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Agravação pelo resultado

No documento Crimes contra animais de companhia (páginas 130-133)

CRIMES CONTRA ANIMAIS DE COMPANHIA 4 Crimes contra Animais de Companhia Enquadramento jurídico, prática e gestão processual

IV. Hiperligações e referências bibliográficas I Introdução

2. O crime de maus-tratos a animais de companhia 1 O Tipo Objectivo de Ilícito

2.5. Agravação pelo resultado

O artigo 387.º, n.º 2, do Código Penal prevê que, sempre que dos maus-tratos previstos no n.º 1 resulte a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afectação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

Uma parte da doutrina tem entendido que não é punível a morte do animal de companhia a título doloso, argumentando, para tanto, que esta norma prevê um tipo preterintencional, em 25 Cfr., a este propósito, a Lei n.º 27/2016, de 23 de agosto: “6 — A eutanásia pode ser realizada em centros de recolha oficial de animais ou centros de atendimento médico veterinário, por médico veterinário, em casos comprovados de doença manifestamente incurável e quando se demonstre ser a via única e indispensável para eliminar a dor e o sofrimento irrecuperável do animal. 7 — Em qualquer dos casos, abate, occisão ou eutanásia, a indução da morte ao animal deve ser efectuada através de métodos que garantam a ausência de dor e sofrimento, devendo a morte ser imediata, indolor e respeitando a dignidade do animal”.

26 Neste sentido, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, op. cit., p. 1238.

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que o crime imputado a título doloso (maus-tratos do n.º 1) produz, a título negligente, um resultado não pretendido pelo agente do crime.27

Não podemos concordar com tal entendimento, acompanhando Maria da Conceição Valdágua28 na perspectiva de que o artigo 387.º, n.º 2, do Código Penal consagra um crime

agravado pelo resultado, que poderá abarcar a causação dolosa da morte do animal. Senão vejamos.

O artigo 18.º do Código Penal prevê que “Quando a pena aplicável a um facto for agravada em função da produção de um resultado, a agravação é sempre condicionada pela possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a título de negligência”. O resultado

agravante previsto nesta norma não terá necessariamente de configurar a prática de um resultado típico negligente (como acontecia nos crimes preterintencionais), abrangendo também a causação de um resultado agravante dolosamente produzido.

Como refere Figueiredo Dias, o crime agravado pelo resultado referido no artigo 18.º do Código Penal vigente representa a muitos títulos o abandono da figura do crime preterintencional, pois “o resultado agravante não tem – como acontecia com o crime preterintencional – de constituir um crime negligente: quer porque ele pode perfeitamente constituir um simples estado, facto ou situação que em si mesmos não possa considerar-se criminoso (…); quer porque pode constituir um resultado típico cometido com dolo eventual numa hipótese em que a lei apenas puna o facto quando cometido com dolo directo.”29

Acresce que não é possível matar sem lesar a integridade física – a causação dolosa da morte constitui a forma mais gravosa de maus-tratos físicos30, traduzindo-se na lesão (irreversível)

das funções vitais do animal. Ou seja, as lesões causadoras da morte integrar-se-ão sempre no conceito de “outros maus-tratos físicos” previsto no n.º 1 do artigo 387.º do Código Penal (mesmo que a morte, sendo imediata, não cause dor ou sofrimento no animal).

É certo que o legislador não adoptou a melhor técnica legislativa ao punir com a mesma moldura penal os resultados agravantes previstos no n.º 2 do artigo 387.º do Código Penal, quer sejam os mesmos causados a título doloso ou negligente. Ainda assim, naturalmente que o julgador terá em conta as diferenças de graduação de ilicitude e de culpa, para efeitos da determinação da medida concreta da pena, de acordo com o disposto no artigo 71.º do Código Penal.

Importa não esquecer que o princípio da legalidade não afasta as regras da interpretação previstas no artigo 9.º do Código Civil, desde que o caso caiba “em algum dos sentidos

27 Cfr. FARIAS, Raul, op. cit., p. 224.

28 Autora que, neste ponto, seguiremos de perto. 29 DIAS, Figueiredo, op. cit., p. 318.

30 O deputado Pedro Delgado Alves, que participou na elaboração do projecto-lei que originou a criminalização dos maus-tratos a animais de companhia, também se pronunciou neste sentido – cfr. ALVES, Pedro Delgado - Desenvolvimentos recentes da legislação sobre animais em Portugal: uma breve crónica legislativa, In: Animais: Deveres e Direitos, op. cit., p. 27.

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possíveis das palavras da lei”31, sendo que, além desse elemento literal, o intérprete deverá

também ter em consideração os outros critérios hermenêuticos (histórico, sistemático e teleológico).

Assim, configuraria uma “incompreensível contradição valorativa (…) contrária aos mais elementares princípios de direito penal material e seguramente não querida pelo legislador, não punir o dolo de produzir um certo resultado e punir a produção desse mesmo resultado por negligência”.32 “Tal interpretação equivaleria a presumir que o legislador, por vez de ter

consagrado as soluções mais acertadas (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), consagrou as mais incongruentes e totalmente incompatíveis com os princípios da culpa, da proporcionalidade e da justiça material”.33

2.6. Concurso

De acordo com o disposto no artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta agente”. Doutrinalmente, classifica-se a primeira hipótese como concurso efectivo heterogéneo, a segunda como concurso efectivo homogéneo.34

O bem jurídico assume, na complexa questão do concurso de crimes, um relevo primacial e insubstituível (devendo ainda o aplicador do Direito recorrer aos restantes elementos típicos – o autor, a conduta, e o tipo subjectivo de ilícito35) numa perspectiva de consideração global do

sentido social do comportamento que integra o tipo. Para Figueiredo Dias, “é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal que decide, em definitivo, da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes”.36

O artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal prevê que “Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios, é punido com pena de

prisão até três anos ou com pena de multa”. Entre o crime de dano e o crime de maus-tratos a animais de companhia poderá, em abstracto, verificar-se uma situação de concurso efectivo ideal, quando, com uma única acção, o agente cause dolosamente lesões físicas em animal de companhia alheio. Isto porque o bem jurídico tutelado pelos dois crimes é completamente distinto – no dano protege-se a propriedade, nos maus-tratos a animais de companhia a vida e a integridade física dos animais, na acepção “supra” explicitada.

31 DIAS, Figueiredo, op. cit., p. 189.

32 VALDÁGUA, Maria da Conceição, op. cit., p. 205. 33 Idem, p. 181.

34 DIAS, Figueiredo, op. cit., p. 981.

35 “…o tipo objectivo tem sempre como seus elementos constitutivos o autor, a conduta e o bem jurídico, só da conjugação destes elementos - e também da sua ligação ao tipo subjectivo de ilícito - resultando o sentido jurídico- social da ilicitude material do facto que o tipo abrange. O que vale por dizer que todos estes elementos parece deverem ser tidos em conta e valorados - e não apenas em si mesmos, mas ainda no sentido que da sua consideração global resulta - na determinação da unidade ou pluralidade de tipos violados”. – DIAS, Figueiredo, op. cit., p. 987.

36 Idem, pp. 986 e 989.

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A este propósito, importa salientar, quanto ao elemento histórico de interpretação da norma, a intervenção parlamentar do deputado Cristóvão Norte (um dos autores do projecto lei n.º 475/XII, que deu origem à Lei n.º 69/2014, de 29-08), no âmbito da votação na generalidade do novo diploma: “abre-se uma nova página, um novo paradigma, porque a protecção dos animais de companhia deixa de se operar exclusivamente por via do crime de dano, que era apenas uma protecção reflexa, e passa a operar-se também por via directa, tratando-se de

uma mudança de paradigma civilizacional que valoriza o animal não pelo seu proprietário mas, sim, pelo seu valor intrínseco”.37

E se, por exemplo, determinado indivíduo furta um animal de companhia alheio e posteriormente o mata, há concurso efectivo entre o crime de furto (que consome o de dano, nos termos gerais, como facto posterior não punível) e o crime de maus-tratos a animal de companhia agravado pelo resultado, nos termos previstos no artigo 387.º, n.º 2, do Código Penal.

Já entre o crime de maus-tratos e o crime de abandono de animais de companhia verifica-se uma relação de concurso aparente, conforme melhor explicitado no próximo capítulo deste trabalho.

O número de animais-vítimas estará, por princípio, associado ao número de vezes que o mesmo tipo de crime é preenchido pela conduta do agente38, atendendo ao referido “valor

intrínseco” que cada animal, enquanto ser senciente, representa – sendo a sensibilidade dos animais determinante para a sua distinção, também no plano civil, em relação aos objectos. Como se pode ler no artigo 201.º-B do Código Civil, “Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objecto de protecção jurídica em virtude da sua natureza”. Acresce que o artigo 387.º singulariza, referindo-se “a um animal de companhia” e à “morte do animal”.

Importa, contudo, não perder de vista que, para aferir da “pluralidade de sentidos sociais autónomos dos ilícitos típicos cometidos”39, o aplicador do Direito terá sempre de analisar as

especificidades do caso concreto, e ter em atenção que a culpa determina o limite inultrapassável da pena que poderá ser concretamente aplicada ao agente (artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal).

3. O crime de abandono de animais de companhia

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