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Ainda o drama romântico: gênero problemático

Capítulo I: Um Romantismo de vanguarda

I. 4. Ainda o drama romântico: gênero problemático

Quanto ao nome, chamem-no drama, comédia, dialogismo: – não importa. Não o fiz para o teatro (...). (Álvares de Azevedo)

A poesia lírica, desde sempre definida pela subjetividade, aparece em um dos pólos do conflito entre a necessidade (aqui entendida como as estruturas concretas que formatam a obra, de fora para dentro) e a liberdade (princípio criativo da obra, de dentro para fora) que configuram o ato criador. No outro pólo estaria a epopéia clássica, poesia integrada ao seu ambiente e portanto ingênua, nas palavras de Schiller, gênero em que o sujeito autoral sai de cena e o texto responde ao apelo imediato da arte enquanto representação da natureza. No centro, e enquanto síntese da necessidade e da liberdade criativas, encontra-se o drama, em sua acepção geral de texto teatral. No gênero dramático a mímesis alcançaria sua forma superior, já que filtrada por instâncias subjetivas próprias à exposição dos sentimentos dos personagens – representação da ação, e não da natureza, na famosa expressão de Aristóteles sobre a tragédia97. Em tal gênero encontraríamos, portanto, a possibilidade de um equilíbrio entre o narrativo e o lírico, e avançaríamos alguns passos no caminho que vai da mímesis à expressão.

Mas, para uma definição particular e instrumental do gênero dramático romântico, que nos permita trabalhar no próximo capítulo com um texto específico (Macário, de Álvares de Azevedo), buscamos uma diferenciação ainda, talvez, mais radical do drama romântico problemático: caminhamos em direção à perda de todo e qualquer equilíbrio, à perversão mesma do gênero dramático em suas prerrogativas básicas. Ou seja, ao invés de uma eqüidistância e singularidade em relação aos gêneros lírico e narrativo, dentro da forma dramática, falamos de um texto que mimetiza o drama, mas que engloba tanto a liberdade criativa mais própria do lírico quanto os deslocamentos ilimitados de espaço e tempo típicos

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da narrativa, de maneira a afrontar a ilusão dramática. Ultra-subjetivo, o gênero do drama romântico que aqui nos interessa propõe questões interessantes ao preferir alojar em uma estrutura originariamente rígida os desmandos subjetivos do autor. O marcado embate entre forma e conteúdo cria um gênero paradoxal, que, se busca de maneira incessante libertar-se das amarras estruturais, acaba por realçá-las, fazendo do drama romântico outra forma questionadora das categorias tradicionais de gênero literário.

O desenvolvimento de uma teoria da ironia romântica vinha fundamentar uma arte que não admitia fechamento, vinha implodir sistemas e códigos há muito estabelecidos: “Em sua rigorosa pureza, todos os gêneros clássicos são agora ridículos”98, ou “Do ponto de vista romântico, mesmo os gêneros bastardos, excêntricos e monstruosos têm seu valor, enquanto matéria-prima e exercícios preliminares da universalidade, se – ao menos – neles houver alguma coisa, se ao menos forem originais.”99 As normas universais são trocadas pela originalidade; o valor literário, que já fora o da semelhança aos modelos, transfere-se para a esfera do individual, da diferença; a subjetividade prepondera sobre os dados objetivos da obra de arte. É claro que isso repercute de forma intensa no âmbito do teatro, que, além da rigidez de seus gêneros clássicos, traz em si uma objetividade inerente ao próprio espetáculo, no qual tudo deve ser exteriorizado, todas as indicações de sentido devem ser claras e precisas. Já um texto dramático de matriz romântica tende para a exposição da subjetividade autoral, que se imiscui, através de recursos auto-reflexivos, na objetividade necessária a qualquer encenação teatral. Abrindo espaço para a expressão direta do temperamento autoral, em seu afã de desafiar a tradição clássica, o Romantismo acaba por enfraquecer também a carpintaria teatral, baseada em convenções tácitas há muito estabelecidas e utilizadas, e promove a perda do pacto existente entre o público e o espetáculo teatral. O subjetivismo lírico exagerado, portanto, com seu fluxo reflexivo incessante, sua tendência à digressão e sua aparente

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Fragmento L 60. SCHLEGEL, 1997, p. 30.

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submissão ao acaso, incide necessariamente sobre as marcações e rubricas cênicas do drama, pois faz pender a balança mais para o monólogo do que para o diálogo, mais para os gêneros lírico e narrativo do que para o dramático100. A ação cai para um mínimo, substituída pela tentativa de expressão da consciência autoral, pelo devaneio da imaginação.

A tradição realista de encenação vigente à época do Romantismo, já o dissemos, ao subordinar o texto da performance teatral ao texto literário, dificultava ainda mais a representação de vários dos dramas românticos, que não respeitavam os limites estreitos da encenação oitocentista, nem as possibilidades materiais dos palcos à italiana de então101. A presença do devaneio, do fantasioso, as inúmeras mudanças de cenário e os grandes períodos de tempo abarcados (ou a imprecisão cronológica), a fragmentação exagerada do texto, a sua inadequação aos padrões teatrais mais comuns, tudo caracteriza o que chamaríamos aqui de drama romântico problemático, em sua forma mais ousada de teatro de papel, texto dramático não passível de ser encenado em sua época. Obviamente a encenação atual destas peças não enfrenta mais esse tipo de problema – pois os palcos atuais não reconhecem mais limites tão estreitos e impositivos, e mesmo a concepção cênica contemporânea prescinde da presença literal do texto dramático. Podemos inclusive situar em algum ponto da longa transformação do teatro no ocidente a contribuição romântica, vanguarda à sua época.

Não incluiríamos aqui o drama romântico histórico do tipo de Alexandre Dumas, ou mesmo de Victor Hugo, tecnicamente adaptado à encenação oitocentista, e sim o drama romântico fragmentário de um Musset ou um Büchner102, ou o Fausto de Goethe (no caso destes dois últimos textos, sairíamos inclusive dos limites tradicionais de datação do movimento romântico), entre tantos outros. Neste tipo de gênero dramático, como aqui o

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Conferir VELTRUSKI, 1988, p. 164 e 165.

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Outro problema era vencer os hábitos arraigados de um público acostumado a ver os mesmos gêneros repetidos infinitamente. Conferir VAN TIEGHEM, 1948, p. 446.

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entendemos, há uma clara ênfase no texto escrito, literário, em detrimento das marcas propriamente técnicas, concernentes ao teatro enquanto realização cênica; trata-se muitas vezes de drama escrito contra a cena, e não para ela103. Sobre todos os exemplos do drama romântico problemático paira a grande sombra de Shakespeare, entendido anacronicamente como mestre da irregularidade, criador de cenas estilhaçadas que desconhecem o senso de medida clássico e classicista. O drama shakespeareano, filtrado pelo olhar romântico, fascina ao misturar natureza e sobrenatural e relativizar tudo com o tempero do grotesco. Assim o entenderam tantos autores românticos em suas aventuras pelo âmbito do dramático, criando um gênero híbrido que espelha, além de uma conjuntura historicamente explicável, as distorções do próprio temperamento autoral.

É nesse grupo que se inclui o drama Macário, de Álvares de Azevedo, texto que passaremos a analisar no próximo capítulo, tendo em vista tudo aquilo que foi discutido até agora. Adiante-se que os elementos fantasiosos e oníricos, presentes em Macário, acabam por afastá-lo ainda mais do drama romântico de matriz histórica, inserindo-o em meio aos textos altamente subjetivos que desconhecem a própria representação da natureza como reguladora de uma forma sensata ou previsível. Macário cumpre à risca o projeto dramático romântico, em sua faceta questionadora, ao submeter a estrutura do drama aos caprichos e exageros da subjetividade autoral.

Entre a literatura e o teatro, o Romantismo, com seu espírito reformador, foi responsável pela criação de um gênero impraticável. Este é o gênero que aqui nos interessa: se deve o seu arcabouço ao drama, volta-se contra o teatro enquanto realização cênica e o coloca assim em discussão; aloja em si o subjetivismo lírico e visita com freqüência a narrativa como forma de escapar aos limites de um palco virtual. O drama romântico problemático seria, dessa maneira, não apenas uma forma heterodoxa do teatro de texto, como também, e antes de

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tudo, mais um entre os gêneros experimentais trabalhados no Romantismo, como o fragmento, o romance romântico e os longos poemas dramáticos ou narrativos. Por trás de todos os dramas românticos não encenados e não-encenáveis, permanece um Ideal nunca atingido, mas expresso pelos autores na forma defeituosa, marcada pela subjetividade, decorrente de uma constatação da incompletude, mas, paradoxalmente, idealizada enquanto possibilidade.

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