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Capítulo 2. Llamando los colores: Pecón Quena

3.2 Interações estabelecidas com os donos na prática xamânica

3.2.1 Agentes etiológicos e terapêuticos: rao e copia

Do mesmo modo que os piri-piri há tipos de vegetais rao capazes de aprimorar ou aperfeiçoar a aprendizagem em determinados âmbitos

74 Sobre mais detalhes deste assunto ver Arévalo, 1986, Gebhart-Sayer, 1986, Chaumeil, 1985, Cardenas, 1996, Colpron, 2006.

sociais, como para ser bom caçador, ser boa artesã, ou tornar-se mais generoso. São importantes desde a infância, pois atribuem características como de crescer, engordar, falar, caminhar (COLPRON, 2006: 75 apud Morin, 1973). Os rao pintados nos relatos de Pecón Quena são entidades que possuem caracteríticas de cura ou etiológicas (TOURNON, 2002: 392). A maior parte é constituída pelo universo vegetal, mas também fazem parte alguns animais, sobretudo os que não são domésticos, os fenômenos da natureza, alguns acidentes geográficos, pedras, minerais, a casa e ferramentas de ferro. Nem todas as plantas contêm rao, apenas aquelas que podem interferir no comportamento humano, seja pelo teor fármaco, alucinógeno, sendo ingeridas ou passadas na pele, como os emplastros, banhos, ou as pusangas, pelo seu aspecto perfumado.

Todas as coisas que possuem rao são dotadas de um corpo fisiológico assim como de um ânimo/espírito, yoshin, sendo conhecidas por rao yoshin. Neste caso, exclui-se a noção de alma humana, cujo nome é caya. Segundo Tournon (2002:345) a interação com os espíritos do rao, dentro do arsenal ofensivo/defensivo, e os conhecimentos difundidos por cada mestre rao estão entre os onanya, meraya e yobe75. Eles seguem as restrições morais e alimentares, incluindo a participação de inúmeras sessões com a ingestão de infusões preparadas a partir de algum rao, acumulando, dessa forma, seus poderes e conhecimentos xamânicos. No reino vegetal, indígenas e mestizos chamam a este tipo de rao por plantas maestras, ou plantascon poder. Já o uso material das plantas rao é generalizado, seja para tratar de uma cólica no bebê, ou para que a mulher não engravide, por exemplo, difundidos no cotidiano Shipibo-Konibo, bem como, ao que pude observar, entre os mestizos da cidade de Pucallpa. Estas, por poderem serem tangíveis aos nossos sentidos, como a visão, são chamadas de ibo rao, sendo ibo designado como o dono da planta. Para isto, não é necessário uma comunicação com seu yoshin, basta seguir a prescrição ditada por um especialista delas.

Percebe-se, pois, que é a partir da observação das dietas prescritas que seria acessado os favores do mestre de cada rao, tornando o seu uso permitido, evitando que seja danoso e até mesmo letal. Assumir os tabus para acessar cada rao, nada mais é que poder obter seu benefício, para que elas não se ressintam, e, assim, se vinguem. A partir deste ponto é

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Como em meu campo escutei poquíssimo a palavra meraya, privilegiei a explicação de onanya (aquele que conhece) e yobe (brujo). O meraya, segundo Tournon (2002: 346) seria aquele que vê, que encontra, o qual também está em oposição ao yobe.

importante destacar também a questão da moralidade, onde não há uma divisão maniqueísta de um universo repleto do bem, por um lado, e do outro, seu oposto, o mal. Esta observação revela mais uma nuance dentre as destacadas no xamanismo Shipibo. Assim como as noções de cura/doença são distintas das nossas, também, onde mais vale a interação qualitativa com os mestres que a diferenciação de gênero na iniciação xamânica, da mesma forma, o uso ofensivo/defensivo dependerá do cumprimento das dietas, assim como da negociação que se faz com o yoshin. Este yoshin pode pertencer, portanto, tanto ao reino vegetal, animal, coisas, fenômenos naturais, lugares, como rio, lagoa, serra, monte.

Selon les Shipibo-Conibo, les maîtres fournissent ainsi des signes distinctifs qui permettent de déterminer les propriétés particulières de chaque rao. Plus que de simples analogies, ces indices exhibent les facultés mêmes du rao, qui sont accessibles à toute personne qui observe les tabous alimentaires et comportementaux. Telles sont les exigences des maîtres des rao : pour allouer leurs compétences, les personnes concernées doivent suivre leurs conditions, autrement s‘ensuit l‘affection copia . (2006:77)76

Copia seria uma afecção e indisposição causadas pela ingestão de coisas interditas durante as dietas, vindo como um ―contágio incontrolável‖ dos atributos do mestre (COLPRON, 2006: 72). A meu ver qualificá-lo enquanto incontrolável parece demasiado neste contexto, dado que o xamanismo Shipibo-Konibo, enquanto forma de investigação de princípios ativos da floresta, prescrição de dietas severas, colocando uma série de agentes (sendo estes conhecidos e nomeados) em relação, se realiza em um ―contexto controlado‖ (CALAVIA SAEZ, 2014:12). Afinal, tanto os instrumentos de diagnosticar uma enfermidade, como os que se usa para proteger ou

76Segundo os Shipibo-Konibo, os mestres fornecem assim signos distintivos que permitem determinar as propriedades particulares de cada rao, que são acessíveis a todas as pessoas que observam os tabus alimentares e comportamentais. Tais são as exigências dos mestres dos rao: para adquirir suas competências, as pessoas devem seguir suas condições, senão adquirem a afecção copia.

causar danos, fazem parte de um conjunto de saber que passa pelos modos de fazer, pela iniciação ao conhecimento, pela experimentação e sociabilidade. Embora existam rápidas transformações, reelaborações, intercâmbio entre outras etnias e mestizos, indicando expansão e variação, a eficácia está no controle. O saber xamânico Shipibo, assim como da sociedade Pano Yaminawa, etnografada por Oscar Calavia Saez (2003), possui de forma intrínseca uma lógica controlada, a qual inclui, inclusive, dinamicidade dentro de seus limites controlados.

O contágio pelo copia afeta desde a pessoa que não segue as prescrições do mestre de determinados rao, bem como os seus especialistas que não prescrevem bem a seus pacientes a dieta restrida conduzida pelos mestres do rao yoshin. Estes mestres não estariam apenas no domínio da natureza, podendo fazer parte deles as casas, os utensílios como machados de ferro, pedaços de objetos antigos, bem como alguns de nossos gestos corriqueiros77. Assim como não é possível atribuir a noção de domínio apenas às entidades da floresta no universo Shipibo-Konibo, o mesmo atribui-se em outras sociedades amazônicas.

Nas perspectivas animistas e ontológicas78, os objetos, que prefiro referir-me enquanto coisas, são percebidos enquanto sujeitos pois podem contagiar pela copia, a depender de seu uso. Neste tipo de contaminação denominada copia os perigosos são maiores nos primeiros anos de vida, por isso se cumpre a couvade79, uma observação alimentar e moral cumprida pelos pais concomitante à criança para que esta cresça saudável no devir humano. Com o desenvolvimento da criança o risco de ser afetado pelo copia diminui, e, na mesma medida, se atenua de pouco a pouco a dieta restritiva aplicada ao jovem. Depois a possibilidade de ser afetado pelo copia decresce na medida em que a criança aumenta sua idade, portanto, seu devir humano.