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3 SINDICALISMO DE TRABALHADORES RURAIS E AGRICULTURA

3.4 O novo sindicalismo: o setor rural da CUT

3.4.2 Agricultura familiar: uma categoria em discussão

O reconhecimento político da agricultura familiar no espaço rural brasileiro contribuiu

consideravelmente para a unificação da grande maioria dos movimentos sociais do campo. Esta valorização ocorreu, sobretudo a partir da criação do Pronaf (WANDERLEY, 2003) que

representou a legitimação da importância desta categoria socioeconômica – o agricultor familiar (SCHNEIDER, 2003). Quando o Pronaf foi instituído, a agricultura familiar se desprendeu das representações sociais que o termo “camponês” carregava e, ao mesmo tempo, representou o começo da valorização da condição de um tipo produtor rural que se distinguia do produtor do modelo de produção agrícola patronal (cf. WANDERLEY, 2011).

É a partir desse momento que os agricultores familiares passaram a ser percebidos como um ator social importante, enquanto portadores de uma concepção de agricultura diferenciada e alternativa àquela latifundiária e patronal, não mais reconhecidos como “pobres do campo”,

“produtores de baixa renda”, “pequenos produtores” e/ou “agricultores de subsistência” (cf. WANDERLEY, 2000; 2003). Wanderley (2003) salienta ainda que, na maioria dos países onde os efeitos da “agricultura moderna” têm se mostrado perversos às populações do campo, esses agricultores familiares se colocam, em grande medida, como porta-vozes de outro tipo de agricultura moderna e se estabelecem como contraponto ao modelo produtivista de agricultura. É preciso, no entanto, salientar que agricultura familiar apresenta um complexo grau de diferenciação social. Ela vai desde os produtores familiares altamente integrados aos mercados, àqueles que ainda sofrem com a falta de políticas públicas de inclusão produtiva, e como muita dificuldade, têm conseguido erguer seu patrimônio familiar.

De modo geral, esse reconhecimento dos agricultores familiares na sociedade brasileira pode ser compreendido a partir de algumas mudanças no campo das representações sociais e percepções sobre a nossa agricultura. Um primeiro aspecto refere-se à orientação assumida pelos debates acadêmicos no sentido de evidenciar a agricultura familiar como um modelo sustentável de produção e como forma de superar as desigualdades presentes no meio rural. Em seguida, a formulação das políticas públicas de apoio à agricultura familiar demonstrou a incorporação por parte do Estado das demandas dessa categoria. Por fim, não menos relevante, consideramos a centralidade obtida pela agricultura familiar nos movimentos sociais rurais, especialmente, no movimento sindical rural.

Nesse mesmo sentido, Medeiros (2001) afirma que a emergência da agricultura familiar esteve associada, principalmente, ao aumento da relevância dos pequenos produtores no interior do sindicalismo e à formulação de políticas públicas para o segmento. Martins (2003), também nessa mesma linha, ressalta que a década de 1990, de fato, caracterizou-se como momento que estabeleceu novos horizontes à pequena agricultura, destacando o Pronaf como um instrumento de reconhecimento da agricultura familiar enquanto protagonista de um projeto econômico (de desenvolvimento) viável para o espaço rural brasileiro.

É preciso ressaltar que desde muito antes dos anos de 1990, os estudos acadêmicos já sinalizavam para um “reconhecimento” desse tipo de agricultura. Um exemplo é a pesquisa coordenada por José Francisco Graziano da Silva intitulada de “Estrutura agrária e produção de subsistência na agricultura brasileira”. Essa pesquisa, que por sinal, foi uma demanda da Contag aos pesquisadores da UNESP/Botucatu, que, sob a coordenação do professor Graziano, objetivava compreender a importância da pequena produção no quadro de desenvolvimento capitalista daquela época. Ela já deixava evidente a relevância econômica e social da “pequena produção” naquele momento em que uma parte do debate acadêmico acreditava que ela estaria

indubitavelmente condenada ao desaparecimento (SILVA, 1978). Essa referida pesquisa pôde perceber importância da produção camponesa nas faixas de áreas de até 50 hectares.

[...] essa importância se revela em três planos: no número de pessoas envolvidas, tanto pelo seu valor absoluto, como em comparação com o que deveria representar a forma dominante de trabalho sob o desenvolvimento do capital, ou seja, o assalariamento; em termos geográficos, isto é, da ocorrência generalizada dessas formas em praticamente todas as regiões estudadas; e, finalmente, na sua contribuição no produto gerado (SILVA, 1978, p. 240).

Kageyama & Bergamasco (1989), no mesmo sentido, publicaram na década de 1980, um estudo que analisou os resultados do Censo Agropecuário de 1980. Esse estudo apresentou “uma tipologia de unidades produtivas da agricultura brasileira, mostrando suas principais características econômicas e sua importância relativa na produção agrícola nacional” (p. 55). Sua conclusão foi de que os estabelecimentos agropecuários que alocavam a mão de obra familiar correspondiam a 71% dos estabelecimentos rurais do país, a 42% da área total e a 74% do pessoal ocupado no total da agricultura brasileira.

Na década de 1990, com base nos dados Censo Agropecuário do ano de 1996, um estudo de cooperação técnica entre a FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação) e o MDA, coordenado por Carlos Guanzirolli, apresentou uma nova tipologia de caracterização do perfil da agricultura familiar brasileira. Foram identificados 4.139.369 milhões de estabelecimentos agropecuários familiares, de um total de 4.859.732 milhões, ou seja, pouco mais de 85% dos estabelecimentos eram da agricultura familiar (GUANZIROLLI et al., 2001). Inúmeras outras pesquisas evidenciaram a importância da agricultura familiar como uma forma de produção indispensável à construção de um modelo de desenvolvimento rural que possa superar as desigualdades historicamente existentes no meio rural brasileiro.

O fato é que a agricultura familiar no Brasil tem sido alvo de interesses crescentes, tanto por parte do Estado, através das políticas públicas destinadas ao segmento, quanto da sociedade civil, por meio da ampliação dos órgãos de representação sindical dessa categoria produtiva. Essa situação alcançou ainda mais visibilidade com a promulgação da Lei n° 11.326 de 24 de julho de 2006, sobre a agricultura familiar, no primeiro Governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva. O agricultor familiar passou a ser definido, pela referida lei, como aquele indivíduo que pratica atividades no meio rural e se enquadre nos seguintes requisitos abaixo:

[...] I - não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais; II - utilize predominantemente mão de obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; III - tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento

ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo e IV - dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família (BRASIL, Lei 11.326, 2006). A partir de então, a discussão que se coloca, refere-se à conceituação da agricultura familiar no contexto das sociedades contemporâneas. Duas compreensões têm sido importantes para este debate. Uma considera que a moderna agricultura familiar é indiscutivelmente uma nova categoria que fora gerada âmago das transformações experimentadas pelas sociedades capitalistas desenvolvidas. A outra, porém, considera a agricultura familiar como uma categoria em transformação, com rupturas e continuidades em relação ao seu antepassado camponês. Wanderley (1996), discutindo o pensamento de Claude Servolin, a respeito dos países europeus, especialmente a França, afirma que este é um dos que entende a predominância de agricultores familiares como um fenômeno recente, nada tendo de vínculo ou herança com as sociedades camponesas passadas. O que ele classifica de agricultura individual moderna é compreendida como um tipo de agricultura desenvolvida por um personagem inteiramente novo e gerado a partir das iniciativas do Estado. Nesse mesmo sentido, Ricardo Abramovay entende que “uma agricultura familiar, altamente integrada ao mercado, capaz de incorporar os principais avanços técnicos e responder às políticas governamentais, não pode ser nem de longe caracterizada como camponesa” (ABRAMOVAY, 2007, p. 33).

A outra corrente, diferentemente, como bem argumenta Wanderley (1996), compreende que as recentes transformações vividas pelos agricultores familiares não representam, de modo algum, uma completa ruptura com as formas anteriores deste segmento. Ela acredita que elas ainda mantêm profundas continuidades em relação ao passado. Para o caso da nossa agricultura, o pequeno agricultor ainda que moderno (nem todos os segmentos) e inserido aos mercados:

“[...] guarda ainda muitos de seus traços camponeses, tanto porque ainda tem que enfrentar os velhos problemas, nunca resolvidos, como porque, fragilizado, nas condições da modernização brasileira, continua a contar, na maioria dos casos, com suas próprias forças” (WANDERLEY, 1996, p.15).

Uma pesquisa coordenada por Lamarche (1993; 1998) na qual Maria de Nazareth Baudel Wanderley participou, reforça essa última corrente. Os estudos realizados no Canadá, França, Polônia, Tunísia e Brasil revelaram a diversidade das configurações da agricultura familiar nesses diferentes países. Através de uma tipologia apresentada — “empresa”, “empresa familiar”, “agricultura familiar moderna” e “agricultura camponesa” — podemos identificar como, sob a lógica familiar, os estabelecimentos agrícolas podem variar desde aqueles mais autônomos até os mais subordinados aos mercados (LAMARCHE, 1993; 1998).

O reconhecimento da importância da agricultura familiar é um fenômeno mundial. A ONU (Organizações das Nações Unidas) escolheu 2014 como sendo o Ano Internacional da

Agricultura Familiar, Camponesa e Indígena. Ela ratificou a agricultura familiar como um modelo de produção sustentável de alimentos que tem contribuído para o alcance das Metas de Desenvolvimento do Milênio, como necessária para extinguir a fome. Para muitos, a agricultura familiar é reconhecida como a mais importante forma de produzir alimentos, capaz de satisfazer às necessidades mais essenciais das populações, como a verdadeira opção protagonista para a construção de uma política orientada para o desenvolvimento rural sustentável.

No Brasil, segundo dados do último Censo Agropecuário de 2006, os estabelecimentos familiares correspondiam a 84,4% (4,3 milhões) dos estabelecimentos agropecuários do país, ocupavam 24,3% do total da área cultivada e empregavam 74,4% da mão de obra (cerca de 12,3 milhões de pessoas) do setor agropecuário, respondendo por 10% do PIB nacional e 38% do PIB agropecuário. Os agricultores e agricultoras familiares produziam 87% da produção nacional de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 58% do leite, 21% do trigo, possuíam 59% do plantel de suínos, 50% do plantel de aves e 30% dos bovinos (IBGE, 2006). A agricultura familiar é responsável por 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros (MDA, s/d).

4 A CONSTRUÇÃO DA REPRESENTAÇÃO SINDICAL CATEGORIA