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Assim como o conceito de intertextualidade já foi pensado por diferentes perspectivas, as adaptações, como objeto teórico, também são tratadas à luz de distintos vieses, que se ampliam ao longo do tempo e dialogam entre si – tal qual acontece entre hipertextos e seus hipotextos. Dentre esses vieses está o de James Naremore, o qual reconhece que o estudo sobre adaptação

precisa ser associado com o estudo da reciclagem, do remake e de quaisquer outras formas de recontar na era da reprodução mecânica e da comunicação eletrônica. Por esses meios, adaptação se torna parte de uma teoria geral de repetição, e o estudo da adaptação irá se realocar das margens para o centro dos estudos contemporâneos de mídia8 (NAREMORE, 2000, p. 15, tradução

nossa).

Por meio da seleção de ensaios que defendem essa perspectiva, Naremore reflete sobre uma abordagem que vai além da associação às noções de fidelidade e tradução para defender a transformação e às especificidades de cada linguagem envolvida em uma adaptação. Considerando essa como um processo intertextual, dialógico e multidirecional, a proposta do autor é a de que a análise

se baseie no que ele denomina dialogismo intertextual, isto é, na idéia de que “todo texto forma uma interseção de superfícies textuais, tecidos de fórmulas anônimas, variações nessas fórmulas, citações conscientes e inconscientes, conflações e inversões de outros textos” (DINIZ, 2005, p. 17).

Unindo dois termos-chave das relações entre textos de linguagens distintas, esse tipo de dialogismo pensado por Naremore está baseado no impossível

8 “needs to be joined with the study of recycling, remaking, and every other form of retelling in the age

of mechanical reproduction and electronic communication. By this means, adaptation will become part of a general theory of repetition, and adaptation study will move from the margins to the center of contemporary media studies” (NAREMORE, 2000, p. 15).

esgotamento de qualquer prática discursiva produzida em uma cultura e na sutil disseminação, para além de influências reconhecíveis, de quaisquer textos dentro dos diferentes meios de manifestação artística, misturando-os e confundindo-os até que pareça haver uma unidade entre eles.

Nesse sentido, as adaptações cinematográficas encontram-se dentro de um emaranhado de referências e transformações intertextuais “de textos que geram outros textos, num processo infinito de reciclagem, transformação, transmutação, sem qualquer ponto de origem necessariamente definido” (DINIZ, 2005, p. 17), incluindo, assim, ao conceito de adaptação, outros tipos de textos – sequels, prequels, spin-offs, remakes9, shows, seriados de televisão, crônicas/artigos de colunas em revistas, etc.

– como obras passíveis de transcriações.

Ademais, a proposta também abarca a consideração da influência exercida pela crítica sobre adaptadores – enfocando a problemática acerca da noção de autoria, concessão de direitos de uso de nome, semelhança e biografia dos autores – e, acima de tudo, a investigação do que a adaptação restaurou da obra adaptada para os leitores/espectadores (DINIZ, 2005, p. 18).

Em suma, reciclagem10 denota reaproveitamento e, figurativamente,

atualização de conhecimentos. Se as adaptações são, portanto, resultado de um processo de mutação – o qual, por sua vez, é um processo de evolução –, é possível dizer que elas colaboram para a manutenção e sobrevivência das suas fontes ao longo dos anos. Dessa forma, associada à ideia de reciclagem e evolução, podemos interpor a de sobrevida, cunhada por Jacques Derrida.

Como já foi citado brevemente na seção anterior, Derrida faz sua leitura, em Torres de Babel, do que preconiza Walter Benjamin em A tarefa do tradutor. Um dos postulados discutidos diz respeito à situação de dívida que o tradutor (e, por associação, o adaptador) se encontraria diante do original, ou seja, o compromisso de

9 Termos em inglês que denotam, em geral, a ideia de derivação entre as obras: sequel (sequência) é

a continuação de uma história do ponto em que parou; prequel (prequela) é a narrativa ambientada no mesmo universo ficcional que outra, primeira, mas que conta os acontecimentos que a antecederam;

spin-off é a obra originada a partir de outra(s) já finalizada(s) (spin-offs podem ou não ser

prequelas/sequências); e remake ocorre quando uma obra, geralmente antiga, é refeita/atualizada – esteja ela ambientada ou não no mesmo país da primeira realização.

10 Vale registrar que o termo reciclagem também é utilizado por Jean Klucinskas e Walter Moser no

artigo A estética à prova da reciclagem cultural. Nesse texto, os autores propõem uma releitura do conceito de estética baseada no conceito de reciclagem – o qual eles caracterizam como o deslocamento espaço-temporal de obras estético-culturais que envolve, concomitantemente, repetição e transformação (KLUCINSKAS; MOSER, 2007, p. 17).

restituir o texto-fonte constituiria a tradução como forma de endividamento. Para Derrida,

Benjamin não fala da tarefa ou do problema da tradução. Ele nomeia o sujeito da tradução como sujeito endividado, obrigado por um dever, já em situação de herdeiro, inscrito como sobrevivente dentro de uma genealogia, como sobrevivente ou agente de sobrevida. A sobrevida das obras, não dos autores (DERRIDA, 2002 [1987], p. 33).

Derrida, portanto, não reconhece a ideia de dívida dos tradutores/adaptadores com os autores lidos. Ele considera que o elo ou a obrigação de dívida se dá entre os textos, ou seja, entre as duas produções criativas.

De acordo com o autor, “se a estrutura do original é marcada pela exigência de ser traduzido, é que, fazendo disso a lei, o original começa por endividar-se também em relação ao tradutor” (DERRIDA, 2002 [1987], p. 40, destaque do autor), ou seja, a referida dívida considerada por Derrida começa com o texto-fonte, o qual seria o primeiro devedor, uma vez que clama estruturalmente pela tradução.

Assim, vendo a estrutura da obra como sobrevida, a suposta dívida do tradutor não estaria relacionada ao sujeito que escreveu o texto-fonte, nem engajada a “restituir uma cópia ou uma boa imagem, uma representação fiel do original” (DERRIDA, 2002 [1987], p. 38): o próprio texto-fonte, ou sobrevivente, é perpassado por um processo de transformação, pois a ideia de sobrevida só funciona como mutação, acarretando a modificação do original, sua atualização e, consequentemente, sua permanência ao longo do tempo.

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