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Aids redimensionada: uma questão de desenvolvimento

Capítulo II – Aids e segurança: governo do sexo pela gestão de riscos

2.2 Aids redimensionada: uma questão de desenvolvimento

Hoje em dia, segundo Peter Piot, pesquisador, clínico, fundador e dirigente da Onusida/Unaids (Programa das Nações Unidas para HIV/Aids), em seu livro Le Sida

dansle monde, entre science et politique:

O relatório da Onusida sobre os trinta anos de epidemia mostra que progressos consideráveis foram realizados com 6,6 milhões de pessoas em tratamento (por “em tratamento” entenda-se: tomando medicamento antiretroviral). Segundo o relatório, a taxa de incidência

do HIV diminuiu em aproximadamente 25% em nível mundial de 2001 a 2009. A mesma foi reduzida em 50% na Índia e 35% na África do Sul. Contudo, o fim da AIDS não é uma perspectiva dado ao elevado número de novas infecções: aproximadamente 7.000 por dia (PIOT, 2011: 9).

O financiamento mundial da luta contra a Aids, de acordo com Piot, passou de algumas centenas de milhões de dólares antes de 2000 para 15 bilhões de dólares em 2010, uma multiplicação por 53 vezes em apenas 12 anos. A projeção, segundo a Onusida, é que em 2030 os investimentos serão de dois a três vezes maiores que hoje, perfazendo um montante de 20 a 30 bilhões de dólares por ano.

Segundo o relatório mais recente da Onusida/Unaids, de 2009, são estimadas mais de 33 milhões de pessoas vivendo com HIV. Estudos realizados pela instituição mostraram que a amplitude do acesso ao tratamento antiretroviral permitiu que aproximadamente 3 milhões de mortes fossem evitadas, mantendo assim um número alto de pessoas convivendo com o vírus. Piot aponta que este dado mascara a baixa sensível do número de novas infecções.

As novas infecções pelo HIV em 2009 foram estimadas em 2,6 milhões, número menor que o divulgado pelo relatório anterior da Onusida de 2001, que registrava 3,1 milhões de novos casos. A baixa é considerável, mas ainda assim o número de novas infecções é alto. A despeito do uso de antirretrovirais, o número de mortes associadas à Aids, em 2009, foi de 1,8 milhões e a maioria ocorrida na África Subsaariana. Na Europa e nos Estados Unidos, aproximadamente 35 mil pessoas morreram de Aids em 2009. Para Piot, algumas destas mortes podiam ter sido evitadas a partir de um diagnóstico precoce e aplicação de tratamento adequado.

Se nos idos dos anos 1980 a Aids estava associada a um perfil de risco, a um grupo cujo comportamento era considerado como “inadequado”, hoje a leitura corrente é que a Aids é uma questão de segurança/seguridade humana ligado a níveis de desenvolvimento sociocultural e, portanto, uma questão de segurança pública. A esse respeito é relevante observar o conceito utilizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)27 que é referência para a análise da Aids segundo essa nova perspectiva:

O principal objetivo do desenvolvimento é alargar as escolhas que são oferecidas às pessoas. Em princípio, estas escolhas podem ser infinitas e podem variar no tempo. As pessoas frequentemente dão valor aos sucessos que não transparecem nos números relativos aos lucros ou à crenças econômicas: um melhor acesso ao conhecimento, uma nutrição melhor e um serviço de saúde melhor, meios de existência mais seguros, uma certa segurança contra a criminalidade e a violência psíquica, tempo livre bem preenchido, liberdades políticas e culturais e um sentimento de participação nas atividades comunitárias. O objetivo do desenvolvimento é criar um ambiente favorável ao florescimento/auto-satisfação para que as pessoas possam desfrutar de uma vida longa, saudável e criativa (HAQ apud PIOT, 2011: 81).

A análise possível a partir da mudança de abordagem da Aids pelo Onusida/PNUD é que a Aids é deslocada de uma abordagem cujo enfoque é o indivíduo e seu comportamento perigoso e passa a ter um enfoque a partir de seus impactos econômicos e sociais, como ameaça ao desenvolvimento humano como um todo.

A ameaça da sida nos países mais afetados se manifesta claramente sobre o desenvolvimento humano e notadamente sobre a esperança de

27 “À partir de 1990, o conceito de desenvolvimento humano foi aplicado ao estudo sistemático de temas de impacto geral, publicado nos relatórios anuais do PNUD. Os trabalhos de Amartya Sen e de outros pesquisadores definiram o desenvolvimento humano como um processo visando a alargar as escolhas das pessoas e reforçar suas capacidades e liberdades humanas” (PIOT, 2011: 81).

vida, a educação, o papel da mulher na sociedade e o impacto econômico. A grande preocupação das agências de desenvolvimento era que a epidemia representava, em numerosos países de baixa renda, um desvio de recursos essenciais para o desenvolvimento. Os custos de tratamento e a morbidade levam à baixa de produtividade. Esta preocupação e essa inquietação permitiram que a luta contra a Sida figure entre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Estes objetivos são hoje o motor de muitas agências e países (PIOT, 2011: 82).

Em 2000, a ONU lançou a Declaração de Objetivos do Milênio (DOM), fruto do encontro ocorrido de 6 a 8 se setembro em sua sede na cidade de Nova York, que reuniu 147 chefes de Estado e representantes de 191 países. Nesse documento, as nações ali reunidas declaram seu compromisso com as metas que corroboram para a Carta das Nações Unidas28, evocando a universalidade e atemporalidade dos valores ali expressos, e visam segundo o Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annam, representar também as múltiplas vozes dos países ali reunidos. A Declaração do Milênio tem como principais valores: liberdade, igualdade, solidariedade, tolerância, respeito pela natureza e responsabilidade comum.

A Declaração de Objetivos do Milênio é composta por 8 eixos principais de atuação que pretendem alcançar 32 metas. São eles: os valores e princípios da Carta das Nações Unidas (expressos no parágrafo acima); paz, segurança e desarmamento; desenvolvimento e erradicação da pobreza; proteção do nosso ambiente comum; direitos humanos, democracia e boa governança; proteção do grupos vulneráveis; responder às

28 A Carta das Nações Unidas, é um documento que data de 1945, no qual se estabelece a ONU, sua fundação e suas regras de funcionamento. Ela foi assinada por 51 países membros originais, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, na tentativa de estabelecer um poder internacional de regulação das forças de cada Estado-Nação. A carta das Nações está disponível em: http://www.oas.org/dil/port/1945%20Carta%20das%20Na%C3%A7%C3%B5es%20Unidas.pdf.

necessidades especiais da África; e por fim, atravessando todos os outros eixos, reforçar as Nações Unidas.

Impressiona ver que no decorrer da DOM, a Aids/ HIV é a doença mais citada, revelando como até a data de sua publicação a Aids figurava como um problema a ser tratado como ameaça ao bem comum das nações. As metas que a incluem são observadas nos eixos: desenvolvimento e erradicação da pobreza – “diminuir a tendência atual do HIV/Aids”; “prestar assistência especial àscrianças órfãs devido à Aids”; e em responder às necessidades especiais da África – “ajudar a África a aumentar a sua capacidade de fazer frente à propagação do flagelo do HIV/Sida e de outras doenças infecciosas”.29

São trinta anos desde os primeiros registros oficiais de Aids. Segundo Willy Rozembaum, médico e pesquisador que colaborou intensamente nas pesquisas do LAV na equipe de Luc Montagnier no Instituto Pasteur nos idos de 1980, descobrir uma patologia nova, uma nova “entidade clínica”, como ele mesmo nomeia, é algo raríssimo. No caso da Aids, sua rápida identificação e o isolamento de seu vírus causador foi possível devido a uma conjunção de ferramentas epidemiológicas recém descobertas, somado ao sistema de controle estadunidense que permitiu identificar o caráter epidemiológico da patologia desde seus primeiros casos. Observa-se no caso específico da Aids as proporções que uma patologia pode tomar, ou não, dependendo das ferramentas de escrutínio disponíveis para sua sondagem.

Sem dúvida, a doença [Aids] já existia anteriormente [a seu anúncio oficial], porém de forma esporádica. Os casos mais longínquos que se conhece hoje remontam aos anos cinquenta. As condições de sua disseminação – mobilidade geográfica, multiplicidade de parceiros

29 Declaração do Milênio. Nova Iorque, 6-8 de setembro de 2000. Disponível em http://www.unric.org/html/portuguese/uninfo/DecdoMil.pdf. Consultado em 27/05/2013.

sexuais... – ainda não estavam reunidas. Não obstante, podemos pensar que o HIV contaminou o homem há 70 ou cem anos (ROSENBAUM,1999: 51).

Contar a história da Aids apoiada em autores que a observam por diferentes referências – como Lauritzen, que fazia parte do “grupo de risco” mais estigmatizado pela epidemia em seu início, os gays, que lutavam não apenas para livrarem-se do preconceito, mas também para trazer dúvida quanto à veracidade das proposições científicas que estavam sendo apresentadas sobre a doença, sua origem e seu processo de disseminação; Rozembaum, que fez parte de uma das equipes que “descobriram” o vírus, e que ainda assim apresentou a Aids como algo já conhecido pela humanidade, colocando em primeiro plano de sua análise o jogo de poder para o estabelecimento de uma verdade sobre a doença, a disputa que envolve o desenvolvimento de tecnologia para que alguns nexos pudessem vir à tona apenas naquele momento, e não antes, como é o caso da contagem de linfócitos, bem como a existência de um aparato de controle, no caso estadunidense, para que alguns casos fossem suficientes para ligar “lé com cré”, explicitando como a “verdade” de qualquer doença depende de múltiplos fatores e, antes de mais nada, de poderes que concorrem e se sobrepõem; e Piot, que mostrou o deslocamento da Aids, que de início parecia circunscrita a um grupo de risco e hoje é tratada em linha com questões que ameaçam o bem comum, a segurança em nível planetário, dando visibilidade ao redimensionamento da doença ao nível de problema de segurança mundial que envolve principalmente problemas relacionados à pobreza e ao desenvolvimento social – permitiu dar visibilidade aos meandros da composição do regime de verdade que pretende fazer da Aids algo objetivo e mostrar que independente da fonte que enuncia e produz uma origem, um vírus causador e uma solução para a Aids, ele sempre está enredado por outras inúmeras fontes de verdade e interesses, os

quais estão em constante disputa. Portanto, não há começo, mas começos. Nem fim, mas fins.