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2.2 O TRABALHO DE CAMPO

2.2.2 Os impedidos de ser mais: sujeitos da pesquisa

2.2.2.1 Agentes socioeducadores (as)

Nesta seção, procuro fazer uma descrição de quem são os(as) ASE envolvidos na rotina com os(as) adolescentes na cultura socioeducativa, seus papéis sociais dentro desta cultura e o quanto esses atores sociais envolvidos nessa dinâmica tem papel significativo na posição que a EFI ocupa naquela realidade particular.

Não houve a escolha de um ou uma ASE específico que servisse como referência para descrever essa categoria de trabalhadores, mas faço aqui uma descrição e interpretação mais geral do papel social dos(as) ASE com os quais tive mais contato durante o período de trabalho de campo. Portanto, a descrição abaixo retrata de forma mais ampla, através dos diálogos e situações vividas por mim no cotidiano daquela cultura, o papel social que os(as) ASE representam no contexto da instituição e na relação com os(as) adolescentes e também com os professores.

A rotina e a carga horária dos ASE é bem diversificada. Alguns trabalham em turnos de 12/36h, outros trabalham 8h e alguns com carga horária de 6h com um plantão de 12h aos finais de semana. Essa rotina dificultou um pouco a possibilidade de encontros frequentes com os mesmos ASE, pois a cada semana era uma nova equipe que estava no plantão. Os ASE trabalham em equipes por turno de trabalho, coordenados e orientados por um grupo denominado de Chefias de Equipe, que também são agentes, porém estas Chefias ganham um valor a mais, por exercerem Funções de Confiança (FC) da direção de cada CASE. Essas chefias geralmente mudam quando há trocas de governo, visto que, de maneira geral, as direções de

cada CASE também mudam quando há troca de governo, sendo estas direções, algumas vezes Cargos de Confiança (CC) e por vezes FC.

A categoria de trabalhadores denominada de ASE, possui algumas funções bem significativas no cotidiano da cultura socioeducativa. Arrisco a dizer que, pela dinâmica observada em quase um ano de trabalho de campo, é esta categoria que tem o poder de dar o ritmo (positivo ou negativo) das atividades de cada CASE. Tanto é que, dependendo do grupo de agentes que está no plantão no turno ou no dia, as atividades pedagógicas ocorrem de forma fluida ou não.

Foram diversas situações por mim presenciadas nesse um ano de trabalho de campo, que demonstram o quanto a interferência positiva ou negativa desses(as) trabalhadores(as), pode contribuir ou não para uma fluidez pedagógica na rotina das atividades da escola e da EFI Escolar e seu papel social tenha condições para acontecer. Situações simples, como a ida dos adolescentes para as atividades da escola de forma pontual, sem atrasos ou não, até na divisão dos adolescentes (enturmação) nas aulas, passam por esta categoria. Percebo que aquilo que eles desejam que aconteça, ou não, é o que prevalece e vai se consolidar na prática.

São estes trabalhadores os responsáveis pela execução da rotina institucional. Eles é quem despertam os(as) adolescentes pela manhã, abrem e fecham os dormitórios, levam para o banho, para as refeições, para a escola, para atividades culturais, esportivas e pedagógicas e profissionalizantes dentro e fora das unidades, fazem a revista sempre que os(as) adolescentes saem e retornam aos dormitórios, fazem a custódia dos(as) adolescentes até as audiências ou qualquer outra atividade fora das unidades, recebem e acompanham as famílias em dias de visitas, e são aqueles que separam as brigas quando estas ocorrem entre os(as) adolescentes. Estas e outras funções extremamente importantes, estão a cargo desta categoria, proporcionando, ou não, a tranquilidade e fluidez institucional necessitam ter para acontecer. Essa proximidade maior de tempo, entre os ASE e os (as) adolescentes constrói e se apresenta em um vínculo muito forte, o que de certa forma, permite que eles sejam uma categoria importante na rotina e nessa relação, tanto da escola quanto da instituição.

Assim, as atividades de trabalho possibilitam a construção de saberes de experiência feitos, na expressão de Freire, “uma sabedoria que resulta das experiências socioculturais em que os(as) trabalhadores(as) estão imersos” (Freire, 1992, p.85 e 86)

Essa categoria de trabalhadores, assim como qualquer outra, mas nesse contexto particular, traz consigo toda sua bagagem política, afetiva, cognitiva, econômica, prática, suas vontades, medos, anseios e pré-julgamentos que acabam por interferir no modo de lidar com os adolescentes na rotina institucional. “Não há como separar o que há em mim de profissional do que venho sendo como homem”. (Freire, 1997, p. 81). Mas também, os contextos e situações de trabalho são espaços de construção de uma identidade que se desenrola na trama do tempo, pois essas situações e experiências permitem aos trabalhadores se constituírem em sujeitos do trabalho.

Pude perceber que alguns destes profissionais possuem um “olhar” ainda de carcereiros que entendem como função socioeducativa somente a dominação dos corpos e sua docilidade acrítica, talvez ainda resquícios de uma cultura socioeducativa presente na época da antiga FEBEM. Porém, outros, percebem que o papel que lhes compete ali naquela cultura, vai além de manter uma “simples” tranquilidade institucional, ou somente abrir e fechar cadeado, mas lhes compete sim, promover uma socioeducação emancipadora, humanizada e potencializadora de consciência crítica, mesmo dentro de todas as adversidades a que estão sujeitos. Adversidades essas que se materializam em prédios insalubres, carga horária excessiva, ambientes tensos e periculosos, na maioria das vezes. Esses impedimentos, são significativos no modo como eles lidam com essas rotinas e na tentativa de realmente fazer socioeducação. O conflito entre estes e aqueles que percebem aquela cultura como sendo prioritariamente de controle também é bem grande.

Rizzini (2004) diz que o Código Mello Mattos inaugurou um modelo de assistência pública herdado da ação policial, com funções relativas à vigilância, regulamentação e intervenção diretas sobre os menores‟ abandonados e delinquentes, primando pela sua institucionalização, sistema este que vigorou até meados da década de 1980 no país, fato este que tem reflexos ainda hoje e que parecem resultar em práticas menos humanas e mais punitivas por parte de alguns ASE.

Há por parte de alguns ASE uma aparente acomodação. Algumas vezes parece até “engraçado”, o quanto as cadeiras plásticas espalhadas por todos os setores dos CASE’s, parecem fazer parte do “corpo” dos ASE, ou uma continuação de seus corpos. Aonde vão, pra onde se locomovem, levam uma cadeira junto deles.

Alguns, algumas vezes, pareciam incomodados ao me verem de pé, assistindo as aulas, ou mesmo conversando com eles. Logo tratavam de achavar e me oferecer uma cadeira.

Certa vez, em um diálogo com o ASE G.B, ao questioná-lo sobre a dinâmica daquele CASE, ele responde: “essa casa é tranquila pra trabalhar, não tem quase nada pra fazer, não ficam inventando moda e atividades pra dar trabalho pra gente”.

Ao analisar as funções11 específicas dessa categoria de trabalhadores, é notório que essa categoria tem uma função bem significativa no andamento da rotina dos CASE’s, assim como no vínculo com os(as) adolescentes. As adolescentes denominam esses profissionais como “tio” e “tia”. Já os adolescentes se dirigem aos profissionais como “seu” e “dona”12

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Atualmente, esses trabalhadores, dão entrada na Fundação através de concurso público, tendo como exigência para ingresso, além da aprovação no concurso, possuir nível médio de escolarização. Após aprovação e tomada a posse nos cargos de ASE, esses trabalhadores passam por uma formação teórico/prática, que dura em torno de um mês, antes de entrar definitivamente na rotina de trabalho com os (as) adolescentes. Essa formação tem como função situar os ASE sobre o contexto que estarão inseridos, informar sobre suas funções obrigações e direitos, um apanhado geral sobre as atribuições e como se desenvolve as rotinas na Fundação. Nesse período de um mês, eles passam por praticamente todos os CASE’s, com a intenção de que conheçam todas as unidades, suas rotinas, particularidades e estruturas físicas. Cada CASE tem sua particularidade. Os CASE’s onde a pesquisa ocorreu, estarão mais detalhados na seção sobre as escolas.

Após este período de formação, os ASE então recebem suas lotações e estão aptos a iniciar seus trabalhos no período de experiência, que tem duração de três meses. O tempo de “estágio probatório” dos funcionários da Fundação é de três meses, pois seu regime de trabalho é regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), se enquadrando na categoria de empregado público.

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Descrição completa em anexo e disponível em: http://www.al.rs.gov.br/legis/M010/M0100099.ASP?Hid_Tipo=TEXTO&Hid_TodasNormas=60466&hT exto=&Hid_IDNorma=60466 > Acesso em: 20 abril, 2018

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Na rotina observada, dependendo do plantão, os ASE participam junto com os (as) adolescentes das atividades orientadas pelos professores, principalmente quando estas atividades são jogos coletivos como futebol e vôlei. Alguns ASE relatam que estes momentos são bem importantes para eles pois podem se movimentar e também porque ajuda o tempo a passar mais rápido, além de fortalecer o vínculo com os(as) adolescentes.

Em um diálogo com o ASE J.P, com quase 30 anos de Fundação (divididos entre a antiga FEBEM e a FASE), ele fala sobre o perfil dos adolescentes da FASE e a importância do vínculo dele com esses adolescentes.

Excerto diário de campo dia 23/08/2018, ASE J.P

“Aqui a gente não está pra julgar ninguém. Esses guris tem uma vida miserável desde sempre, isso aqui é o fim. Sou da época que prendiam aqui os guris que eram moradores de rua. A gente tem que oferecer pelo menos o mínimo de dignidade, não me interessa o que ele fez lá fora, não sou eu quem vai resolver, não tô aqui pra isso. Preciso ter um bom vínculo com eles, pra poder trabalhar sossegado e que eles tenham um mínimo de dignidade garantida. Já vi colega morrer na minha frente, fiquei afastado por um tempo daqui traumatizado, mas voltei porque é meu trabalho e porque acredito que pode ser diferente. Não sou juiz.

Em outra situação, durante uma conversa com um ASE do qual eu encontrava com um pouco mais de regularidade, ele relata que pediu para sair daquele CASE pois estava insatisfeito com o que conseguia produzir ali. Ele diz que desde que entrou na FASE, só consegue “abrir e fechar” cadeado, e que acredita que pode fazer muito mais.

Excerto diário de campo dia 04/08/2018, ASE M.J

“Acho que semana que vem não tô mais aqui professora. Pedi pra trocar de casa. Acho que posso fazer muito mais que abrir e fechar cadeado, e aqui não me deixam. Antes de largar tudo de vez, quero trabalhar em outra casa, nunca trabalhei em outra, tenho esperança que não sejam todas iguais. Tô adoecendo aqui dentro, a minha família já tá reclamando. Tô até tomando remédio pra aguentar tudo isso. A senhora sabe como funciona em outras casas, já que a senhora passa por várias?”

O diálogo acima continuou, no entanto não respondi a ele a forma como eu entendia a dinâmica dos demais CASE’s que eu observava, apenas respondi que entendia sua angustia e que torcia para que sua solicitação de remanejo fosse

aceita. A angústia apresentada por este agente, através da fala acima, é sentida e expressada também por outros trabalhadores, e que acredito estar bem representada no excerto acima.

As suas frustrações, negações de suas capacidades de atuação através de uma prática mais humanizadora e propositiva, e menos encarceradora de corpos, se apresentam por vezes bem forte. O impedimento de estar sendo naquele contexto, parece adoecer aqueles que enxergam a possibilidade de ser mais naquele contexto. Há o aparente impedimento de uma práxis transformadora da realidade, que não permite que a sua vocação de ser mais seja possível de acontecer. Nesse sentido, Freire (2016) bem coloca que homens reduzidos ao puro fazer, são impedidos de contribuir para a transformação as estruturas a serem transformadas.

As diversas concepções de mundo, de ver a compreender o universo socioeducativo, e os conflitos existentes pela disputa hegemônica dessas diferenças, não se fazem presentes somente na cultura socioeducativa. Mas lá, nesta cultura escolar inserida em uma Instituição total e de controle, que tem como algumas de suas características a docilidade dos corpos para que tudo flua com menos tensão possível, as visões de mundo mais progressistas e humanizadoras parecem sufocadas e parecem perder espaço. Porém, acredito que garantia de uma docilidade aparente e de silêncio são equivocadas, pois assim como Freire (2001), acredito que “os silenciados não mudam o mundo”.

A disputa por espaço e o fazer pedagógico dos professores de EFI da escola, passa necessariamente pelo ASE que se percebe socioeducador e o ASE que se percebe carcereiro.