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3 A ORGANIZAÇÃO ECONÔMICA DA AGRICULTURA FAMILIAR EM

4.5 A Acumulação Primitiva

Como vimos, a acumulação de capital, em sua forma madura, tem por princípio fundamental a extração de mais-valor, gerado a partir do mais-trabalho da mão de obra empregada na produção. Essa operação em seu formato mais básico é caracterizada por Marx (2013) pela equação D-M-D’. Considerando que D’ novamente se transforma em capital ao ser reinvestido na produção de novas mercadorias, podemos pensar numa segunda equação em forma de ciclos que se sucedem cumulativamente: D-M-D’ → D-M-D’ → D-M-D’...; uma vez iniciado tal movimento, a cada ciclo, o capital aumenta a sua grandeza. Esse é o segredo da acumulação. Porém, como observa Marx (2013), em um primeiro momento, para pôr em movimento tal mecanismo, iniciar o primeiro ciclo, do qual depende os demais – e, portanto, o próprio mecanismo da acumulação, duas condições prévias são necessárias: 1) somas consideráveis de capital acumulado, disponível para os investimentos iniciais; e 2) força de trabalho livre e disponível, desembaraçada de quaisquer empecilhos à sua livre contratação, e disposta à submissão voluntária.

Ora, mas se o mecanismo de acumulação de capital ainda não existe, nesse primeiro momento, como pôde o capitalista industrial ter em suas mãos dinheiro suficientemente acumulado para realizar os investimentos necessários ao início do primeiro ciclo? De onde

veio o montante de dinheiro necessário à formação do seu capital inicial? E de onde vem o número expressivo de trabalhadores livres necessários, disponíveis para livre contratação, posto que o capitalismo sucedeu um modo de produção em que a servidão predominava como relação de trabalho? Como se formou esse mercado de trabalho, onde o detentor dessa soma considerável de dinheiro acumulado pôde encontrar disponível a força de trabalho necessária para viabilizar o seu empreendimento, uma força de trabalho que voluntariamente se submeteria às mais terríveis condições de trabalho? Em outras palavras, de onde vêm comprador e vendedor da força de trabalho e o dinheiro necessário para realizar essa operação, que é a essência do modo de produção capitalista?

A acumulação do capital pressupõe o mais-valor, o mais-valor, a produção capitalista, e esta, por sua vez, a existência de massas relativamente grandes de capital e de força de trabalho nas mãos de produtores de mercadorias. To- do esse movimento parece, portanto, girar num círculo vicioso, do qual só podemos escapar supondo uma acumulação “primitiva” (“previous accumu- lation”, em Adam Smith), prévia à acumulação capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de par- tida. (MARX, 2013, p. 959)

Como é próprio do seu método, é na história, concreta, que Karl Marx buscou as respostas para perguntas como essas. Seus “resultados derivam de uma análise inteiramente empírica, baseada em cuidadoso estudo crítico da economia política” (MARX, 2002, p. 62). A busca do autor inclui, além de pesquisa bibliográfica, exaustiva pesquisa documental, com o propósito de elucidar os verdadeiros fatos que sustentaram uma acumulação primitiva de capital, era preciso compreender o processo histórico real que gerou as principais condições para a constituição do modo de produção capitalista. Até então, a economia política, por meio de anedotas idílicas, mais apropriadas a historinhas de criança ou contos de fadas, como a lenda de Robinson Crusoé, por exemplo, argumentava que a riqueza da elite capitalista, desde sempre, é apenas o resultado do seu trabalho e o direito a forma de garantir o usufruto daquilo que lhe é justo (MARX, 2013). É a esse tipo de argumento anedótico, ideológico e sem lastro com a história real, que Polanyi (2000, p. 63) assim se refere:

Uma série de escritores de economia política, história social, filosofia políti- ca e sociologia em geral havia seguido na esteira de Smith e estabelecido o seu paradigma do selvagem barganhador com axioma das suas respectivas ciências. Na realidade, as sugestões de Adam Smith sobre a psicologia eco- nômica do homem primitivo eram tão falsas como as de Rosseau sobre a psicologia política do selvagem.

A questão, no entanto, diz respeito a algo muito mais precioso. Trata-se de sustentar ideologicamente uma justificativa para a existência das grandes fortunas, divinizá-las. Deixar intocado o dogma da propriedade privada dos meios de produção. Legitimar, por meio da ortodoxia, a distância cada vez maior entre a grandiosa riqueza de uns poucos e a miséria desconcertante do povo, que sucumbia no mais alto grau de penúria. Marx (2013, p. 960), no entanto, contesta: “na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência”, é o que seus exaustivos estudos demonstram de forma tão contundente. Esse é o princípio da acumulação primitiva, o surgimento de grandiosas fortunas se baseou, na verdade, no uso da mais pura violência e selvageria.

O processo histórico de acumulação primitiva, começou no final do século XV e início do XVI, com a violenta expropriação das terras camponesas, dos bens da Igreja, dos domínios estatais e “a transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna”, processo conhecido como cercamentos, como já citado (MARX, 2013, p. 979). Os cercamentos foram acompanhados pela legislação sanguinária contra os expropriados, também já citada, que com seus requintes de crueldade tentava conter a massa de mendigos, assaltantes e vagabundos, que não parava de crescer em decorrência dos cercamentos de suas antigas terras e da destruição de suas casas, ao mesmo tempo em que processualmente os convertia, por meio das forças policiais do Estado e o emprego do terror dos castigos físicos, em um proletariado inteiramente livre, forçando ainda seus salários para níveis cada vez mais baixos. Essas transformações internas acompanhavam a criação de um novo mercado mundial, que resultou da expansão europeia, desde o final do século XV, história bem conhecida dos brasileiros (MARX, 2013).

A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa re- serva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos funda- mentais da acumulação primitiva. A eles se segue imediatamente a guerra comercial entre as nações europeias, tendo o globo terrestre como palco. […]

Os diferentes momentos da acumulação primitiva repartem-se, agora, numa sequência mais ou menos cronológica, principalmente entre Espanha, Portu- gal, Holanda, França e Inglaterra. Na Inglaterra, no fim do século XVII, es- ses momentos foram combinados de modo sistêmico, dando origem ao sis- tema colonial, ao sistema da dívida pública, ao moderno sistema tributário e

ao sistema protecionista. Tais métodos, como, por exemplo, o sistema colo- nial, baseiam-se, em parte, na violência mais brutal. Todos eles, porém, lan- çaram mão do poder do Estado, da violência concentrada e organizada da sociedade, para impulsionar artificialmente o processo de transformação do modo de produção feudal em capitalista e abreviar a transição de um para o outro. A violência é a parteira de toda sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência econômica. (MARX, 2013, p. 998)

Em uma época em que “grandes fortunas brotavam de um dia para o outro, como cogumelos”, o sistema colonial assumia importância decisiva no desenvolvimento da indústria manufatureira, alavancada pelo monopólio comercial imposto pela Metrópole. Além disso, “os tesouros espoliados fora da Europa diretamente mediante o saqueio, a escravização e o latrocínio refluíam à metrópole e lá se transformavam em capital” (MARX, 2013, pp. 1000-1001). Assim, se os cercamentos, combinados com a legislação sanguinária contra os expropriados, deram origem ao proletariado moderno, o sistema colonial deu origem às primeiras grandes fortunas, que após alguns séculos viriam a se transformar em capital industrial. Antes que isso ocorresse, porém, os diferentes momentos da acumulação primitiva dariam origem ainda ao “ao sistema da dívida pública, ao moderno sistema tributário e ao sistema protecionista”, momentos combinados de um mesmo processo, que se baseou no fluxo de dinheiro a partir do sistema de exploração colonial. Nas palavras de Marx (2013, p. 1003),

A dívida pública torna-se uma das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva. Como com um toque de varinha mágica, ela infunde força criado- ra no dinheiro improdutivo e o transforma, assim, em capital, sem que, para isso, tenha necessidade de se expor aos esforços e riscos inseparáveis da aplicação industrial e mesmo usurária. Na realidade, os credores do Estado não dão nada, pois a soma emprestada se converte em títulos da dívida, fa- cilmente transferíveis, que, em suas mãos, continuam a funcionar como se fossem a mesma soma de dinheiro vivo. Porém, ainda sem levarmos em con- ta a classe de rentistas ociosos assim criada e a riqueza improvisada dos fi- nancistas que desempenham o papel de intermediários entre o governo e a nação, e abstraindo também a classe dos coletores de impostos, comerciantes e fabricantes privados, aos quais uma boa parcela de cada empréstimo estatal serve como um capital caído do céu, a dívida pública impulsionou as socie- dades por ações, o comércio com papéis negociáveis de todo tipo, a agiota- gem, numa palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia.

Desde seu nascimento, os grandes bancos, condecorados com títulos nacio- nais, não eram mais do que sociedades de especuladores privados, que se co- locavam sob a guarda dos governos e, graças aos privilégios recebidos, esta- vam em condições de emprestar-lhes dinheiro. (MARX, 2013, p. 1003)

Nesse sistema, a exploração colonial é capitalizada e transformada em vultuosos recursos que financiarão também outros Estados, estendendo seu domínio a outras partes do mundo. “Uma grande parte dos capitais que atualmente ingressam nos Estados Unidos, sem certidão de nascimento, é sangue de crianças que acabou de ser capitalizado na Inglaterra” (MARX, 2013, p. 1005).

Ainda segundo Marx (2013), o sistema tributário moderno complementou esse sistema da dívida pública. Assim, os grandes empréstimos permitem gastos extraordinários por parte dos governos, sem uma contrapartida imediata do povo, que a princípio não percebe a grande jogada, nem sequer desconfia, diríamos. Pois essa contrapartida será diluída ao longo do tempo no aumento de impostos, destinados a pagar o montante da dívida, acrescida, é claro, de generosos juros, que fazem a felicidade dos rentistas, cada vez mais ricos. Submetido à dependência eterna dos empréstimos, necessários para cobrir não só esse montante anteriormente tomado de empréstimo, acrescido dos juros correspondentes, mas também novos gastos extraordinários, o Estado, por sua vez, submete o povo ao pagamento de mais impostos. Esse ciclo vicioso funciona, na verdade, como uma forma muito eficiente de extrair dos trabalhadores e trabalhadoras uma parcela do mais-valor, que sustentará a riqueza sem precedentes da bancocracia – a mesma que submete toda a nação à sua sanha devoradora.

Interessante notar como essa discussão sobre a relação da dívida pública e o sistema tributário, que está na pré-história do capitalismo, é tão atual no Brasil, onde as taxas de juros que enriquecem a classe usurária dos rentistas, especuladores e financistas estão simplesmente entre as maiores do mundo, enquanto as reformas constitucionais avançam despudoradamente sobre as políticas públicas e os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras. Ora, como nos lembra Marx (2013), não era a usura um pecado para o qual não havia perdão? Os cristãos parecem ter se “esquecido” desse detalhe.

Por fim, o sistema protecionista coroou essa combinação de diferentes momentos da acumulação primitiva, ele protegia o mercado interno, eliminava a concorrência estrangeira e subsidiava as exportações com dinheiro público, em favor da burguesia nacional, que, como vimos, financiava por meio da dívida pública os extraordinários gastos governamentais, submetendo o Estado aos seus interesses diretos (MARX, 2013). Os trabalhadores e trabalhadoras, é claro, ainda pagam essa conta, por meio do mais-trabalho.