 100% (EG2, p. 14). E eu acho que, assim, o acolhimento já acontece. Muitas vezes, a unidade não sabe que está fazendo acolhimento, ela já inseriu na rotina dela algumas práticas, mas aquilo pra ela talvez não tem o nome acolhimento (GFAI,p. 40).

Então, mas o problema é que o conceito, às vezes, de acolhimento está um pouco limitado, que é a questão de ter ou não educação, e não é só isso. É isso que a gente precisa ampliar (GFAI,p. 43).

Mas já visualizei também várias situações, onde eu falo, gente, isso não é acolhimento, e a pessoa entende que é acolhimento... não, não vou falar para você que

89 eles não sabem, então se chegar em qualquer unidade e falar o que é acolhimento eles vão ter uma definição deles (EG2, p, 14).

Vimos que as concepções descritas neste estudo abarcam uma gama de elementos estruturantes do acolhimento e que talvez ocorra a suposição feita por um trabalhador do grupo de apoio: a de que os trabalhadores demonstram uma não correspondência entre o que pensam e o que fazem.

É, porque se você vai discutir acolhimento, dizem “eu sei fazer acolhimento”. Aí você fala, então “está bom, então indo em forma de dinâmica, vamos mostrar que tipo de acolhimento você faz”. Mas ali ela faz, talvez, montar um acolhimento, mas no dia a dia ela não pratica esse acolhimento. Então, você fica querendo entender o que acontece (GFAI, p. 43).

Relembram que no inicio da implantação do acolhimento no município o mesmo era realizado somente pela enfermeira e que tanto ela quanto a equipe enfrentaram dificuldades neste fazer. Reconhecem que a partir da prática e de processos de capacitação desenvolveram uma capacidade no fazer em saúde, estando o acolhimento associado e uma avaliação da queixa do usuário.

E no começo essa decisão ela partia da enfermeira né, quando a gente instituiu essa lei dessa forma, já alguns anos eu acho eu lembro que a gente, nossa, ficava assim duas horas fazendo, mais de uma hora fazendo acolhimento, tentando resolver isso, agora não, a equipe já está capacitada para isso (GFT01, p. 10). Geralmente só vão pedir ajuda da enfermeira quando não consegue mesmo, ou precisa olhar um exame ou avaliar um ferimento, coisas assim. Mas a equipe já tem capacidade para fazer essa avaliação (GFT01, p. 10).

Segundo Merhy (2002) quando o usuário procura uma unidade, vai consumir algo (ações de saúde), que tem um valor de uso (permitir que sua saúde seja mantida ou restabelecida). Este consumo ocorre imediatamente na produção da ação. É neste momento da produção/consumo que temos a construção do espaço intercessor, espaço de intervenção, na relação entre sujeitos, que é um produto que existe tanto para o trabalhador quanto para o usuário, e não tem existência sem o momento da relação em processo, no qual o espaço de intervenção se abre como um processo instituinte. Neste processo intercessor de produção/consumo vai haver um jogo de instituintes entre produtores (trabalhador) e consumidores (usuário) que os coloca em

90 confronto (nem sempre um conflito) de distintos formatos de necessidade e formas de satisfazê-las.

De acordo com Merhy e Franco (2003) a composição técnica do trabalho centrada nas tecnologias leves, implica um impacto no núcleo de produção do cuidado. Os autores mencionam a operação da produção do cuidado em linhas de cuidado, uma possibilidade de produzir saúde de forma integral e integrada.

Em se tratando da organização de trabalho das equipes, observam-se duas lógicas desenvolvidas na prática, uma representada pelo conjunto de normas, técnicas e procedimentos voltados à medicalização da vida pelo destino dado as necessidades, sempre voltado à consulta médica e marcado pelas tecnologias duras e leve-duras e nas atividades desenvolvidas atreladas a consulta médica, que estruturam o fazer dos demais profissionais num cenário de repetição, fortalecendo a ideia da produção da anulação das diferenças. Para exemplificar esta questão Merhy, Feuerwerker e Cerqueira (2010) argumentam que a repetição funciona bem em certas situações (diagnóstico, que já revela um tratamento e um prognóstico) e que a objetivação e o foco no corpo biológico, deixam de lado elementos constitutivos da vida dos sujeitos.

A outra lógica revela trabalhadores operando com tecnologias relacionais em momentos de encontros singulares com os usuários.

Frente as pertinentes questões colocadas pela gestão, trabalhadores e grupo de apoio, sugere-se como um facilitador da mudança do modelo tecnoassistencial em vigor, um diálogo reflexivo sobre suas práticas, na perspectiva da hegemonia do trabalho vivo sobre o trabalho morto, acoplado aos diferentes modos de viver dos usuários e as inúmeras possibilidades do trabalho em saúde, que já florescem no cotidiano destas equipes.

5.5. Cogestão

A cogestão é produzida por modos compartilhados e democráticos de fazer gestão, modos que contenham um repensar as relações de poder, os saberes e os afetos que atravessam e circulam os processos de trabalho.

Os trabalhadores e gestores do município em estudo apresentaram sua definição de cogestão, quais os espaços reconhecidos e modos de fazer instituídos para este fim, considerando suas percepções dos poderes e afetos que circundam as relações.

91 5.5.1. Da congestão à cogestão: diferentes concepções sobre um mesmo tema

Trabalhadores definem a cogestão como um processo pelo qual todos os participantes expressam e compartilham o que pensam para a tomada de decisão. As decisões não devem ser entendidas como regras a serem seguidas, portanto devem ter um caráter provisório. Cogestão é um processo em que as decisões são compartilhadas e que constrói a corresponsabilidade, entendida como a responsabilidade construída no fazer junto. Quando o trabalhador se sente parte do processo ele produz e percebe o trabalho não como uma imposição. Afirmam que cogestão é discutir e fazer em equipe e consideram que as equipes do município operam em cogestão a gestão dos processos de trabalho.

Onde eu acho que todos possam se expressar, não é uma coisa engessada que eu defino e tenho que seguir, onde todo mundo pode justamente falar, dar a opinião e daí a gente compartilhar uma decisão. Eu entendo por isso (GFAI, p. 65).

Compartilhar as decisões né? (GFT04, p. 23).

Entendo que é oportunidade de realmente compartilhar e ser corresponsável, você assume essa corresponsabilidade, e aí você faz parte do processo. Você se sente parte do processo e aí você produz. Aí é construtivo, acaba sendo mais construtivo do que deliberativo, aquela coisa imposta (GFAI, p. 65).

Para mim cogestão é fazer junto né? É fazer junto com a equipe, é discutir. Eu considero que a gente faz cogestão (GFT01, p. 22).

Cogestão é também o processamento coletivo de um problema, os diferentes olhares para um mesmo objeto, favorecendo a tomada de decisão. Uma das gestoras também caminha neste sentido, de que os diferentes olhares são a matéria prima para a construção de estratégias para a resolução de problemas, que se não forem construídas coletivamente estão “fadadas ao fracasso”.

Eu até tento colocar o problema, e ver o que, que a equipe tenta olhar para os problemas e ver qual a solução ou qual o caminho a ser tomado. Eu acho que isso é uma cogestão (GFT01, p. 22).

Eu acredito na cogestão, diversos olhares de vários técnicos no mesmo ponto, e você ouvir esses técnicos, com diferentes olhares, é o que nos norteia para levar a um resultado melhor nas estratégias, entendeu? Na hora você vai montar uma estratégia, você tem que ter

92 essa cogestão, porque senão você pode estar fadado ao fracasso (EG1, p. 14).

Alguns trabalhadores não tem clareza na definição do termo e suas dúvidas mas expressam uma relação com sua finalidade: corresponsabilização, organização coletiva do trabalho, fazer parte da gestão do serviço. É pensada também como uma “ajuda” à enfermeira gestora da unidade. No entendimento de outro trabalhador, a ajuda viria do médico, pois “culturalmente, reforçado pela população”, é aquele que faz a gestão dentro da unidade. A fala dos trabalhadores assinala que a gestão do serviço é tarefa de enfermeiros e médicos, algo já naturalizado pelos trabalhadores das equipes.

Imagina, que ... não sei... cogestão é quando você divide não a responsabilidade, a responsabilidade é geral, mas digo assim a questão de organizar de, não sei... (GFT01, p. 22).

Nós teríamos que fazer parte da gestão...teria que ajudar, vamos supor, administrar, organizar, seria isso uma cogestão? (GFT02, p. 34).

Isso, né, quando tem alguém que te ajuda a fazer a gestão, que seja assim, a gestão é dela, não sei, a gestão é da enfermeira, mas ela tem alguém que ajuda, que seja, por exemplo, o médico, como ele tem essa, culturalmente falando né, para a população, é o médico na unidade né? ...Então assim, talvez seja a enfermeira gestora e o médico fica com uma cogestão, de ajudar a enfermeira em algumas questões que eles têm a ver com a gestão mesmo (GFT01, p. 22).

Tais falas colocam em cena a supremacia do poder de médicos e enfermeiros que realizam a gerência/administração das unidades de saúde e equipes. A PNH aposta na cogestão como um modo de administrar baseado na participação, interação e diálogo entre usuários, gestores e trabalhadores em processos que incluem o pensar e o fazer coletivos, produzindo autonomia e corresponsabilidade. Uma mudança no modelo burocrático e verticalizado que caracteriza o fazer em saúde (BRASIL, 2012). Tenta-se desconstruir a hegemonia de poder de alguns profissionais e a hierarquia imposta pelos organogramas.

A cogestão também é associada por uma trabalhadora a processos mal digeridos, uma “congestão”.

Se fosse congestão seria mais familiar (GFT03, p. 36). Os entendimentos sobre cogestão na voz de trabalhadores e gestores são anunciados ora por sua definição com base na experiência, ora por algo que se deseja.

93 Torna-se presente a clareza de alguns, a imprecisão de outros e a constatação de modos de fazer gestão que não foram bem digeridos.

O tema da cogestão coloca o foco no como os trabalhadores operacionalizam a organização e os processos de trabalho e se a gestão destes processos se aproxima de modos mais verticalizados ou horizontalizados de comando e planejamento. Considerando que gestão e atenção são inseparáveis, modos de fazer a gestão e a gerência podem produzir importantes reflexões no sentido de alterar o modelo tecnoassistencial adotado pelas equipes.

O homem tem a capacidade, diferentemente dos demais seres vivos, de planejar e executar seu trabalho pelo manejo de distintas ferramentas. Veremos quais ferramentas estão sendo utilizadas por trabalhadores e gestores nos espaços instituídos de gestão.

5.5.2 Espaços de participação reconhecidos como arranjos de cogestão: