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Democracy and control of public administration in Brazil

Eduardo Meira Zauli

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) emzauli@gmail.com

Resumo: Após a condenação/absolvição pelo Supremo Tribunal Federal dos réus da Ação Penal 470, o processo do Mensalão, resta à corte a definição das penas. O resultado preliminar do julgamento do Mensalão indica um avanço, alcançado em âmbito judicial, do controle sobre a Administração Pública no Brasil. Este artigo busca analisar o papel dos órgãos do sistema de justiça brasileiro, sobretudo o Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público Federal, no controle sobre a Administração Pública, particularmente no que tange aos crimes de corrupção.

Palavras-chave: Mensalão; administração pública; corrupção

Abstract: After the condemnation/absolution by the Brazilian Supreme Court of the defendants of the prosecution 470, the process of Mensalão, remains to the Court the definition of the penalties. The preliminary outcome of the Mensalão’s judgement indicates a progress, achieved in the judicial sphere, in the control of the public administration in Brazil. This article seeks to analyze the role of the organs of brazilian justice system, specially the Supreme Court and the Federal Public Ministry, particularly relative to the corruption crimes.

Key words: Mensalão; public administration; corruption

Encerrada no Supremo Tribunal Federal (STF) a etapa relativa à condenação/absolvição dos réus da Ação Penal 470, o processo do “Mensalão”, resta à Corte a definição das penas, a publicação do acórdão da sua decisão e o julgamento de eventuais embargos apresentados pelos advogados de defesa. O passo seguinte é a execução das penas atribuídas aos réus condenados. O que só deve ocorrer a partir de 2013.

Em Debate, Belo Horizonte, v.4, n.8, p40-48, nov. 2012

O episódio do “Mensalão” e o protagonismo do STF e do Ministério Público Federal (MPF) nesse julgamento devem ser vistos no contexto de um sistema de checks and balances, presente no ordenamento institucional brasileiro, sob a forma de uma rede de instituições estatais que operam no sentido do estabelecimento de controles recíprocos sobre agentes públicos: daquilo que o saudoso Guillhermo O’Donnell chamava de “accountability horizontal”.

De fato, ao longo dos últimos anos não resta dúvida de que os diferentes órgãos do sistema de justiça brasileiro, do qual são partes o STF e o MPF, têm contribuído sobremaneira para uma maior efetividade do controle sobre a Administração Pública, particularmente no que tange aos crimes de corrupção1.

Entre outros, o resultado preliminar do julgamento do “Mensalão” indica um avanço, alcançado em âmbito judicial, do controle sobre a Administração Pública no Brasil. Eis aí um aspecto importante do funcionamento dos sistemas democráticos, já que o controle da burocracia pública é uma das condições necessárias para a existência de governos responsivos às preferências de seus cidadãos.

1 No âmbito do nosso ordenamento jurídico o crime de corrupção está tipificado nos artigos 317 (corrupção

passiva) e 333 (corrupção ativa) do Código Penal. Em ambos os casos, tratam-se de crimes contra a Administração Pública, ora praticados por funcionário público (corrupção passiva), ora por particular (corrupção ativa). Assim, é crime de corrupção passiva:

Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003) § 1º - A pena é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.

§ 2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. É crime de corrupção ativa:

Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003) Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional.

Não por acaso, dado seu caráter endêmico no sistema político brasileiro, dos vários crimes imputados aos réus do processo do “Mensalão” na denúncia apresentada pelo órgão do MPF um deles, o de corrupção, tem sido objeto de grande interesse por parte da opinião pública.

Na esfera judicial, o ato de corrupção pode ser tratado como crime comum e/ou como ato de improbidade administrativa, sendo que uma das diferenças mais importantes entre esses dois tipos de enquadramento legal é que, em se tratando de ação penal, deve-se observar os comandos constitucionais relativos ao foro por prerrogativa de função; já no tratamento do ato de corrupção como improbidade administrativa, as ações judiciais têm início em primeira instância tanto na Justiça Federal quanto nas estaduais.

É importante observar o quanto a tramitação e o resultado do processo do “Mensalão” no âmbito do STF contrariaram uma percepção um tanto difusa junto à opinião pública, no sentido de que o foro por prerrogativa de função é um mero privilégio de que desfrutam certos agentes públicos e um estímulo à impunidade.

Foram julgados 37 réus; 18 foram condenados por todas as imputações; seis foram condenados por pelo menos uma imputação; e 13 foram absolvidos integralmente. Nove dos condenados dispunham da prerrogativa de foro por exercício de cargo ou mandato eletivo no âmbito do STF. Diante de tais dados, pode-se pensar que tinha toda a razão Victor Nunes Leal, personagem de inequívocas credenciais democráticas e ex-ministro do STF aposentado compulsoriamente durante o período da ditadura militar quando afirmou:

(...) a jurisdição especial, como prerrogativa de certas funções públicas, é, realmente, instituída, não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com o alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade. Presume o legislador que os tribunais de maior categoria tenham mais isenção para

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julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja a eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuarem contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia é, pois, uma garantia bilateral, garantia contra e a favor do acusado. (LEAL, 1962, p. 25-26).

Outra percepção também muito difundida junto à opinião pública, que merece questionamento a partir do resultado do processo do “Mensalão”, diz respeito à relação entre a fórmula institucional adotada no Brasil para o provimento de vagas no STF (nomeação pelo Presidente da República depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal; Art. 101, § 1º da Constituição da República) e as manifestações dos ministros no âmbito dos processos. Refiro-me à presunção acolhida por muitos de que os ministros do STF tendem a comportar-se como agents perante aqueles dois principals que participaram diretamente de sua condução ao cargo ministerial, o que permitiria a antecipação de seus votos em casos como o do processo do “Mensalão”.

A propósito, é muito significativo que dos onze ministros que participaram do julgamento do “Mensalão”, oito foram nomeados por Presidentes da República filiados ao Partido dos Trabalhadores (seis nomeados por Lula e dois nomeados por Dilma Rousseff). O relator do processo do “Mensalão”, Joaquim Barbosa, e o revisor Ricardo Lewandowski, ambos nomeados por Lula, proferiram votos profundamente divergentes com relação à maioria dos réus e das imputações a eles atribuídas na denúncia do MPF. O ministro José Antonio Dias Toffoli (nomeado por Lula), frustrou expectativas de muitos, ao condenar José Genuíno, ex-presidente e Delúbio Soares, ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores, pelo crime de corrupção ativa. Apenas Lewandowski e Dias Toffoli inocentaram o Deputado Federal João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados, da acusação de corrupção passiva. José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil da Presidência da

República e homem-forte do governo Lula foi condenado pelo crime de corrupção ativa com a ajuda dos votos dos ministros Joaquim Barbosa, Rosa Weber (nomeada por Dilma Rousseff), Luis Fux (nomeado por Dilma Rousseff), Carmen Lúcia (nomeada por Lula) e Ayres Britto (nomeado por Lula), e por formação de quadrilha, com a ajuda dos votos de Joaquim Barbosa, Luis Fux e Ayres Britto. O ministro Cezar Pelluso (nomeado por Lula), antes de se aposentar, votou pela condenação de João Paulo Cunha e Henrique Pizzolato.

Essas considerações remetem à problemática da determinação do comportamento decisório dos juízes, e o episódio do “Mensalão” ilustra quanto certas expectativas com relação ao teor dos votos dos ministros do STF e certos prognósticos acerca das decisões judiciais em geral são frágeis. E tal questão pressupõe, por si só, uma concepção da função judicial distinta daquela de Montesquieu, que admita que os juízes não sejam simplesmente a bouche de la loi. Uma vez superada uma concepção executória da função judicial, obra da crítica ao formalismo jurídico, a discricionariedade ou segundo Mauro Cappelletti (1984), a criatividade judicial torna-se um aspecto da atividade judicial amplamente reconhecido. Daí o surgimento de diferentes abordagens do comportamento judicial, muito bem sintetizadas na afirmação de James L. Gibson de que: “Em suma, as decisões dos juízes são uma função do que eles preferem fazer, temperada pelo que eles pensam que deveriam fazer, mas constrangida pelo que eles percebem que é viável fazer” (GIBSON, 2006, p. 515,516).

Admitida a interferência da subjetividade dos juízes nos processos de tomada de decisão de que participam, não se pode perder de vista, porém, a existência de fatores que limitam sua incidência sobre as decisões judiciais. Assim, nas diferentes sociedades nas quais nos deparamos com a existência de um sistema judiciário - um complexo de estruturas, procedimentos e funções

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mediante o qual o sistema político realiza a função fundamental de aplicação das normas na resolução de conflitos de interesses -, se fazem presentes um conjunto de expectativas, valores e atitudes que definem aquilo que se chama de “papel judiciário” que, como nos lembra Alberto Marradi, envolve

(...) a convicção dos juízes de terem de decidir as contendas de acordo com as normas e/ou as decisões precedentes, e não segundo as opiniões pessoais sobre o que seria justo ou oportuno no caso; o fato de que efetivamente muitos juízes decidem grande parte dos litígios deste modo, que quase todos crêem fazê-lo de algum modo e que, praticamente, todos de comportem como se o fizessem; a pública expectativa – de que os juízes estão conscientes – de que as pendências sejam decididas deste modo, baseada sobre a convicção que devem sê-lo. (MARRADI, 1992, p.1161).

Ainda que a Corte tivesse decidido por unanimidade quanto à punição dos réus, provavelmente ouviríamos vozes discordantes que insistiriam na defesa dos acusados e em sua inocência. Daí a importância do caráter colegiado, e não monocrático, da decisão condenatória proferida pelo STF; e a felicidade de termos hoje na suprema Corte do país uma maioria de ministros nomeados por presidentes petistas.

Diante de eventuais críticas ao resultado do julgamento do “Mensalão”, no sentido de sua deslegitimação, deve-se lembrar que nas sociedades democráticas contemporâneas consagrou-se a fórmula institucional de atribuir-se ao Poder Judiciário, como um tertius, a resolução de controvérsias de interesses/direitos entre partes, com base nas normas reconhecidas como válidas. Contudo, em geral o juiz que profere uma decisão não pode contar com o consenso entre as partes relativamente ao conteúdo da sua decisão (e não nos esqueçamos da natureza penal do processo do “Mensalão”). Daí a necessidade de um fundamento outro da legitimidade de suas decisões, através da observância de determinados procedimentos que dão vida ao processo judicial, que tem entre suas principais características, todas elas voltadas para a

garantia da imparcialidade do juiz na resolução de controvérsias e da sua legitimação perante o conjunto dos cidadãos (GUARNIERI, 1996, 2004):

1) O princípio do juiz natural, segundo o qual os conflitos entre partes devem ser decididos por juízes independentes e imparciais pertencentes a órgãos judiciários criados previamente à ocorrência da conduta a ser julgada, o que veda a criação de tribunal de exceção; e com base nas regras de competência consagradas no ordenamento jurídico.

2) O princípio do contraditório, que assegura às partes, com base em normas e precedentes judiciais, a apresentação de provas e testemunhas de sua versão dos fatos.

3) O princípio da passividade ou da inércia do juiz, segundo o qual o órgão judicial só presta a tutela jurisdicional mediante provocação. 4) A decisão com base em normas preexistentes.

Não me parece que o STF tenha violado quaisquer desses procedimentos no julgamento do “Mensalão”. Mesmo a alegada supressão de instância, no caso daqueles réus que não dispõem da prerrogativa de foro, não procede, já que a decisão do STF em julgá-los funda-se nas regras processuais brasileiras, que admitem a conexão e continência como determinantes da reunião de diferentes ações, para julgamento em conjunto, a fim de evitar a existência de sentenças conflitantes. “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do co-réu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados” (STF - Súmula nº 704 - 24/09/2003).

Logo em seguida à sua condenação por formação de quadrilha pelo STF, o ex-ministro José Dirceu divulgou uma nota na qual declarou, entre outras coisas, que iria acatar a decisão da Corte, que aqueles que votaram pela sua condenação negaram-lhe a presunção de inocência e que “os autos falam por si mesmo”.

Ora, a essa altura dos acontecimentos mesmo José Dirceu deveria ter aprendido que nunca esteve acima da lei e que, portanto, não lhe resta

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alternativa, senão cumprir o que decidiu o STF. Com relação à presunção de inocência, registre-se que se adota no Brasil um modelo de processo penal de tipo acusatório definido por Ferrajoli como

(...) todo sistema processual que tem o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e oral e solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção (FERRAJOLI, 2002. p. 452).

Nesse caso, o juízo penal é o actum trium personarum, sendo que o exercício da jurisdição depende da acusação formulada por órgão ou pessoa distinta do juiz e todo o processo deve desenvolver-se em contraditório, perante o juiz natural. O que significa que a imparcialidade do juiz termina no momento em que profere uma decisão, na qual pode decidir a favor de uma parte e em detrimento de outra.

Quanto à declaração de que os autos falariam por si mesmos em sua defesa, reitero que a aplicação das normas jurídicas requer todo um esforço interpretativo por parte do juiz e que a melhor hermenêutica jurídica reconhece a intervenção de sua subjetividade, ainda que submetida a certos controles, na função jurisdicional.

Para finalizar, registro a impressão de que a ação penal proposta pelo MPF no âmbito do STF não deixa de ser indicativa da baixa efetividade de certos órgãos de fiscalização e controle vinculados aos poderes Legislativo e Executivo e que fazem parte da rede de instituições de accountability horizontal e de controle sobre a Administração Pública no Brasil. A propósito, pode-se indagar sobre as razões que impediram que os ilícitos apurados no inquérito da Polícia Federal e nas investigações do Ministério Público fossem detectados por instituições como o Tribunal de Contas da União e a Controladoria Geral da União.

Seja como for, a decisão do STF pela condenação da maioria dos réus do “Mensalão” suscita a expectativa de que não se repitam os lamentáveis episódios investigados, denunciados, publicizados durante o julgamento do processo e punidos pela decisão majoritária dos ministros do STF.

Referências

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Em Debate, Belo Horizonte, v.4, n.8, p49-52, nov. 2012

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