• Nenhum resultado encontrado

Yjxa: entre consanguíneos

AGRESSORES, ESPÍRITOS E SANGUE

O leitor habituado às etnografias de etnologia ameríndia – como as de Clastres (1995), Viveiros de Castro (1986), Gallois (1988) e Lima (2005), cujas análises sobre a procriação entre os Aché, Araweté, Wajãpi e Yudjá foram bastante sugestivas para a interpretação da versão Karitiana desse processo – pode estar um pouco aflito. Onde estaria, nesta etnografia aqui apresentada, os outros entes de coletivos não humanos, que tanto preocupam, por exemplo, os pais de recém-nascidos Wajãpi? Vejamos o que diz Dominique Gallois (1988, p. 201) a respeito:

Quando mencionam os perigos que envolvem os recém-nascidos e seus pais, os Wajãpi se referem essencialmente à agressão xamanística – o roubo da alma – perpetrada pelos mestres de espécies naturais ou por xamãs de grupos inimigos. Veremos que nos dois casos, o processo de agressão é o mesmo e que as entidades que interceptam princípios vitais são sempre as mesmas: instrumentos de um mesmo ethos canibal. Assim, quando o jovem pai deixa de caçar, pescar e cortar árvores ele procura não p o o a os do os dessas esp ies, ue se i ga ia so e a uela pa te ais ole , mais desprotegida de sua pessoa, o –ã de seu filho.

99

Fora isso, des e e u a fa ília de elaç es (um marido-e-seu-g upo a pa ti da procriação implica, para os Karitiana, adotar o ponto de partida do corpo, e não da alma, como parece ocorrer entre os Yudjá (Lima, 2005, esp. p. 134-147). A família nuclear é, po ta to, u do í io de t a sfo aç o de sa gues, ali e tos, e dios do ato ue o st oe a filiaç o, a pate idade, a ate idade, e su a, se es humanos. É o processo de consubstancialização – por meio da procriação, do convívio e da comensalidade –, portanto, que arquiteta parentes e estabelece distâncias entre os mesmos.

O ue disti gue os pa e tes p i o- eais dos dista tes a eafi aç o o tí ua dos vínculos de consubstancialidade no trabalho da vida diária. Os corresidentes são o foco da proibição [incesto] [...] não por causa de uma consubstancialidade originária ( ue pode es o falta as po ue o ti ua se o su sta ializa do ‒

consanguinizando-se através da coprocriação, do convívio e da comensalidade (Coelho de Souza, 2002, p. 608).

Da concepção ao desmame, tal processo permite, paulatinamente, a criação de um lugar ao novo ser (e a seu pai, e a sua mãe).27 A morte de um corresidente é lamentada nos

termos da consubstancialização. Quando do falecimento da mulher do seu pai, uma amiga lamentava-se se pa a : Eu gosta a tanto dela, a ge te o ia ju to... .

Assim, para meus anfitriões, sai do sa gue e passa para o assu to espí ito só faz sentido em determinadas condições específicas. A esse respeito, sinto-me contemplada com a observação de Aparecida Vilaça ( pa a os Wa i . Co st ui u novo consanguíneo é, de algum modo, abdicar de mencionar suas almas, ou notá-las como uma potência:

The Wa i data allo us to thi k of the p o le i a othe fashio o , ette still, to relocate the body/soul di hoto i diffe e t te s. Fo the Wa i , the soul ja o l

27 A consubstancialização não deve ser entendida, porém, como simples manipulação de relações. Nos

te os de Ma ela Coelho de Souza , p. , ela u p oduto desse elacionamento; não uma li guage figu ada ue pe ite a a ipulaç o de elaç es eais, as u efeito eal de u a

a ipulaç o ue o siste, e e dade, seja a o st uç o do pa e tes o ali o de ele o e istia (no contexto da família conjugal e da afinidade efetiva), seja na sua conservação, ali onde ele tende a caducar (no contexto da família natal). É para esta construção/reconstrução que se dirigem

ordinariamente os esforços dos agentes; é a construção do parentesco que constitui o objeto de sua aç o .

100

exists when the body is in some way absent as i e t : i d ea s, i se ious ill ess […], a d at death. The e is o soul li ked to the od , a d speaki g a out so eo e s soul is an indelicate act, as though their death were desired of foreseen. The soul is above all a potency, related to the capacity to produce another body (Vilaça, 2002, p. 361).

Mas a pouca menção a não humanos, e aos espíritos dos bebês, não significa a impossibilidade de roubos do princípio vital do recém-nascido. E então, tal como os Wa i , os Ka itia a se efe e a se es ão humanos e aos espíritos de seus filhos. Como vimos, o pai do bebê que nasceu em 1993, no período em que Carlos Frederico Lúcio (1996, p. 79-80) esteve em campo, eza a so e ele, pa a ue sua al a o fosse roubada. Já Felipe Vander Velden (2012b, p. 245 nota 17) menciona que, em 2003, assistiu a u a sess o a i a ujo i tuito foi esgata a al a do filho e -nascido de Jo o, ue esta a g a e e te doe te . Em ambos os registros, não houve menção sobre qual ser poderia ser responsável pelo roubo. Contudo, comigo os Karitiana não comentaram essas possibilidades, e devem ter subsumido – à maneira dos Araweté (Viveiros de Castro, 1986, p. 216-218), que se referem a um conjunto de não humanos a partir dos ãñĩ, e dos Wajãpi (Gallois, 1988, p. 239-241), que fazem o mesmo tomando o termo añã – o efeito-espí ito Vi ei os de Cast o, , p. à categoria pysa e (espíritos) uma série de coletivos não humanos que habitam seu cosmos.28

Com efeito, tive muita dificuldade em obter dos Karitiana informações sobre potenciais agressores não humanos. Eles são mencionados em uma das músicas cantadas na Festa dos Remédios, da qual trataremos com mais vagar no próximo capítulo. Vejamos a canção:

Byyj sopipok Chefe esperto

A kida oti ytasopipok tyni Ficaremos espertos com a doença

Popo ototy ytasopopok ty i Ficaremos espertos com Popo otot

Horandyp ytasopopok tyni Ficaremos espertos com Horandyp

28 Veremos, no próximo capítulo, que o termo com o qual os Karitiana se referem aos ogros da floresta,

kinda, é uma categoria mais abrangente que pysa e (espírito), uma vez que esses últimos também

são considerados entes kinda. Contudo, os pysa e habitam as aldeias; mantêm, portanto, um convívio muito íntimo com os Karitiana. Por essa razão, faço a aposta ue te ha su su ido o efeito- espí ito aos ag esso es a eles ais p i os.

101

Syypoharadna ytasopopok tyni Ficaremos espertos com

Sypoharadna

Amoregnga ytasopopok tyni Ficaremos espertos com Amoregnga

Gokypty ytasopopok tyni Ficaremos espertos com Gokypty

Bypanty ytasopipok tyni Ficaremos espertos com Bypanty

Ytasopipok tyĵa yta Estamos espertos

A palavra sopipok, t aduzida f e ue te e te o o espe to, des e e a ha ilidade pa a es apa de ata ues pidos (Vander Velden, 2011b, p. 30). Popo otot [Grande Cair Morto], Syypoharadna [Olhos Lambidos],29 Amoregnga e Horandyp são os

nomes dos que os Karitiana se referem a entes magnificados que atacam meus anfitriões.30 Os dois primeiros seres são comumente traduzidos por malária ou

meningite, e, por isso, não parece à toa que que os Karitiana utilizem ativamente a planta syrypotap [dia des io] o o u e dio do ato contra a malária,31

comercializando, inclusive, o preparado em Porto Velho (ver figura 11).

Não é por falta de ofensiva, certamente, que os Karitiana não precisam se cuidar. Arrisco-me a interpretar essa pouca menção em relação aos não humanos predadores, bem como aos espíritos dos bebês, em relação à ênfase dos Karitiana nos cuidados que

29Co o e io a os a i a, algu as das a i as do ato s o usadas os olhos do bebê, mas não

houve consenso mínimo entre os informantes com quem conversei sobre quais são as plantas aplicadas as istas. Te do e ista ue essa doe ça a a odifi a os olhos, possí el i agi a ue as

a i as p otege o t a esse al específico.

30 Fico devendo informações mais precisas sobre Gokypty e Bypanty. Esses seres, que podem ser

traduzidos, respectivamente, como Grande Sol e Grande Arma – tyy é o modificador superlativo (e o p e o o e ta de Popo otot [G a de Cai Mo to], glosado para o português pelo termo g a de –, nunca foram mencionados por meus anfitriões quando os solicitava informações sobre quem eram os não humanos que lhes faziam mal; talvez, pela minha ênfase em saber mais sobre

doenças . Se Bypanty é, muito provavelmente, o ente que controla as agressões por meio de flechas e armas, sei apenas que Gokyp, o sol, é uma criança peralta e muito quente, que precisou ir para o céu porque era impossível aos humanos se aproximarem demais.

31 É i te essa te ue os Karitiana especulem, em alguns momentos, a partir do que aprenderam na

escola ou com agentes de saúde e de controle de endemias, que a malária seja transmitida pelo mosquito anofelino (chamado mãe da malária). Não obstante, a doença continua sendo pensada como entidade invisível que circunscreve ameaçadoramente a aldeia e os indivíduos. Esses espíritos ou bichos maléficos estão associados a diferentes fenômenos atmosféricos (certas qualidades de chuva, trovões e relâmpagos, assim como ventos e redemoinhos) cuja manifestação indica a ameaça (sempre) presente de doe ça Va de Velde , a, p. .

102

envolvem a gestação e o nascimento dos mesmos, retomando a argumentação de Viveiros de Castro (2002a) já mencionada neste capítulo. Mobilizando a linguagem ag e ia a e ue dife e tes t adiç es p essup e o o t aste e t e o dado e o o st uído (Viveiros de Castro, 2002a, p. 404), o autor afirma que, entre as populações ameríndias da Amazônia, a afinidade é o odo ge i o de elaç o so ial (Viveiros de Castro, 2002a, p. 409).

A afinidade, portanto, é da ordem do dado, ao passo que a consanguinidade é construída (Viveiros de Castro, 2002a, p. 406). Nessa linha de raciocínio, as agressões, o jeito privilegiado de se relacionar com aqueles que são diversos, são igualmente dadas ‒ tornam-se um pressuposto de pensamento. O mesmo se pode dizer do espírito do bebê: como ser vivo, sua alma existe a priori, como dos demais entes do universo; seu corpo (humano) ‒, contudo, está por ser construído. A respeito disso, preocupam-se meus anfitriões, e, portanto, realizam com tamanho cuidado as práticas descritas ao longo deste capítulo.

A ênfase no parentesco pareceu ser tanta para me explicar os cuidados envolvidos na criação de um bebê que o grupo mencionou os males que o acometem e que podem matar porque permitem a aproximação dos espíritos (que, afinal, já foram Karitiana) por intermédio das relações entre eles mesmos: os nexos de pais e filhos – todos os pais são potencialmente descuidados, e, confirmado esse quadro, seus filhos não poderão resistir às violências do mundo – e entre parentescos diversos por meio da feitiçaria, i upç o da iol ia [...] produzida pela própria dinâmica do parentesco (Vanzolini, 2013, p. 360).

É usa do te os de su st ia ue essas ag ess es s o o p ee didas: das pessoas ujo o po ta e to so ial desap o ado ou o de ado dito o te e sa gue (Vander Velden, 2004, p. 156). Embora seja recorrente que algumas pessoas sejam consideradas feiticeiras ( a u ei as , no português Karitiana), todo parente é potencialmente um malfeitor. Diversas situações concretas foram explanadas como resultado de sortilégio, i lui do o fato de uase a a a e : o período acentuado de declínio populacional se deu, na percepção Karitiana, em razão dos feitiços que uns jogaram contra os outros, e não por conta, por exemplo, das agressões de não indígenas.

Para ser acusado de algum malefício, não são necessárias provas materiais: basta que todos saibam que o suspeito possui algum tipo de contenda com aquele que foi

103

agredido. Por exemplo, o acidente de carro ocorrido com o presidente da Associação Akot Pytim Adnipa – Do Povo Indígena Karitiana ao volante, em abril de 2012, e que resultou na internação de um de seus filhos, foi interpretado por um dos casais que me hospedou em campo como resultado das pragas jogadas pelos oponentes da chapa vencedora da eleição, ocorrida em novembro de 2011. Nossa pala a fo te , afi ou- me nessa ocasião a jovem filha do casal.

A enunciação de qualquer parente resulta, portanto, em malfeito. Assim, explicaram-me ainda a morte de um jovem amigo, que descobriu tardiamente um câncer e veio a falecer em março de 2014. Quando estive pela última vez entre os Karitiana, poucas semanas após seu sepultamento, sua morte ainda era assunto de intensa especulação. Para sua família, a doença foi causada pela feitiçaria feita pelo primeiro namorado de sua mulher, que não teria se conformado com o fato de não ter com ela se casado; para a família da esposa, o pai do rapaz que provocara o mal, uma vez que o filho optou por morar junto a seu sogro.

Daqueles que, certamente, queriam ficar um pouco mais neutros nessa contenda, ouvi ainda uma terceira explicação. Os pais do meu amigo não teriam atentado à abstenção sexual necessária à criação de um filho verdadeiramente forte. Só pode resistir a um u do de ata ues ‒ incluindo a violência interna dos próprios pa e tes ‒ u o po e o stituído, de fato, desde sua geração.

104

Capítulo 3 ‒

Documentos relacionados