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Capítulo 4: Letramento

4.3. Alfabetização: do modelo tradicional às concepções atuais

De acordo com Leite (2001), a mudança de paradigmas sobre o processo de alfabetização, observada nas últimas duas décadas, relaciona-se a uma mudança na concepção de escrita. No modelo tradicional, esta era vista como simples reflexo da linguagem oral, ou seja, mera representação da fala. Desse modo, entende-se que ler e escrever são atividades mecânicas de codificação e decodificação. Nessa perspectiva, a preocupação com a eficácia do processo está centrada na questão metodológica: qual o melhor método para dominar o código?

O autor coloca que, dentro desse modelo, trabalhava-se com a idéia de que era preciso, primeiramente, ensinar ao aluno o código para, posteriormente, habilitá-lo a ler e escrever. Além disso, a questão da prontidão era uma marca muito forte: acreditava-se que existiria um momento para aprender a ler e escrever – determinado pela maturação biológica e pelas experiências de vida – ou seja, que havia pré-requisitos para iniciar tal aprendizado.

De acordo com Santos et. al. (2004), o texto, antes da década de 80, era apresentado aos alunos em frases soltas sem quaisquer indicações sobre o seu uso nas diversas situações sociais, tendo com principal fundamento os aspectos gramaticais. Os autores também colocam que com o surgimento da Lingüística Textual na Europa, precisamente na Alemanha, na década de 60, houve um rompimento dessa perspectiva, sendo o texto identificado como uma nova unidade lingüística. Porém, apenas a partir da década de 80, este é consolidado dentro de uma visão funcional e interacional da linguagem, como um evento comunicativo, instaurando-se a dimensão discursiva na linguagem.

Nos anos de 1980, houve, no ensino fundamental, a influência da Psicogênese, que também repercutiu na educação de jovens e adultos, com os estudos de Ferreiro (1983), divulgados através de um relatório denominado “Los adultos no-alfabetizados y sus conceptualizaciones del sistema de escritura”, com dados empríricos de um trabalho realizado no México. Tal estudo teve como objetivo identificar semelhanças e diferenças entre a interpretação da escrita e da produção de crianças e adultos trabalhadores em processo de alfabetização (Santos, et al., 2004).

Os resultados da investigação de Ferreiro (1983) levaram alguns educadores a mudarem seus referenciais, gerando a necessidade de reflexão acerca das práticas alfabetizadoras com os sujeitos jovens e adultos. Isso permitiu a abertura de um espaço importante no ensino da língua portuguesa, uma vez que essa autora defende o contato com diversos tipos de textos. Além disso, contribuíram para uma redefinição do conceito de alfabetização e mudanças nos objetivos a serem alcançados nesse processo.

Na década seguinte, a educação de jovens e adultos sofre influência do referencial teórico vygotskyano, que torna a linguagem escrita o conteúdo básico da alfabetização. Vygotsky (1991) mostra que a escrita não é um código de transcrição da língua oral, mas um sistema de representação da realidade. O processo de alfabetização, nessa perspectiva, é considerado como o domínio progressivo do sistema da língua escrita, que começa muito antes do sujeito se escolarizar (Santos, et al., 2004).

Nesse sentido, Leite (2001) coloca que:

atualmente, pode-se afirmar que as concepções de escrita, subjacentes às modernas propostas, implicam dois aspectos fundamentais: de um lado, enfatiza-se o caráter simbólico da escrita, entendendo-a como um sistema de signos cuja essência reside no significado subjacente a ela, o qual é determinado histórica e culturalmente (...). Por outro lado, enfatizam-se os usos sociais da escrita, ou seja, as diversas formas pelas quais uma determinada sociedade utiliza-se efetivamente dela (...) (p.24).

O autor considera que, dentro dessa perspectiva, assume-se o texto como ponto de partida e chegada do processo de alfabetização escolar, entendido como trecho falado ou escrito, caracterizado pela unidade de sentido que se estabelece numa determinada situação discursiva (Lopes, 1991). Além disso, a diretriz pedagógica que se impõe é a utilização da escrita verdadeira nas atividades escolares, ou seja, correspondendo às formas pelas quais ela é utilizada verdadeiramente nas práticas sociais. Esse pressuposto implica, por sua vez, o domínio, por parte dos alunos, dos diversos gêneros textuais, orais ou escritos, que circulam socialmente.

Outra mudança ocorrida no processo de alfabetização escolar diz respeito às relações nele estabelecidas. Enquanto no modelo tradicional entendia-se que o eixo principal era aquele estabelecido entre o professor (que domina o conhecimento) e o aluno (que não sabe), numa relação vertical, nas concepções atuais entende-se que o eixo principal do processo de alfabetização é o que se estabelece entre sujeito (aluno) e objeto de conhecimento (neste caso, a escrita), numa relação horizontal. Acredita-se que o conhecimento é construído a partir dessa

relação que, por sua vez, é sempre mediada e na escola o principal (mas não único) mediador é o professor (Leite, 2001).

Finalmente, o autor ressalta as transformações ocorridas na questão da metodologia da alfabetização. Se no modelo tradicional, a discussão centrava-se na escolha do método (analítico, sintético ou misto), agora, as práticas pedagógicas são elaboradas a partir dos referenciais sociais (a questão da cidadania, a compreensão do papel social da escrita, etc), além das contribuições das áreas auxiliares de conhecimento, como a Lingüística e a Psicologia, entendendo-se, agora, que a alfabetização é um processo complexo e multideterminado.

As considerações de Amaral (2001) vão ao encontro do que foi dito até aqui. Para a autora, o modelo tradicional de alfabetização enfatizava o domínio de um conjunto de habilidades, da técnica, os processos de codificação e decodificação, a memorização. O professor era visto como transmissor de conhecimentos e o aluno como receptor passivo. A escrita era vista como espelho da oralidade e havia uma preocupação muito grande com o erro ortográfico, enfatizando a dimensão individual do processo.

No Letramento, ao contrário, é a dimensão social que está envolvida, ou seja, os comportamentos sociais, o uso social da leitura e da escrita, numa perspectiva crítica, na qual o professor é visto como mediador, problematizador, sujeito reflexivo e o aluno como sujeito ativo no processo de construção do conhecimento. A escrita passa a ser vista como construção humana, social e histórica com função social e a leitura e a escrita passam a ser valorizadas como instrumentos que ampliam as possibilidades de conhecimento e ação do homem sobre o mundo.

Ainda a respeito do modelo tradicional de alfabetização, Larocca e Savelli (2001) acrescentam as duas grandes concepções que o sustentam: o método sintético e o método analítico. No primeiro, o caminho percorrido é das partes para o todo, da combinação de pequenas partes para chegar às mais complexas (primeiro letras, depois sílabas, frases e finalmente o texto). A principal operação psicológica realizada nesse método são associações.

No método analítico ou global, essa lógica é invertida, partindo-se do todo para as partes. A base psicológica é a teoria da Gestalt, cuja lógica baseia-se na percepção de totalidades.

Para as autoras, em ambos os casos, tanto em um método quanto em outro, o processo de ensino apóia-se em procedimentos didáticos mecânicos, ou seja, as aquisições acontecem mediante treino das discriminações perceptivas auditivas e visuais e das correspondências grafema – fonema.

Ressaltam ainda algumas outras características do modelo tradicional de alfabetização: ênfase nos aspectos motores, textos cartilhescos, privilegiando a forma em detrimento do significado, passividade cognitiva. Ler é decodificar sinais e escrever é tentar espelhar a fala, sendo ambos aquisições feitas a partir de treino, repetição e imitação.

De acordo com as autoras, a partir da década de 70, a Psicologia Piagetiana, através dos estudos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, contribuiu para que a criança passasse a ser vista como sujeito cognoscente e centro do processo de ensino-aprendizagem. Sua lógica passou a ser respeitada, seu pensamento, suas idéias e hipóteses sobre o funcionamento do sistema da escrita. Na abordagem piagetiana, a escrita é um objeto simbólico que representa algo e a leitura é um processo de conhecimento; o leitor é um processador ativo de informação que constrói o significado, conhece a língua e erra, na tentativa de compreender como a escrita funciona.

A partir de 1985, chegam ao Brasil os estudos de Vygotsky, principal representante da teoria histórico-cultural. Sua maior contribuição para a área da educação foi ter erguido uma teoria de ensino, segundo a qual as mediações socioculturais são as responsáveis pelo desenvolvimento cognitivo. O professor está no centro do processo, pois é o maior responsável pelo ensino , conseqüentemente, pela aprendizagem de seus alunos, aprendizagem essa que fará com que estes desenvolvam-se cognitivamente. A linguagem é entendida, por essa abordagem, como um sistema de comunicação humana e também como instrumento de organização intra- mental da realidade (Larocca e Saveli, 2001).