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CAPÍTULO II A HERMENÊUTICA BÍBLICA DE PAUL RICOEUR E SUA

5. Acontecimento, Conversão, Decisão

A partir deste ponto estamos trabalhando com o texto “A Escuta das Parábolas” de Ricoeur (RICOEUR, 2006a).

As parábolas são narrativas radicalmente profanas. Eis o primeiro paradoxo: as parábolas são, simultaneamente, narrativas da normalidade e do Reino de Deus. O extraordinário é como o ordinário. Assim, a primeira surpresa vem com a ausência da linguagem do sagrado, do mito, a linguagem dos mistérios e a recepção da linguagem profana, do drama aberto, linguagem de nossa história. O contraste entre o tipo de coisas de que se fala e o Reino dos Céus é comparado e, por isso, interpela-nos enquanto pessoa profana e secular em detrimento da pessoa religiosa.

Então, uma pergunta é inevitável: O que faz sentido nas parábolas? Como identificar o que nelas pode ser paradigmático?

No decorrer deste capítulo, concluímos que a exegese contemporânea defende que o Reino de Deus não é comparado ao homem que..., à mulher que... ao fermento que....Mas, ao que acontece na narrativa. O que faz sentido não são as situações enquanto tais, mas a intriga, a estrutura do drama.

Três momentos críticos emergem dessas narrativas: Acontecimento, conversão e decisão. Porém, há que salientar: “não são todas as parábolas construídas mecanicamente segundo o mesmo modelo (...) mas cada uma delas desenvolve e, por assim dizer, dramatiza um ou outro desses três termos cruciais” (Ibid., p.228).

Contudo, devemos lembrar que as parábolas formam um todo, que devemos apreendê-las em conjunto, cada uma à luz das outras, pois constituem uma rede de intersignificações.

Somadas essas características, as parábolas configuram um completo sistema conceitual sobre Deus e sobre a ação de Deus entre nós. A riqueza das imagens que impedem sua tradução em linguagem conceitual revela a força ímpar desse modo de

discurso. Conquanto, “(...) o que confirma essa impressão é que podemos tirar das parábolas quase todas as teologias que dividiram a cristandade durante séculos” (Ibid., p.229).

Para Ricoeur, se isolar a “parábola da moeda perdida”, excluir o dinamismo da narração e retirar dela um conceito engessado, formaliza-se a doutrina da predestinação postulada pelo calvinismo. Em outra situação, isolando a “parábola do filho pródigo”, resgatando apenas o conceito engessado da conversão pessoal, formaliza-se então uma teologia fundamentada na “ vontade absolutamente livre dos homens, como os jesuítas opuseram aos calvinistas e os protestantes liberais aos protestantes ortodoxos” (Ibid., p.230).

Por isso não basta afirmar que as parábolas nada dizem diretamente sobre o Reino de Deus. “Devemos dizer em termos mais positivos que, tomadas juntamente, dizem mais que qualquer teologia racional. No mesmo momento em que pedem uma explicação teológica, começam a destruir as simplificações teológicas que tentamos pôr em seu lugar” (Ibid., p. 230: ênfase do autor).

Esse desafio à teologia racional é patente na “parábola do joio e do trigo”. A resposta enigmática sugere diferentes tipos de teologias, pois a resposta dada de modo parabólico solicita mais reflexão do que qualquer fundamento teórico.

Mas voltemos aos três momentos críticos que emergem claramente em Mateus 13,14: descoberta do tesouro, venda de todo o resto e compra do campo.

Essa parábola ultrapassa a aparente transação comercial. Ela aborda um encontro que recobre todas as espécies de encontros. A conjunção das variadas formas de encontro e descobertas conduz-nos a uma relação primordial com o tempo podendo denominar-se “acontecimento por excelência” (Ibid., p. 227). Se, enquanto alguma coisa se constrói, preparamo-nos para a surpresa do que é novo, então podemos descobrir.

Lembremos, a arte da parábola é ligar dialeticamente o ato da descoberta promovido pelo encontro aos outros dois pontos críticos. O homem que encontrou o tesouro foi vender tudo o que tinha e o comprou. Deparamos com a conversão e decisão.

A conversão precede a decisão. A conversão suplanta a escolha, pois implica uma mudança na direção do olhar, do coração antes de toda forma de boas ações. O agir é como o ato conclusivo produzido pelo acontecimento e pela conversão. Em primeiro lugar vem o encontro com o acontecimento, depois a mudança de direção do coração e, depois, o agir em função disso. Essa sucessão é cheia de sentido. O Reino de Deus é comparado ao encadeamento desses três atos: deixar o

acontecimento desenvolver-se; olhar em outra direção; e agir com todas as suas forças de acordo com essa nova visão (Ibid., p.228).

Finalmente, para concluir este capítulo, vale frisar que comungamos com Kerbs o pensamento de que, ao efetuar uma revisão da hermenêutica bíblica de Paul Ricoeur aplicada às parábolas, fica patente que a hermenêutica bíblica dá o que pensar. A fim de mostrar as possibilidades nesse campo, Kerbs deixa claro que a interpretação das parábolas constitui uma oportunidade para ver em funcionamento a hermenêutica textual como dialética de explicação e de compreensão (Cf. KERBS, 2000).

Ainda, com sua reflexão Ricoeur nos desperta para a estratégia de discurso inusitado de que Jesus se vale apresentando as parábolas aos discípulos e à multidão no impulso de permitir que sua própria potência poética desenvolva-se em nós. Nas palavras do autor, “É no mais íntimo de nossa imaginação que deixamos o acontecimento advir antes que possamos converter nosso coração e endireitar nossa vontade” (RICOEUR, 2006a, p.232).

Assim, parafraseando Ricoeur, asseguramos: este trabalho pode ser comparado a uma espiral sem fim, sempre recomeçado e ampliado. No mesmo impulso, procedemos para o próximo capítulo guiados pela premissa ricoeuriana: “Escutai, por isso, as parábolas de Jesus”, retomando o sentido exegético, hermenêutico e filosófico da parábola do Bom Samaritano.

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