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CAPÍTULO III – BIBLIOTÁFIO/BIBLIÓFILO

3.5 Análise e leitura das obras

3.5.1 Jorge Luis Borges

3.5.1.2 O Aleph

Assim o mundo, se pudesse ser exatamente traduzido e duplicado num livro, perderia todo o começo e todo o fim e tornar-se-ia esse volume esférico, finito e sem limites que todos os homens escrevem e onde estão escritos: já não seria o mundo, seria, será o mundo pervertido na soma infinita de seus possíveis. (Esta perversão talvez seja o prodigioso, o abominável Aleph.)

[...]

Todo lugar absolutamente sem saída; se torna infinito.

Maurice Blanchot

“O Aleph”168 é o penúltimo conto do livro que tem o mesmo nome do conto. Possui uma narrativa autodiegética, isto é, o narrador é o principal personagem, cujo nome é Borges e também é escritor. O autor narra que, após a morte de Beatriz Viterbo (uma mulher que no decorrer do conto percebemos que o narrador-personagem nutria por ela um sentimento mais profundo) em 30 de abril de 1929, todos os anos nessa mesma data, faz uma visita ao pai e ao primo-irmão dela, Carlos Argentino Daneri169 (era funcionário de uma biblioteca e também

167 CARVALHO. Jorge Luis Borges e as histórias do sem fim, p. 58-59. 168 BORGES. O Aleph, p. 121.

169 O nome do personagem primo irmão de Beatriz Viterbo é Carlos Argentino Daneri, este último sobrenome é um anagrama de Dante Alighieri escritor da Divina Comédia. Essa referência ao escritor italiano é expandida ao

escritor). As conversas que no início eram rápidas, com o passar dos anos foram se delongando: giravam em torno da literatura, Daneri contava seus poemas, explicava-os e gostava de escutar sugestões sobre o processo de escritura, revelava suas ideias para os próximos poemas (como um que se propunha a versificar toda a redondez do planeta).

Certo dia, muito agitado, perturbado e preocupado, Daneri ligou para Borges, o personagem-narrador, para falar da demolição da casa da Rua Garay, casa a que todos os anos Borges ia para visitar a família de Beatriz. A casa, que era importante para a finalização de um dos poemas sobre o infinito de Daneri, seria demolida por Zunino e Zungri (com o pretexto de ampliar a confeitaria) que eram donos do salão-bar onde Daneri tinha encontrado Borges para ler e discutir o processo de escritura de seus poemas. Com voz impessoal, falou com Borges que naquela casa havia o Aleph.

Explicou que ele ficava debaixo da sala de jantar e que o descobriu ainda na infância, e que, um dia, ao rolar pela escada do porão viu o Aleph. Antes de levar Borges narrador- personagem para vê-lo, Daneri o prepara explicando a forma exata de recostar, como olhar e quantos degraus deve-se contar antes de ver o Aleph.

A seguir, a transcrição do que foi visto no Aleph:

Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da rua Soler as mesmas lajotas que há trinta anos, vi no vestíbulo de uma casa em Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca numa calçada onde antes existira uma árvore, vi uma chácara de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava maravilhar-me com o fato de que as letras de um livro fechado não se misturassem e se perdessem no decorrer da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas numa praia do mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando cartões-postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de algumas samambaias no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na nome da personagem que Dante, com a ajuda de Virgílio, desce aos infernos para procurar, a amada Beatriz. A procura do Aleph no porão de uma casa prestes a ser demolida pode ter uma aproximação com o inferno dantesco. Infelizmente, por questões de recorte da pesquisa, não iremos aprofundar nessa querela. Para aprofundar no tema ver SOUZA. O século de Borges, p. 54.

terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta da escrivaninha (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, inacreditáveis, precisas, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.170

O Aleph é um ponto furta-cor de dois a três centímetros de diâmetro e brilho quase intolerável, mas seu espaço cósmico era o infinito. Do lugar de onde Borges personagem- narrador estava viu todo mundo, todas as coisas: pessoas, imagens, lugares, objetos e cenas. Borges vê tudo que está no Aleph de forma simultânea, e não sucessiva. Quando escreve o conto que lemos, explica que o que viu foi simultâneo, mas que a transcrição será sucessiva, pois a linguagem assim o é.

Eneida Maria de Souza, em O século de Borges, entende a imagem do Aleph como a compreensão irônica do cosmos como totalidade, através da redução do universo em um ponto.171 Para Eneida a esfera luminosa sem circunferência é o ponto de encontro do imaginário que é o infinito. Seguindo esse pensamento, podemos então considerar toda a obra de Borges como uma metáfora da biblioteca, um modelo reduzido da biblioteca mundial, pois seus contos e ensaios abarcam as reminiscências do que foi lido e lembrado durante a vida.

O momento em que Borges se depara com o Aleph é revelador, absurdo, inefável, desesperador. Ainda atordoado, Borges tece analogias, busca correlações em outras imagens, outras situações da mitologia e da Bíblia para aproximar o Aleph de algo que conheça, que tenha lido, citado ou que tenha alguma referência verbo-visual.

Como é tão revelador aquele momento, fica eufórico e exaustivo na repetição “vi”, tanto que na ânsia de enumerar o visto, não acredita no que vê: o inconcebível universo. Para Eneida, ao criar ficcionalmente o Aleph, Borges se apropria de conceitos metafísicos, porém sem pretender a transcendência, pois concebe a metafísica como um ramo da literatura fantástica, “desde que esteja absorvida pela proposta estetizante de seu discurso”.172

Considerar que um ponto reverbera todas as coisas, que o ponto contenha o mundo duplicado, o mundo olhado pelo espelho do mundo, é a ideia do Aleph, pois para Borges a

170 BORGES. O Aleph, p. 133-134. 171 SOUZA. O século de Borges, p. 101. 172 SOUZA. O século de Borges, p. 56.

ideia do infinito corrompe todas as outras. Blanchot acredita que Borges herdou o infinito da literatura, mas não da ideia tranquila de infinito, de Borges ter tirado o infinito de suas muitas leituras. Para Blanchot a visão de infinito borgiana está intimamente ligada aos paradoxos daquilo que Hegel, para descartá-lo, chamava de mal infinito.173

Blanchot acredita que o erro da literatura é o infinito, o mundo que vivemos é limitado. Borges, então, cria uma metáfora do infinito literário que não tem limites: tem diâmetro, mas não uma circunferência que funcione como limite. O Aleph e o livro são metáforas que burlam o limite (vimos em “O livro de areia” que as páginas brotam da capa, que o livro não tem fim nem começo).

Borges é essencialmente literário, já dizia Blanchot. As coisas comuns vistas por pessoas comuns são coisas comuns. Mas as coisas vistas por um homem labiríntico, “destinado à errância de uma marcha necessariamente um pouco mais longa do que sua vida, o mesmo espaço será verdadeiramente infinito, mesmo que ele saiba que isso não é verdade, e ainda mais se ele o sabe”,174 são coisas labirínticas. Acredito que seja isso que Blanchot fala, ao dizer que Borges lê o mundo a partir da literatura, compreende o mundo segundo o modo que a literatura autoriza.175