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A adaptação do romance KING – A Street Story, de John Berger

2. PARA AS (POSSÍVEIS) TEORIZAÇÕES DE “ADAPTAÇÃO”

1.1 A adaptação do romance KING – A Street Story, de John Berger

Em 2002, o teatromosca estreou em Sintra um espetáculo que adaptava o romance de um dos mais influentes escritores e historiadores de arte da segunda metade do século XX, um livro que, na sua capa tinha apenas impresso o título, King – A Street

Story. Foi, determinante, desde logo, quando dois anos antes adquiri este romance, o

desconhecimento do nome do autor. O meu atrevimento podia levar-me a entender a primeira palavra (“King”) como sendo o nome do autor daquela história de rua (“A Street Story”). Em parte, tal assunção não estaria completamente errada. Talvez o verdadeiro autor, John Berger, se tivesse “exilado” dali, do mesmo modo que na década de 1960 se tinha apartado do país em que tinha nascido para passar a viver em França até ao final da sua vida. Contudo, a resposta para esse “exílio” da capa do livro

e ter convidado inúmeros encenadores exteriores à estrutura (Maria Gil, Luciano Amarelo, Suzana Branco, Ruben Tiago, entre outros) para dirigir vários projetos, poderá, em certa medida, contribuir com essa pluralidade de visões para a criação de uma imagem de diversidade e heterogeneidade.

117 de 1999 parecia bem mais simples e prosaica. Berger entendia que a mensagem era mais importante do que o mensageiro. E esse mensageiro era, na verdade, King, um cão ou alguém que dizia ser um cão.132

A narrativa, fragmentada, composta por pequenos parágrafos, alguns só com uma linha, parece seguir o ritmo do instinto, como se, de facto, tivesse sido escrita por um animal. O romance forma um retrato provocador daqueles que vivem à margem da sociedade, um grupo de pessoas que foi quebrado por ela ou que dela fugiu, refletindo sobre as injustiças cometidas pelo progresso quando este se divorcia da consciência, da razão, e se despe, por completo, de qualquer veste humanista. Se King é um cão, foi bem treinado pelo seu verdadeiro “dono”. A forte mensagem política que ele (King, o mensageiro) transporta consigo encaixa na perfeição naquilo que foi a grande mensagem que atravessa a totalidade da obra de Berger, que nos falou da destruição da vida no campo, dos indivíduos e das suas tradições esmagadas pelo monstro mecânico das grandes metrópoles.133

King relata-nos a experiência de um casal de desalojados, Vica e Vico, que procurou abrigo num descampado por baixo do viaduto de uma autoestrada. Vico, o seu velho companheiro, diz-se descendente de Giambattista Vico e é através da evocação da figura e das ideias deste filósofo italiano que a história ganha uma dimensão profética.134 Vico e Vica passam o tempo a relembrar histórias do seu passado. Ele recorda os dias em que era dono de uma fábrica de vestuário em Nápoles. Ela relembra o tempos em que estudava música no Conservatório em Zurique. Se, por

132 “Then I felt ashamed of thinking him mad. Everyone at Saint Valéry needs a madness to find their

balance after the wreck. It’s like walking with a stick. Madness is the third leg. Me, for instance, I believe I’m a dog. Here nobody knows the truth.” (Berger, 1999a: 129) Utilizarei a versão original, por regra, quando pretender citar o autor desse mesmo texto, e não a minha tradução e adaptação utilizada na criação do espetáculo. O mesmo procedimento será adotado para os textos que serão analisados ao longo deste capítulo. Contudo, quando pretender focar, de forma direta, o texto adaptado, farei referência ao texto de trabalho que passarei a designar como “guião” ou “texto de adaptação”.

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A cidade em que decorre a ação deste romance é, como em muitos outros textos de Berger, um local sem nome ou uma colagem de outras cidades.

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“[U]ma vez que tais povos, à maneira dos animais, se tinham acostumado a não pensar em mais nada senão nos seus próprios interesses particulares, e cada um tinha atingido o cume das comodidades ou, para melhor dizer, do orgulho, à maneira de feras que, ao serem minimamente contrariadas, se ressentem e se enfurecem, e assim, na sua maior celeridade ou loucura dos corpos, viveram como animais imanes numa suprema solidão de ânimos e de vontades, acabando por não conseguirem pôr-se duas de acordo, seguindo cada uma das duas o seu próprio prazer ou capricho -, por tudo isto, com obstinadíssimas facções e desesperadas guerras civis, passam a fazer das cidades selvas e das selvas covis de homens”. (Vico, 2005: 841-842)

118 um lado, estão presos a um passado que já não existe ou que nunca existiu. Por outro, as histórias que inventam parecem ser os únicos bens que possuem. Embora, no seu desespero, o dono de King possa desvendar um significado ancestral para o seu nome (“pequeno bairro” ou “rua estreita”), como sinal da sua própria insignificância no meio da selva da cidade, o romance de Berger deixa entrever a possibilidade de, segundo a teoria cícilica da História, a cidade funcionar como catalisador de uma renovação da humanidade.

Ao longo de um primeiro processo de trabalho em que procurava traduzir, na íntegra, o texto de John Berger da língua inglesa para português135, escrevi inúmeras cartas ou emails, procurando esclarecer determinados aspetos do texto que, por ignorância ou respeito cerimonioso, tinha dificuldade em interpretar. De certo modo, movia-me no território pantanoso da descodificação do que o autor queria dizer no texto, entregando-me não só a esse trabalho detetivesco de procura da intentio

auctoris (Eco, 1992: 27), como inquirindo, direta e abertamente, o próprio autor sobre

as suas intenções, as suas motivações e as suas preocupações. A todas estas minhas investidas, John Berger respondia de forma sucinta, devolvendo-me cada uma das minhas perguntas: “O que te preocupa?”; “O que queres tu dizer com este teu trabalho?”; “O que te move?” O terreno era movediço e Berger não pretendia estender-me a mão para me ajudar a sair do lodo onde eu próprio me tinha lançado. Essa seria a primeira lição a retirar do processo. O autor estava ausente, afastara-se e não deveria contar com ele para me “explicar” a obra ou para me “orientar” o discurso. O trabalho dele estava feito, tal como, antes dele, outros o tinham feito também, e agora eu estaria por minha conta. Entrava no escuro segurando um facho que eu próprio teria que criar.

Assim, permiti-me descobrir um ponto de partida para a criação do romance, que seria também o ponto inaugural da criação do espetáculo: a escolha da voz do

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A obra de John Berger tem sofrido muito pouca atenção por parte do meio editorial português, apesar de ser, claramente, reconhecido como um dos “contadores de histórias” (era assim que Berger gostava de se descrever) mais influentes da sua geração. Para além de Modos de Ver, publicado pelas Edições 70, foram ainda editados os romances Aqui nos Encontramos (Civilização, 2006), E os Nossos

Rostos, Meu Amor, Fugazes como Fotografias (Quasi, 2008) e De A para X: Cartas de Amor (Civilização,

2009), e um brevíssimo ensaio sobre o artista alemão Albrecht Dürer (Taschen, 2004). No Brasil, o autor tem sido continuamente traduzido e editado.

119 narrador.136 De certo modo, recordava-me a força da expressão popular que nos diz que aqueles que vivem na rua levam uma vida de cão. Por outro lado, as palavras do próprio escritor inglês servem igualmente o propósito desta minha reflexão, abrindo a porta para uma discussão mais assertiva em torno da narração e do teatro.

Our customary visible order is not the only one: it co-exists with other orders. Stories of fairies, sprites, ogres were a human attempt to come to terms with this co-existence. Hunters are continually aware of it and so can read signs we do not see. Children feel it intuitively, because they have the habit of hiding behind things. There they discover the interstices between different sets of the visible.

Dogs, with their running legs, sharp noses and developed memory for sounds, are the natural frontier experts of these interstices. Their eyes, whose message often confuses us for it is urgent and mute, are attuned both to the human order and to other visible orders. Perhaps this is why, on so many occasions and for different reasons, we train dogs as guides.

(Berger, 2001: 5)

Foi partindo desta ideia de que os cães poderiam funcionar como guias privilegiados para a deambulação nestes interstícios137, que procurei conceber, no espetáculo DOG ART, a imagem de um narrador próximo da figura do Mensageiro da tragédia ática tal como foi aqui apresentada138.